31.7.07



TERCEIRO ENCONTRO LLANSOLIANO


O Grupo de Estudos Llansolianos (GELL), entretanto transformado em Associação, realizou o seu último Encontro no Hotel Rural de Mourilhe, Trás-os-Montes (gerido pelo Padre Lourenço Fontes, de Vilar de Perdizes), de 20 a 24 de Julho de 2005, em colaboração com dois outros núcleos de investigação: o IELT-Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (da Universidade Nova de Lisboa) e o Grupo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras (um núcleo de estudo das etnias índias brasileiras, da Universidade Federal de Minas Gerais).

Hotel Rural de Mourilhe

Antes de Mourilhe houve dois Encontros llansolianos: o primeiro em Sabará, cidade histórica de Minas Gerais, organizado em 4 e 5 de Dezembro de 2002 pelo núcleo llansoliano da Universidade Federal de MG, por iniciativa da Profª Lúcia Castello Branco, sob o lema «Este é o jardim que o pensamento permite...»:











Teatro de Sabará, lugar do primeiro Encontro llansoliano


O segundo Encontro llansoliano teve lugar entre 29 de Setembro e 1 de Outubro de 2003 no Convento da Arrábida, organizado pelo GELL-Grupo de Estudos Llansolianos sob o lema «Concebe um mundo humano que aqui viva...»:







© Vina Santos


Convento da Arrábida

Do Encontro de Mourilhe resultou a publicação de Vivos no meio do Vivo, um conjunto de quatro cadernos e um DVD em que se reunem todos os materiais produzidos e apresentados nesse Colóquio (e que pode ser pedido à Associação Espaço Llansol ou à distribuidora Nova Optimapress: optimapress@sapo.pt). Esta publicação inicia uma colecção do Espaço Llansol – «Rio da Escrita» – que poderá acolher de futuro outras publicações em livro, para além da série de cadernos que continuamos a editar («Jade - Cadernos llansolianos»).


Deixamos aqui o índice, que dá uma imagem da dimensão e da diversidade deste terceiro Encontro. Se quiser ver os lugares, os ambientes e alguns dos momentos de discussão, de convívio e de leitura do Colóquio, pode ter acesso ao Álbum do Encontro, em formato slide show aqui.


Índice


[1º Caderno]

«Em busca da troca verdadeira...»

Hélia Correia, Teresinha canta

«Quem somos? Quem nos chama?»

Ana Paula Guimarães, Quem somos?
IELT, Literatura Tradicional, arredores e companhia

Lúcia Castello Branco, A melhor forma de amor: Ler com Llansol

Maria Inês de Almeida, A textuante língua portuguesa:
Maria Gabriela Llansol e a escritura indígena no Brasil

João Barrento, A chave sob a maçã

[2º Caderno]

«Cem memórias de paisagem»

Lúcia Castello Branco / Cynthia Barra, Onde vais, Dama-Poesia?
Sobrescritos à paisagem de O infinito e ela

Maria Etelvina Santos, Onde a natureza é mais-paisagem há um
corpo que escreve

Daniela Jones de Oliveira, Desculpindo-se numa paisagem

«Um fio de voz...»

João Madureira, Inscrição (partitura)
Hélia Correia, Amar um cão

Discussão:
Do amor que a criação tem à criação:
Da música,da escrita
e de outras artes

[3º Caderno]

«A imagem repentinamente sabe...»

Maria Gabriela Llansol, A Última Ceia: A chave de ler
(de: Um Beijo Dado Mais Tarde)

Vania Baeta, A Festa de Babette

Ana Paula Guimarães, Os Respigadores e a Respigadora

Restos... - Um diálogo a partir de
Os Respigadores e a Respigadora
,

de Agnès Varda

Isabel Catalão, Charca Viva

Amílcar Vasques Dias, Elaphe scalaris
(Cobra de escada ou riscadinha)



[4º Caderno]

«Recriar as densidades e os materiais...»

Paulo Sarmento, Herbário de possibilidades
(Sobre Na Casa de Julho e Agosto)

Cristiana Vasconcelos Rodrigues, Seis capítulos de
Na Casa de Julho e Agosto

Ricardo Marques, Da literatura tradicional
à escrita de Llansol: Uma perspectiva


«O mesmo vestido, lido de outro modo...»

Maria de Lourdes Soares, Tocar a dobra, criar o coração,
«por
alegria de vida»
(Apontamentos a partir da primeira notação de Finita)

João Barrento, Uma conversa de beguinas:
Sobre Augusto Joaquim, Aos Fiéis do Amor

Momentos do Encontro de Mourilhe

30.7.07



30 ANOS DE O LIVRO DAS COMUNIDADES
Últimas sobre o Colóquio de Liverpool

O Colóquio que anunciámos aqui no dia 27 tem programa praticamente definitivo:


Clique nas imagens para aumentar

Para mais informação sobre o Colóquio, cuja inscrição é gratuita, pode ir ao site da Universidade de Liverpool, aqui


A METANOITE DO e. t.



Metanoite:
verbo grego, forma do imperativo de metanoia,
significando literalmente
"Pensai para além do que é conhecido!"
Perpetuou-se a tradução errónea,
nas versões católica e protestante do
Novo Testamento (Mat., 4, 17),
por "Fazei penitência!"
("Tut Buße!" na tradução de Lutero).


Um dos últimos acontecimentos culturais relacionados com a Obra de Maria Gabriela Llansol foi a estreia da ópera de câmara
Metanoite, no âmbito do Fórum Cultural do projecto «O estado do mundo», na Fundação Calouste Gulbenkian. A ópera, com música de João Madureira, libretto de João Barrento e uma encenação que anulou estes dois ingredientes essenciais, pôde ser vista no Grande Auditório nos dias 29 e 30 de Junho passados.
A auto-encenação de Metanoite na Gulbenkian foi engendrada por um rapaz, de seu nome André e. t. (ver mais aqui), e é narcísica, egocêntrica, megalómana, arbitrária, absurda, abusiva e ruidosa a todos os níveis. Não entendeu nada do libretto, mistura-o abusivamente, em projecções paroxísticas de texto sobre vidro que cegam o espectador e lhe desviam a atenção do que é importante, com o seu próprio palavreado po-mo pretensamente culto ou erudito, meteu-se a brincadeiras de mau gosto com o nome de Maria Gabriela Llansol, enfim, conseguiu anular completamente a música de João Madureira (pode ouvir algumas obras deste compositor aqui
). Êxito em todas as frentes, portanto, tiro na mouche para quem apenas busca promoção pessoal. Mas a fumarada não impede que se veja como foi tudo fogo de artifício para confundir e épater.

Reproduzimos aqui os textos escritos pelo compositor e pelo autor do
libretto, que dão a entender como o espectáculo poderia ser, mas não foi, um encontro de vozes e de linguagens em convergência, no espírito do texto original de onde tudo partiu (as montagens são de fotos dos ensaios). E remetemos os interessados para o oitavo caderno da série «Jade–Cadernos Llansolianos», editados pelo Espaço Llansol, onde se pode encontrar a versão original do libretto:



João Madureira
A PROPÓSITO DE METANOITE

A encomenda de uma ópera para o Fórum Cultural O Estado do Mundo, a propósito das comemorações dos 50 anos da Fundação Gulbenkian, permitiu-me continuar um caminho que venho trilhando há já alguns anos. Tenho vindo a escrever música para textos de autores como Ana Hatherly, Herberto Helder, Álvaro de Campos, António Franco Alexandre, Sóror Mariana Alcoforado, Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Belo, Heinrich Heine, isto para além de música de cena para O Casamento de Fígaro, de Beaumarchais, e para Os Dias de Hoje, de Jacinto Lucas Pires. Compus também música directamente inspirada por textos como Ausgraben und Erinnern (Escavar e Recordar, de Walter Benjamin), ou Inscrição (a partir de Amar um Cão, de Maria Gabriela Llansol).
O texto, a palavra escrita ou falada, tem desempenhado uma função central na minha produção musical. E quando o texto não está presente, é a própria música que se assume como tal, como em Glosa, para marimba e orquestra de câmara.
Na verdade, desde Poemúsica — sobre poemas de Herberto Helder, estreado em 1998 por Luís Miguel Cintra e Nuno Vieira de Almeida — que procurei encarar a coexistência de dois discursos distintos — palavra e música — para além das formas tradicionais. A relação entre estas duas realidades discursivas — ora se encontrando, ora seguindo caminhos diferentes, embora paralelos — revelou-me, com o tempo, um tecido que, longe de ser uma mera sobreposição de discursos, proporcionava uma reflexão e iluminação mútua entre ambos: o texto pensava a música e a música, mais do que apenas o reflectir, reimaginava-o. Esta relação de fricção entre duas realidades tem-me levado, assim, a reflectir sobre a multidimensionalidade de cada uma delas.
Se todos sabemos que o texto não é portador de apenas um nível de sentido, e que a música mora entre os vários aspectos que a compõem, na composição de Metanoite estes aspectos ganharam o dramatismo inerente à própria ideia de narrativa e de um tempo dilatado de convivência. Narrativa e acção musical que se opunham à mera criação de momentos estáticos. Tempo alargado de convivência que exige a constante reinvenção da relação entre texto e música. Esta experiência plural confrontou-me, finalmente, com duas questões maiores: a potência da música talvez resida no facto de ela ser pobre de língua, uma linguagem não verbal, e portanto 'condenada' à criação de significados dúbios e indefinidos, numa espiral que ela própria não consegue dominar. Paralelamente, talvez o texto, na sua aparente coerência linguística, mais não seja do que veículo para a expressão musical do testemunho vivencial de quem o pratica.
Penso que o texto de Llansol tem demonstrado a pertinência destas questões. Mas, mais do que isso, parece-me ser um texto que denuncia como a nossa relação com a linguagem acaba por condicionar a maneira como pensamos e ser algo de decisivo no destino que o mundo tem tomado. Temos tendência a aceitar a impostura da língua (Llansol) como algo inevitável, mas, como nos diz o libreto de João Barrento, a partir das palavras de Llansol:

Quem escolhe a palavra, decide o real…
E a terceira atitude existe, é o terceiro sexo,
o sexo de ler e o das coisas, força actuante
para lá de fusão e intercepção,
um rumor, espécie de brumor no mundo,
uma coisa que o atravessa e o murmura,
envolta numa bruma sem linguagem.

Metanoite é uma ópera que, mais do que reflectir de forma exaustiva sobre «o estado do mundo», procura mostrar como ele se espelha neste microclima que é o meio artístico erudito dos nossos dias.

Resta-me agradecer a João Barrento a oferta do libreto para esta ópera, e a Maria Gabriela Llansol pelo entusiasmo com que acolheu esta ideia.

© Henrique Figueiredo

João Barrento

UMA MÚSICA SEM MANCHA DE RUÍDO



Metanoite é o espectáculo de um espectáculo virtual dentro do grande espectáculo real do mundo. Um espectáculo sobre o estado desse mundo e as suas perspectivas futuras, nomeadamente no âmbito da produção artística. Como a play within the play de Hamlet («The play’s the thing / Wherein I’ll catch the conscience of the King», II, ii), a ópera é um catalizador que porá à vista a consciência — e o inconsciente — do nosso mundo.
De que matéria(s) se faz hoje o mundo? A visão barroca e simbolista do mundo como sonho aplica-se menos ao nosso mundo do que a shakespeariana (e também calderoniana) do mundo como palco. Maria Gabriela Llansol, que forneceu a matéria para o libretto desta ópera, via-o, a princípio, como sendo feito sobretudo da matéria da injustiça, da «trama da existência» subordinada ao tempo do poder. Hoje, sem renunciar a esse ponto de vista, mas deslocando-o e ampliando-o, insiste mais (como demonstra o subtítulo de um dos últimos livros, O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações) na matéria das imagens e na natureza constitutivamente estética do mundo.
«O mundo é puramente estético (mas raramente santo)», diz a Rapariga do Fulgor. O ser estético disponibiliza-o para uma série de possibilidades (potencialidades) de apreensão para lá da sua mera representação e exposição, numa zona de que a maior parte das pessoas, ocupadas com o que (lhes) é útil, não se apercebe — porque esse trabalho estético consiste em ver à sombra do que se não vê. O não ser santo, por sua vez, implica que o mundo só pode ser (tendencialmente) cínico, pérfido, ressentido, absurdo. As estéticas de que o mundo é feito dão corpo, cor, imagem às coisas, são sinais de vida: «a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas», lemos já, na pré-história desta Obra, em Depois dos Pregos na Erva. É essa, precisamente, a sua outra «santidade», aquela que Spinoza nelas viu com olhar (de) intenso. E é esse equilíbrio tensional entre a substância do invisível (que o estado actual do mundo insiste em esconder ou negar) e o estendal de absurdidade da sua imensa superfície visível, que Metanoite pretende dar a ver e problematizar — com humor e sensibilidade. Musil trata já este problema e esta tensão em O Homem sem Qualidades, uma obra imensa em que o essencial se joga entre a busca d’ «o outro estado» (que implica uma existência tacteante e céptica, aberta ao reino do possível e sem «qualidades») e a auto-satisfação dos «pragmáticos da razão suficiente». No meio, em inúmeras variantes, vegetam os ingénuos paladinos de uma realidade já sem perfil identificável, a que a cultura ocidental gosta de chamar o «Espírito», com maiúscula.
Também o libretto de Metanoite propõe dois filões alternantes, deixando repetidamente o caminho aberto a terceiras vias. O primeiro é o da paródia e da ironia, mais presente do que geralmente se pensa na Obra de Maria Gabriela Llansol, e que só por si poderia ter originado uma ópera puramente buffa. A paródia, lembremo-lo, tem a sua etimologia no párodos do teatro grego, aquela entrada lateral, ou canto paralelo que, remetendo para o pano de fundo contra o qual se desenrola a acção, se apresenta como discurso que passa ao lado da acção principal (isto é, mais visível) do mundo, que, no nosso caso, se pretende séria e é hilariante e absurda («Se o mundo é o imediato, este espectáculo / passa longe dele», diz a sua criadora, Psalmodia). O segundo filão, representado pelos intermezzi e pelo coro final, dá voz ao que deseja o que o desejo pode, à potência, despossuída de interesse, do «sexo do mundo», terceiro sexo que pode propiciar a terceira via implícita na ideia de Psalmodia para o seu espectáculo, que, repetindo realidades e práticas correntes no universo capitalista dominante, é sabotado, destruído, atraiçoado pelos «intermediários» (aquelas figuras, sinistras, invertebradas e sem rosto, de «funcionários» e guardas de uma lei que desconhecem, que povoam o universo de Kafka). A perspectiva aberta da criação, para lá do «Ou... ou» do Produtor e da ignorância gestionária do Escrivão, é a do «ímpar»: não simplesmente a do número, já que participa do duplo sentido do termo, e implica, para um espectáculo como para uma existência, a relação tensional fora da simetria estéril, a orientação para a singularidade in-igualável (do mundo por vir). Só assim se poderá sair dos maniqueísmos do mundo e da eterna oposição não resolvida entre o carnaval (trágico) da História e um outro antiquíssimo (e mais humano) rumor da história. «Onde houver Bem e Mal» — lemos em O Senhor de Herbais — «a justiça nunca será reposta.» Mas, sabemo-lo há muito, o mundo precisa de se reger (de ser regido) por batutas dualistas, desvirtuando inevitavelmente os resultados dessa equação viciada. Por isso, o grande problema do mundo — e do espectáculo (de Psalmodia) dentro do espectáculo (da ópera) dentro do espectáculo do mundo – é o da reposição de uma justiça imanente, para além do Bem e do Mal.
O libretto de Metanoite estrutura-se também em canto (odós, caminho, passagem; e óde, ode, canto) e contracanto (párodos), mas com todos os ingredientes que permitem minar este dualismo – como numa peça do teatro do absurdo, até certa altura mais próximo do universo radical de Beckett, depois, à medida que se caminha para o apoteótico e distópico final, evocando mais o nonsense de Ionesco. A figura de Psalmodia gere as oposições e desfaz o seu maniqueísmo, assumindo-se como o compromisso possível entre presente e futuro, e como representante de uma estética do «entre», do não definitivo. O canto, que vem do segundo grupo de figuras e do lugar da Rapariga, de Ana e Llansol, é a música leve e jubilosa dos que apostam no quase nada de uma existência nua e intensa, e se abrem ao Aberto do mundo. O contracanto é a cegarrega dissonante e estridente de clones e posers que não vêem e não sabem «o que deseja o que o desejo pode», nem entendem que «o uso do desejo é preferível ao uso do poder». Qualquer destas duas partes pode (e deve) provocar o riso como postura ética: o primeiro grupo, mais através da ironia subtil dos vencidos que acreditam no poder da metamorfose e (com Spinoza) que podemos «sentir e experimentar que somos eternos»; o segundo, pela paródia hilariante de um universo da «kultura» que se afunda no seu próprio delírio de audiências, orçamentos, néons e gadgets, e de uma precária eficácia instrumental esvaziada de conteúdo.
A suspeita em relação a visões dualistas é ainda evidenciada pela própria estrutura do libretto, com o seu desenvolvimento em três quadros e três momentos alternantes. O primeiro quadro propõe o espectáculo de Psalmodia como materialização sensível de um mundo desejado e desejante: daí o ser designado, num termo-síntese do qual irradia a sua intencionalidade, como «sonóptica com faro». No segundo somos confrontados com a visão do Produtor e as suas quimeras de uma cultura do futuro (que, como tudo aquilo que se não faz para um presente, está destinada a não ter futuro). No terceiro é-nos dado assistir ao descalabro contratual (e, assim, à inviabilidade do espectáculo), já que o contrato que se vai esboçando é um contrato com a técnica, mas não com o Vivo, com o «pacto de Bondade» proposto pela Rapariga do Fulgor, um contrato que se revela incapaz de conciliar a criação com a visão. Como contraponto dos três quadros, três momentos em que as vozes parecem vir já claramente do lado de lá da linha divisória da «metanoite»: as vozes da mulher (Ana-Llansol, últimas testemunhas humanas da clonização da arte), da Rapariga (a que «teme a impostura da língua», a desmemoriada — porque é só presente vivo —, a do sonho e do fulgor) e do cão Jade (um «ser sendo» que sabe como «desculpir o humano» dos medos que o tolhem). É uma galeria, múltipla e una, do que há de mais vivo no Vivo, no meio de um mundo a caminho de um futuro delirantemente dissonante, e que irá implodir para dentro de si próprio, tal como a arte que gera, progressivamente transformada no seu próprio medium, estéril, impraticável e vazio. E a viagem faz-se a bordo de um «comboio hidrofóbico»: porque a água é o elemento de um fado a que este país não soube furtar-se, nem compensar com a sua dose de liberdade de consciência.
As cenas da preparação do espectáculo (gorado) a que aqui se assiste deixam no ar dilemas e perguntas: como conceber o grande teatro do mundo de modo a que nele se possa afirmar a forma do humano? O humano será já hoje um fóssil, como sugere, no segundo quadro, a máquina que lê o pensamento e grava a palavra? Já estivémos mais perto da sua efectivação? A técnica desumaniza? Quando poderá o humano voltar a ser o que a visão ofertou a alguns e a História lhes retirou? Quando é que os olhos do humano estarão melhor apetrechados para ver o invisível, arriscando entrar no brilho perigoso e irresistível do Sol da metanoite? O que é, afinal, a metanoite?
A metanoite é o que nos espera do outro lado de uma fronteira que poucos atravessam: uma noite, mas de luz, um lugar de risco que é preciso atravessar para crescer na intensidade. Desde O Livro das Comunidades que encontramos na Obra de Maria Gabriela Llansol três noites: a do deserto, noite do agir em vida, travessia cega que os Gregos subordinavam a um destino que o texto de Llansol desconhece, porque nele o caminho da Figura, o «nocturno trabalho figural» (Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 167), é o da busca de uma energia autónoma (dos semelhantes na diferença); a do exílio, noite escura dos banidos do tempo, do esquecimento a que a História e os seus poderes os votaram; e a do espírito (daquele espírito que é manifestação de uma energia do corpo), da futura noite da ressuscitação sem ressurreição, da salvação sem deus, de um «espaço edénico» a-teológico, que pode estar à espera de cada um de nós na dobra de qualquer experiência, do outro lado da fronteira da metanoite. A metanoite seduz, e mete medo. Os perigos inerentes ao poço da metanoite, com a sua natureza de «imagens tempestuosas», são inseparáveis dos prazeres do jogo da escrita, da criação e do encontro de si (a psicologia jungiana chama-lhe «processo de individuação», e nele o papel da arte é também central): porque é aí que encontramos o que não sabemos, mas precisamos de saber, porque é aí que arde a «chama num interior de anel», ou seja, a luz que torna possível o «eterno retorno do mútuo» e a emergência do humano – aquela categoria que o texto de Llansol desde sempre desloca do centro para a periferia e questiona, o não realizado, já fóssil e ainda quimera. A metanoite, na definição que dela dá em O Ensaio de Música (pp. 13-14), é o terreno onde se ilumina a transparência deste enigma:

«Há, no real, um lugar envolvente e sublime, a que chamo metanoite, que está para além da noite,
quando se caminha porque é o único caminho,
obscura,
mas, depois dela,
o corpo volta a envolver o querer, o paladar age com a certeza, a visão rejubila em metamorfose. É nesse momento
do corpo dividido, mas já correndo,
que é noite, que será sempre noite, sem trevas, que a metanoite tem o poder de seduzir o texto, e de o fazer esvair-se do que é.»

Nesse momento poderemos talvez estar às portas do «espaço edénico (...) criado no meio da coisa, como um duplo feito de novo e de desordem» (M. G. Llansol, «O Espaço Edénico»). O contrato para a produção do espectáculo de Psalmodia não prevê tal momento. Mas quem sabe se, encostando o ouvido à pequena fresta que abre para um qualquer paraíso sem anjos, ali mesmo ao dobrar da esquina, não ouviremos ao longe — se isso é possível, e humano —, sobrepondo-se à «beleza ensurdecedora» do espectáculo, uma música sem mancha de ruído... Semelhante à língua do poema, que segue outro rumo e deixa ouvir outro rumor (brumor) que não é o da língua comum, geralmente atravessada pela «impostura». Em O Senhor de Herbais (p. 55), Llansol explica:

«... há um rumor, uma espécie de brumor, no mundo. É uma coisa que o atravessa e murmura. A linguagem ruidosa que falamos como aflitos ou velozes não lhe presta ouvidos (...) É um rumor envolto numa bruma sem linguagem. Ainda não foi codificado. [Vem de] antes da infância...» E, como diria Caeiro, e Llansol confirma pela boca de Jane Austen e de Diotima, não há mistério nenhum nisto. Há e não há, como sempre nos textos de Maria Gabriela Llansol. De todas as figuras de Metanoite, talvez só o cão Jade possa verdadeiramente entender essa língua.

© Henrique Figueiredo

29.7.07



O PRIMEIRO CONTO DE LLANSOL


Clique na imagem para ler o conto!

O primeiro texto de ficção publicado por Maria Gabriela Llansol é o conto «Empregada», aparecido no Diário de Notícias de 12 de Setembro de 1957,e logo com uma gralha de palmatória no nome da autora: Gabriela «Lauzol»!
Texto já sintomático, se não de um estilo, pelo menos de uma atitude. Radical, e anunciando caminhos que os «pobres da História» e os «acentrados» da sociedade seguiriam mais tarde, nos livros posteriores a O Livro das Comunidades. Mas também a linguagem deixa já entrever a escolha inconfundível da via da imagem, e a recusa quase programática da metáfora — mesmo quando esta parece estar presente: «As groselhas são bagas vermelhas. O sumo desliza em gotas de volúpia pela boca, suja o pescoço e o vestido. As laranjeiras são redondas. Há sol dentro de cada groselha e dentro de cada laranja.» Como no dicionário de uma estirpe com olhos de ver na dobra do mundo.Ou como num desenho de Klee: o recorte nítido da coisa, trepassada por um olhar que vê o que vai lá dentro, e existe. E, aqui e ali, uma postura que evidencia já uma «crítica civilizacional» que se iria acentuar e transformar em marca inconfundível do modo llansoliano de ver o mundo:«As paredes do bar estavam pintadas de verde escuro. Mas nenhum desses verdes era igual ao dos plátanos que ladeavam a casa.» E a presença de uma cabeça que não pensa o que sente (o corpo), mas sente o que o corpo pensa (com pensamento já libidinal?). Aossê avant la lettre, intuição da sua bi-humanidade, talvez a maior das revoluções na hermenêutica pessoana? — «No bar, como na estrada, deslizaram ondas de ruídos, essências e cores. Ondas mortas, pensaria Isabel, se a sua cabeça pensasse o que sentia.»

28.7.07


HISTÓRIA DE UM SÍMBOLO



Foi pouco depois da partida definitiva de alguém que era o centro de um grupo de legentes, grande inventor de formas de vida, como disse Llansol, e o legente por excelência do seu Texto. Eixo que sustentava o feixe de leitores, afim e diverso, que à sua volta se congregara e formava já um ser de pensamento e de afecto, múltiplo e de vários corpos. Uma inflorescência humana.
Num passeio ao Cabo da Roca com uma amiga brasileira, em finais de 2003, lá estava ela, sozinha, seca e confiante, no meio das ervas e dos chorões verde-pálidos e invernais. Abandonada, mas bela e inteira, respirando aquela aura de belo-mais-belo que envolve as coisas que esperam o olhar que as faça viver. Exemplar único, com a configuração de uma
flor umbelada.
Um olhar a descobriu, já no momento da retirada. Uma boca a nomeou e arvorou em símbolo: flor umbelada, emblema de um tronco de muitos ramos, todos igualmente importantes. E foi acolhida por um grupo que procurava entender o que significa ler o mundo e «evoluir para pobre», feito de matéria humana comum, como, afinal, comum era aquela flor que não identificámos logo. O tempo e os ventos ásperos haviam-lhe dado outro aspecto e consistência.


«Cravo romano» (armeria pseudoarmeria)

Só mais tarde, este ano, noutra visita ao mesmo lugar, lhe descobrimos o nome, o comum e o científico, a condição e as cores: é o «cravo romano», armeria pseudoarmeria, endémica na península de Lisboa. No seu novo estado de floração primaveril é uma inflorescência rasteira, corrente no litoral norte, planta humilde, mas que pode atingir o porte de um arbusto médio. De repente, começou a aparecer por todo o lado, modesta e exuberante, em gradações de cor que vão do branco ao verde-pálido e do rosa ao castanho claro.

A solitária

Colhemos mais algumas. Mas é a primeira, a solitária, achado fortuito em estado de beleza austera e forte, que nos acompanha até hoje em todos os eventos acontecidos desde 2004. Evoluiu, com o cão Jade, para ícone identificativo dos Cadernos Llansolianos, e acabaria por se transformar na estrela que guiará os destinos do Espaço Llansol. Sofreu alguma coisa com o tempo, algumas hastes perderam-se, mas continua aí, resistente, a precisar de mais cuidados, mas ainda e sempre emblemática.


Como o selo de reis e imperadores, tem uma guardiã, mas não é insígnia de poder. Assume-se como imagem de igualdade e despossessão, rosa sustentável de um projecto de escrita, de vida, de leitura: «a rosa da inflorescência – o que a faz rodar – é o elo da cura e da beleza» (Amigo e Amiga, 159). Rosa de um jardim que o pensamento permite. Flor pobre de um bosque que a despossessão habita. Bela flor umbelada.
J. B.

27.7.07


Teses sobre a Obra de Llansol

Duas teses de doutoramento recentes, uma da Universidade Federal de Minas Gerais e a outra da Universidade de Lisboa, debruçam-se sobre a Obra de Llansol, analisando-a na sua relação intertextual e figural respectivamente com os textos e as figuras de Thérèse Martin de Lisieux e de Hölderlin, Pessoa e Espinosa. A primeira intitula-se Luz Preferida: A pulsão da escrita em Maria Gabriela Llansol e Thérèse de Lisieux, e é da autoria de Vania Maria Baeta Andrade, psicanalista de Belo Horizonte:

A segunda foi defendida por Cristiana Vasconcelos Rodrigues, docente da Universidade Aberta, na Universidade de Lisboa em Junho passado, e intitula-se O Atrito do Mundo. Espinosa e Hölderlin pela mão de Llansol:




30 anos de
O Livro das Comunidades


Colóquio em Liverpool
e
nova edição ainda este ano




Claire Williams e Raquel Ribeiro organizam em Setembro na Universidade de Liverpool um Colóquio destinado a assinalar os trinta anos da publicação do «livro-fonte» da Obra de Llansol. Prevê-se ainda para este ano a reedição deste livro pela Assírio & Alvim, com imagens de quatro pintores portugueses.

Transcreve-se o «Call for papers» do Colóquio de Liverpool:


Portuguese Section, School of Cultures, Languages and Area Studies, University of Liverpool

Symposium
Maria Gabriela Llansol

30 years since O Livro das Comunidades

Wednesday, 5 September 2007

Blackburne House, Hope Street, Liverpool

Guest speakers:
Paulo de Medeiros (Utrecht)
Pedro Eiras (Porto)

Eu sei que, pouco a pouco,
passaremos a viver noutro fundo
de livro e de linguagem.
E teremos, então, uma inquietação mais simples.

MGL, Um Beijo Dado Mais Tarde

The Portuguese Section of the School of Cultures, Languages and Area Studies at the University of Liverpool invites scholars and legentes (readers) to submit abstracts for the one-day Symposium to celebrate the thirtieth anniversary of the first edition of unique writer Maria Gabriela Llansol’s great work O Livro das Comunidades (1977). This book, the first in the Geografia dos Rebeldes trilogy, sets out Llansol’s philosophical and literary project for the future and paves the way for her following works. For the Symposium, we especially invite abstracts for papers, literary, philosophical or interdisciplinary, that address (but are not limited to) the following issues:
– How far can O Livro das Comunidades be taken as a watershed in Llansol’s work, influencing the way we read her other texts?

– How could a re-reading of O Livro das Comunidades, 30 years since its publication, pave the way for unexpected encounters between literature and other artistic fields (such as music, film, art, architecture, theology)?

– How could one relate, cross or interweave other authors (who may or may not be the Llansolian figures of Musil, Kafka, Nietzsche, San Juan de la Cruz, Hadewijch, etc.) in the light of O Livro das Comunidades?

– How has Llansol’s work been received, before and after 1977;

– Can Llansol’s writing be translated out of Portuguese and into other languages?


Papers may be presented in English or Portuguese and must not exceed 20 minutes. Proposals may be individual or collective. Please submit an abstract of approx. 300 words and full contact details (including e-mail). We warmly encourage postgraduate submissions.
Please send proposals by e-mail to:

Raquel Ribeiro (raquel.ribeiro@liverpool.ac.uk) or
Claire Williams (cleliwil@liverpool.ac.uk)
or by post to:
School of Cultures, Languages and Area Studies

University of Liverpool

Modern Languages Building

Chatham Street

Liverpool, L69 7ZR UK

26.7.07

LLANSOL E O GRANDE PRÉMIO
DE ROMANCE E NOVELA DA APE (II)


A atribuição do Grande Prémio de Romance a um livro como Amigo e Amiga (mas poderia ser qualquer outro de Maria Gabriela Llansol) suscitou, se não polémica, pelo menos comentários muito diversos e uma pequena troca de argumentos entre o porta-voz do júri, Luís Mourão, e Eduardo Pitta, nos respectivos blogues. Vale a pena fazer aqui uma resenha de alguns dos comentários e das posições assumidas, que, quando não são de adesão incondicional ou de rejeição in limine, elucidam bem sobre o lugar ímpar e não situável desta Obra. Romance? Não romance? Talvez apenas o pensamento de algumas imagens...


RTP – Rádio e Televisão de Portugal

Escritores destacam singularidade da escrita de Gabriela Llansol

A singularidade da obra de Maria Gabriela LLansol, distinguida com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, foi posta em relevo no testemunho pedido pela Lusa a três escritores. "É uma grande escritora, muito inovadora, sobretudo ao nível da língua", qualificou Vasco Graça Moura. Na opinião do escritor, depois corroborada por Rui Zink e Gonçalo M. Tavares, a escrita de Llansol não é de fácil acesso. Questionado sobre se a escritora tem seguidores, como ocorre por exemplo com Lobo Antunes, o poeta e ficcionista, também já premiado com o Grande Prémio da APE pelo romance Por detrás da magnólia, invocou precisamente a singularidade da escrita da autora para excluir essa possibilidade. "Ela é tão caracterizadamente pessoal - disse - que não se pode falar de continuadores". "Mas tem gerado - observou - um esforço de compreensão importante, da parte de homens como Eduardo Lourenço ou Eduardo Prado Coelho, que resulta em benefício da própria literatura". Na opinião de Rui Zink, Llansol é uma escritora "de difícil acesso", com "um lugar único" na literatura portuguesa, "nem acima nem abaixo dos nossos maiores". A escritora, disse, construiu um universo "pessoal e intransmissível", de algum modo "hermético no jogo de referências, mais do que no jogo formal". Para Gonçalo M. Tavares, os livros da autora de Amigo e Amiga, a obra premiada, "não têm valor como um todo mas pelo brilho de algumas frases, duas ou três frases que às vezes surgem e que valem o livro". O discurso por vezes flui "neutro", durante páginas e páginas a leitura faz-se sem sobressalto "e, de repente, há frases que se podem guardar", frases que a memória e a sensibilidade do leitor reterão por muito tempo. A escritora, disse ainda o autor de Jerusalém, escreve "fora de qualquer género literário" e os seus livros "não são para ser lidos como outros são". "Não se lê Thomas Mann - exemplificou - como se lê Maria Gabriela Llansol. E os seus livros devem ser lidos com muita atenção". Para ler Llansol, atendendo precisamente à singularidade do seu discurso, Gonçalo Tavares crê ser necessária "uma disposição prévia". "O leitor tem de se preparar", aconselhou.

Agência LUSA / 2007-05-18 18:25:01



A CASA DOS SONHOS DO SONO [Blog, Carlos Vaz]

Parabéns Maria Gabriela Llansol! Amigo e Amiga, sem dúvida, uma obra ímpar na Literatura Portuguesa. Há já algum tempo que ando a trabalhar num pequeno texto sobre Amigo e Amiga de Maria Gabriela Llansol. Desde o ensaio Diários de um Real-Não-Existente (Ed. Labirinto) que não escrevia sobre os textos llansolianos, por ter sentido a necessidade, facilmente explicável, de me afastar da escrita da autora, para poder encontrar a minha. Precisei, sobretudo, de distanciar-me da experiência maravilhosa de ser um legente. Da autora não tenho "obras favoritas", pois todas são únicas e belas, mas se alguém me pedisse uma sugestão, apontaria as seguintes: os três diários (Finita, Um Falcão no Punho, Inquérito às Quatro Confidências), Causa Amante, Onde Vais Drama Poesia... e, por último, a obra Amigo e Amiga. Hoje, tive uma surpresa bem agradável, ao visualizar os blogs de Paulinho Assunção e de Luís Mourão (Manchas), descobri que M.G.L. foi a vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE) 2006, com Amigo e Amiga. Para quem não sabe, não é a primeira vez que Maria Gabiela Llansol é galardoada com este prémio, uma vez que já em 1990 foi distinguida com o mesmo prémio, na obra Um Beijo Dado Mais Tarde.

***

De António Brito Santos, Leitor de Português em Heidelberg, para um amigo dele, «pouco literário»:

From: "Antonio de Brito Santos"
Date: June 17, 2007 3:19:50 PM GMT+01:00

To: "João Barrento"

Subject: Notas sobre Literatura


Meu caro João B.

Julguei que podiam despertar a curiosidade do HERR PROFESSOR estas notas sobre literatura, i.e., a propósito da pergunta do tal "amigo pouco literário" sobre M.G.Llansol. Neste campo, considero-me mais "Promenadenmischung" ("rafeiro" não diz o mesmo) do que "cão de raça". Sendo desplante — clique e já está! abraço
ABS

Q: [o amigo] ... "Já tentei por várias vezes ler a Gabriela Llansol mas é extremamente penoso... pergunto-me sempre: para quê torturar assim os leitores???"

A:
À laia de "conversa de compadres", subjectivo, a ciência de férias, a ver se consigo ilustrar-te:
— Quando um texto se encerra hermeticamente, negando-se-me, não me deixo torturar, ¡allá él!.

— Há textos, prosa poética, p.ex., que produzem uma espécie de encantamento - aí deixo-me embalar e entrego-me, sem pretender "entender" (será o caso da G.Llansol, 3 frases valem o erforço do livro todo).
— Qualquer texto, por mais elogiado que ele seja, que não consiga "chamar por mim", não merece o meu estatuto de leitor, recuso-me a colher seja o que seja.

— Autores famosos (Saramago O Homem Duplicado, Lídia Jorge A Última Dona...) ofendem-me com livros mal escritos e às primeiras páginas desisto e... adeus até ao meu regresso.

— J. Cardoso Pires, nada propenso à auto-reflexão das personagens ou ao psicologismo (que eu aprecio!), convenceu-me pela soberba capacidade arquitectónica, pela justeza das personagens, pela riqueza dos registos linguísticos, pela sua ascese que se nega a efeitos retóricos balofos, e last not least pela sua ética emancipatória. Dignas de nota as suas 3 figuras femininas: Maria das Mercês (Delfim), Mena, de quem até o Eduardo PC e um outro ainda "se enamoraram" como eu (Balada), Alexandra, a mais admirável figura feminina de toda a Literatura portuguesa - Antonius dicet (A. Alpha, com fracos na composição, é certo). JCP é o meu "mestre narrativo".

— A. Faria conseguiu ganhar-me para o acompanhar na sua sofrida aventura da "Tetralogia Lusitana".

— E há Franz Kafka sem adjectivos (a obra ficcional toda!): que me arrasta para regiões onde não são chamados nem o coração da razão nem a razão do coração, e me leva a sentir o mais profundo de "SER".

— E temos o Fernando António que, como mais ninguém, ousou por e para todos nós a amarga aventura do absurdo de existir — sem remissão! (Tenho para mim que todo o FP é suicidário e o Desassossego uma droga perigosa
— ou leva espíritos fortes a assumir heroicamente a humana conditio sem lenitivos).
— E temos ainda o fabuloso Don Quijote para rirmos e chorarmos a todas as horas em todas as idades. "E pronto. Eis-me declarado (no orig.: nascido). Cheio de sede e fome. /António é o meu nome." (António Gedeão: "Poema de me chamar António" — Poesias Completas [1956-1967], poema final)



Manchas [Blog de Luís Mourão]

Sexta-feira, Maio 18

Grande Prémio do Romance da APE – 2006
Para Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004, de Maria Gabriela Llansol.


O júri foi constituído por Silvina Rodrigues Lopes, Ana Mafalda Leite, Luís Mourão, Cristina Robalo Cordeiro (que votou em Cemitério de Pianos, de José Luís Peixoto) e Fernando Pinto do Amaral (que votou em A Ronda da Noite, de Agustina Bessa-Luís).

posted by Luís Mourão @ 23:54

***

Manchas [Blog de Luís Mourão]

Quinta-feira, Maio 24


Contra?

Eu sei que é uma pequena notícia, e que o essencial é dito: Maria Gabriela Llansol venceu o Grande Prémio APE 2006. Mas certos deslizes semânticos estragam o bom jornalismo, e são menos desculpáveis ainda num Jornal de Letras, Artes e Ideias. Depois de informar que o júri deliberou o prémio por maioria de três votos, a notícia não assinada acrescenta: “votaram CONTRA Cristina Robalo Cordeiro e Fernando Pinto do Amaral, que preferiram, respectivamente, Cemitério de Pianos, de José Luís Peixoto, e A Ronda da Noite, de Agustina Bessa-Luís” (sublinhado meu, JL nº 956, de 23 de Maio a 5 de Junho de 2007, pag. 5). Desde quando, e logo em literatura, preferir é ser contra aquilo que não se prefere tanto?

posted by Luís Mourão @ 21:08

A impossibilidade de negar

No mesmo JL, Mafalda Ivo Cruz assina um notável pequeno texto sobre a sua alegria pelo prémio atribuído a Llansol. Dois excertos:

Há obras que se podem ler até ao infinito pois não acabarão nunca de se explicar. São obras cujo corpo (a explicação) é um recomeçar a falar numa ordem que de cada vez se recria e se organiza, com uma disciplina sempre diferentes, mas sempre igualmente impositiva e luminosa. Exactamente como o falar das pessoas com quem vivemos, que faz parte do nosso labirinto pessoal. E são a nossa vida íntima mental. (...) Ouvindo, como já ouvi tantas vezes, outra versão da Oferenda Musical enquanto escrevo este texto não posso deixar de aproximar a leitura de um e da outra. Qual será a substância da força que se limita a elevar-se, a ficar sempre ao lado do agir e da clarificação que não cessa? O que define um grande autor é a impossibilidade de o negar. É que em nós não possamos fazer nada contra ele. (...)


PS: Precisamente: nada contra ele. O que não impede de se poder preferir outro. Ou de ter votado, no ano transacto, num romance cuja "ideia de literatura" é substancialmente diferente.

posted by Luís Mourão @ 21:40

***

Manchas [Blog de Luís Mourão]

Segunda-feira, Maio 28


Grande Prémio de Novela e Romance APE/IPLB 2006

A obra de Maria Gabriela Llansol marca um trajecto singular na literatura portuguesa contemporânea, pela forma consistente e intransigente como tem procurado novos caminhos para a escrita do romance. Como sempre na sua obra, o vivido comparece sem os traços vulgares dos decalques realistas. O que a sua escrita visa não é a restituição de um real reconhecível na sua legibilidade imediata, a falsidade de um conhecimento de apropriação, mas o encontro do fulgor que cada ser ou situação comporta, aquilo que o vivo tem como potência de sentido e que é a tarefa e a responsabilidade de existirmos. Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004 é um romance particularmente exigente face a esta responsabilidade, pois que parte do confronto com “O Golpe”, que é sempre a inscrição da morte no nosso existir. Sem qualquer pathos sentimental ou ilusão de transcendência, Amigo e Amiga cria a vida pós-dor. As suas múltiplas figuras, algumas vindas de romances anteriores, constroem a aliança entre o que perdura, o que muda subitamente de sentido e o que emerge para a restante vida. A todas acolhe o silêncio, aquilo que preserva o texto e o existir da banalidade sufocante, aquilo que reconduz a ética da literatura — ou de qualquer outra tarefa — ao seu lugar de invenção de uma realidade que se mede apenas pela capacidade de devirmos dentro dela aquilo que de nós próprios desconhecíamos.

posted by Luís Mourão @ 11:27

***

Manchas [Blog de Luís Mourão]

Sexta-feira, Junho 1

E Agustina?

Sim, um júri deve argumentar. Deve tornar o mais claro possível aquilo que juridicamente se chama o seu “itinerário cognoscitivo”. É por isso que quero aqui responder, em meu nome — um júri é sempre uma soma de nomes individuais, convém não esquecê-lo — à pergunta que algumas pessoas me fizeram por mail: que me levou a não preferir A Ronda da Noite? Desde logo, esta nota curiosa. A pergunta envolveu sempre A Ronda da Noite, e não Cemitério de Pianos. Provavelmente, mera coincidência. Mas acertada, no que me diz respeito. Considero José Luís Peixoto um autor de indiscutível talento, mas ainda à procura de poder “dizer qualquer coisa” com o talento que lhe calhou e que tem oficinalmente desenvolvido através de vários itinerários formais. Neste momento, José Luís Peixoto faz-me lembrar aqueles antigos patinadores de leste: potencial técnico irrepreensível, mas coreografia fria, com vida não vivida por dentro. O seu primeiro romance teve o sangue e nervos mastigados que nos romances seguintes como que se ausentou. O melhor que se pode desejar a um autor assim é que a vida não lhe seja fácil — sem que isto, naturalmente, seja desejar-lhe mal. O grande romance virá. Agora A Ronda da Noite. Muito simplesmente, é uma obra-prima. Provavelmente, é também o melhor romance de Agustina. Isto não é um juízo eufórico, é um juízo, digamos, histórico. Porque esta obra-prima poderia ter sido escrita há oitenta ou cem anos atrás. Pelo tipo de personagens, eventos, reflexão e linguagem — nada em A Ronda da Noite nos abre directa e flagrantemente a contemporaneidade. Agustina não é contemporânea, é como as tragédias gregas – está lá tudo, só temos de “traduzir” isso para o nosso tempo e os nossos termos. Com todos os riscos que isso envolve — e são muitos, e farão de nós, no futuro, críticos que erraram o seu tanto — um prémio de romance de 2006 deveria ler 2006 sem a mediação do “clássico”. É uma forma de dizer. Mas é a minha forma de dizer, e é a minha assinatura que está lá. E a assinatura, podendo ser entendida como vaidade (que também é) e como responsabilidade (que também), é mais radicalmente a marca da contingência.



Manchas [Blog de Luís Mourão]

Sexta-feira, Junho 29


Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 4

Com a turma de mestrado, falamos longamente acerca das possibilidades de autoria deste texto:

Alcançamos, seguindo uma via de silêncio mútuo, o cimo de uma ladeira onde, além de podermos ver, debruçados numa ponte, as linhas férreas por onde seguiam andorinhas, vislumbrávamos as linhas curvas da paisagem que ensinam os olhos e libertam, sem palavras, os soluços da garganta.


Ninguém acertou, o que foi bom, porque assim o debate foi muito produtivo. As hipóteses mais interessantes foram estas:

1. Algures entre um epígono de Eça e um Eça muito melhorado, ou que tivesse com a paisagem uma relação metafísica “naturalizada”, quer dizer, sem necessidade de sublinhar o sublime, incorporando-o apenas como reacção natural e quotidiana.

2. Neste sentido, poderia ser um texto de um Vergílio Ferreira com o pathos controlado, embora o encaixe sintáctico seja substancialmente diferente do seu modo nervoso de escrita.
3. A hipótese que mais agradou foi a de que se tratará de um texto recentemente encontrado na arca pessoana, atribuído a um novo heterónimo.
4. Finalmente, causou uma viva estranheza o facto de as ligações dentro do parágrafo terem o acerto pesado de uma redacção de quarta classe — aquele “onde” magoa mesmo o ritmo — e o que está a ser dito ter a gravidade da mais funda sabedoria.
Publicarei de novo o texto amanhã, de um modo que tornará a sua identificação quase imediata.

posted by Luís Mourão @ 09:52

***

Sexta-feira, Junho 29

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 5

Três leitor@s devidamente identificados arriscam:
1. Torga, por causa das serranias, andorinhas e soluços da garganta.

2. Mário de Carvalho, por um certo sabor a pastiche, certamente de um dos seus romances “históricos”.

3. Miguel Real, porque parece a reconstituição de uma linguagem de época.
O meu muito obrigado aos três leitor@s. Ninguém acertou, mas a argumentação é boa, e obrigar-nos-á a conclusões ainda mais interessantes quando se desvendar a autoria.

posted by Luís Mourão @ 19:04

***

Quarta-feira, Julho 4

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 10

Pedro Eiras: hum... Ruy Belo?...
Excelente escolha! Mas não, ainda. O que naturalmente é irrelevante, como já se terá compreendido. Relevante será uma autoria suportar tantas supostas autorias. O que, não sendo novo, convém re-afirmar de quando em vez.

posted by Luís Mourão @ 00:07

***

Quinta-feira, Julho 5

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 11

Finalmente, a revelação. Os considerandos ficam para mais tarde.

Alcançamos, seguindo uma via de silêncio mútuo, o cimo de uma ladeira onde, além de podermos ver, debruçados numa ponte, as linhas férreas por onde seguiam andorinhas, vislumbrávamos as linhas curvas da paisagem que ensinam os olhos e libertam, sem palavras, os soluços da garganta.

Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, p. 79


Faz pensar, não é?

posted by Luís Mourão @ 00:28

***

Quarta-feira, Julho 11

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 12

Há um lado fútil nestes exercícios de adivinhação — demo-lo por adquirido e passemos ao que se pode pensar. Há depois uma crítica justa: a questão do falso fragmento. Apresentar-se como podendo ser significativo de uma autoria um excerto descontextualizado e que, na sua formulação pontual, até não terá as características que geralmente tornam evidente aquela autoria em particular. Digamos em avanço que o excerto de Llansol não contém de facto as suas características particulares, aquilo que a torna diferente e imediatamente reconhecível. Mas isso não só não afecta em nada a qualidade evidente do excerto, como não obsta a que o excerto seja de facto “significativo” no contexto do livro de que provém. As várias hipóteses de autoria que foram sendo avançadas nada têm de estranho, por mais singular que seja o lugar e a linhagem de Llansol. Ruy Belo, Torga, Mário de Carvalho, Miguel Real, Eça, Vergílio Ferreira, novo heterónimo pessoano — tudo apenas quer dizer, neste ponto muito particular, que quando se trata de fazer falar o essencial do comum, os pontos de convergência são maiores do que os estilos individualizados. Não retiro daqui qualquer lição de essência humana, apenas a ideia de que, historicamente, somos atados pelos mesmos feixes comuns, que vamos desfiando conforme podemos. E quanto mais próximo da dor nua é esse feixe, mais um certo ar de comum se torna reconhecível. Precisamente isso que, em certos momentos radicais, para além da linguagem ou de qualquer outro entendimento prévio, permite que nos reconheçamos naqueles que nos são inteiramente desconhecidos. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer tempo do mundo — o irredutível tem também a marca do comum. Sem que deixe de ser verdade que o comum se dá a ver através das diferenças que o constituem, como tentarei exemplificar a seguir com casos tão diferentes como Eric Clapton e Keith Jarrett.

posted by Luís Mourão @ 10:11



Blog Da Literatura

Domingo, Julho 15, 2007


Alhos & bugalhos

Não, Carolina, a Maria Gabriela Llansol não faz parte do grupo de autoras que cito aqui (a título meramente indicativo) porque a Llansol, uma grande autora, uma excelente prosadora, não é romancista. Tão simples como isto. Convém não confundir as coisas.

posted by Eduardo Pitta at 12:10 PM

***

Manchas [Blog de Luís Mourão]

Terça-feira, Julho 17


Vamos lá então à argumentação..
.

... meu caro Eduardo Pitta. Estou disposto a enfiar o barrete: votei Llansol para um prémio de romance, certo? E o facto de não estar sozinho nisso, nem o facto de aqueles que não votaram em Llansol não a terem excluído por não ser romancista, não quer dizer nada mais do que aquilo que diz — que não estou sozinho no facto de considerar Llansol romancista. O que me parecia (me parece) pacífico. Mas argumente lá, até pode ser que eu concorde...

posted by Luís Mourão @ 00:27

***

Blog Da Literatura

Terça-feira, Julho 17, 2007


Atitude

Meu caro Luís Mourão Luís Mourão, pode crer que não me moveu qualquer intuito de remoque a quem quer que fosse, muito menos a si, e menos ainda por causa do prémio (embora, nesse particular, tivesse preferido ver atribuído à autora de Finita o Prémio Vida Literária). Sucede que, tendo eu citado aqui o nome de meia dúzia de autoras capazes de contar histórias (no sentido tradicional e formal do termo) sem com isso abdicarem da inteligência — e sendo certo que a minha lista não esgota os bons exemplos, pois poderia ter acrescentado Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Luísa Dacosta e talvez mais duas ou três —, uma autora devidamente identificada, a quem, por reserva de privacidade, chamei Carolina (um nome bonito), me interpelou com «E então Maria Gabriela Llansol...?» Limitei-me a explicar à senhora o meu ponto de vista. Llansol grande autora? Verdade. Llansol prosadora excepcional? Verdade. Llansol romancista? Não. É a minha opinião, naturalmente falível. Não faço história literária, nem tenho responsabilidades de fixação do cânone. E a esta hora do campeonato Maria Gabriela Llansol dispensa bem o que sobre ela possam pensar os contemporâneos. Entendo que Llansol não faz ficção no sentido em que a fizeram Jane Austen, Virginia Woolf ou Carson McCullers (e as portuguesas citadas). O que ela faz, e muito bem, é algo que podemos situar entre a literatura de ideias — que no seu caso dispensam as aspas, sendo o contrário das frouxas e importadas que dei como características de muita da má “ficção” que entre nós se publica — e o ensaio de índole memorialística. Digamos que é mais uma atitude e menos um género. É justamente aí, nessa atitude, que ninguém lhe leva a palma.

posted by Eduardo Pitta at 11:35 AM

***

Manchas [Blog de Luís Mourão]

Quarta-feira, Julho 18


Do romance (também) como atitude

Subscrevo tudo tudo, meu caro Eduardo Pitta. Acrescentarei apenas que, nestas coisas, tudo depende de quem escolhemos para delimitar implicitamente um género. É certo que Llansol “não faz ficção no sentido em que a fizeram Jane Austen, Virginia Woolf ou Carson McCullers”. Mas talvez se pudesse dizer que faz ficção no sentido em que a fizeram Sterne, Musil ou Sebald, ainda que todos e cada um por si tenham atitudes bem diferentes face ao fazer ficção. Mas o que seria do género romance se não tivesse "costas largas"? Ou não permitisse as atitudes singulares que lhe alargam permanentemente as fronteiras? E pouco importa que o alargar de fronteiras se faça por acidente: um raio sobre o lápis — usando o título na sua falsa literalidade —, e logo se perde o caminho que talvez nunca se tivesse realmente traçado. Mas não se diz que o espírito sopra onde quer? Mas chegado aqui é melhor deter-me, ou ainda começo a falar dessa ideia altamente esquisita de o romance ter vida própria independentemente dos romancistas (que tem, que tem...).

posted by Luís Mourão @ 10:37