30.3.21

 O ÁLBUM DO BEBÉ

ou Biografia de uma infância

Vamos hoje até ao princípio de tudo. O horizonte são as origens. Por vezes há-as duplas, mesmo múltiplas. Escolhemos muitas origens ao longo da vida, e Maria Gabriela Llansol fê-lo certamente. Em 1969, nos primeiros anos do exílio e já de preparação do que seria a sua primeira Escola, a da Rua de Namur em Lovaina, Gabriela regressa um dia às suas raízes, propondo-se levar a cabo um projecto que começa por intitular Leitura de um Álbum - Biografia de uma Infância. Esse álbum existe, está no seu espólio fotográfico e foi organizado pelo pai com fotografias que ele próprio fez desde os primeiros meses da filha, e até aos seus três/quatro anos.

O álbum abre com a seguinte inscrição do pai: «Álbum de fotografias da minha querida filha / Maria Gabriela / tiradas por mim / 9-6-34 / 37 anos» (imaginámos que a fotografia de baixo, que foi retirada – pela própria Maria Gabriela? –,  poderia ser a da mãe, talvez a que agora aí voltamos a montar. Elvira, a mãe, tinha então 30 anos)

Mas nesses anos de Lovaina Maria Gabriela Llansol descobre também – ou rememora – um livro publicado originalmente em 1925, e com várias reedições nos anos trinta e quarenta. Esse livro funcionará  no seu «projecto» como contraponto do álbum paterno: trata-se d' O Livro de Bèbé, uma edição com versos de Delfim Guimarães e ilustrações de Raquel Roque Gameiro Ottolini, que Gabriela vê como uma «compilação de tiques de relações familiares», «um rito, um protocolo..., com as suas imagens estereotipadas».

Por essa altura lia Maria Gabriela, com Augusto, muita da literatura teórica então em voga, de estruturalistas, sociólogos, linguistas, psicanalistas, o que a leva a tomar como ponto de partida para a sua análise do álbum (e do livro) as considerações de Lacan em torno dos tópicos do «estádio do espelho» e da formação do eu através da imagem do corpo, da «instância da letra no inconsciente», etc. (há páginas do caderno onde o projecto vai ganhando forma que referem o lugar desta teoria, muitas vezes intimamente ligada a desenhos de Llansol).

Se Maria Gbriela tivesse ficado em Portugal, talvez também se apercebesse da entrada dessa nova vaga teórica: pela mesma altura, em 1969, o estruturalismo entra em Portugal pela mão de Eduardo Prado Coelho («enfin, Édouard vint!», como escreveria então Arnaldo Saraiva), e também Lacan e outros entrariam uns anos depois, pela colecção «Práticas de Leitura», que Maria Alzira Seixo lança na editora Arcádia (nomeadamente com O Sujeito, o Corpo e a Letra, de Lacan, Serge Leclaire, J. Laplanche e O. Mannoni – todos representados com obras próprias na biblioteca de M.G. Llansol).

Eis as linhas dos Écrits de Lacan de onde Gabriela parte para a leitura do álbum:

O nome:

O sujeito é servo de um discurso em cujo movimento universal o seu lugar já está inscrito desde o seu nascimento, quanto mais não seja sob a forma do seu nome próprio.


E seguem-se os primeiros comentários de Maria Gabriela, que reflectem o seu propósito de ler o álbum e o livro à luz de uma tripla perspectiva: sociológica, semiológica e psicanalítica, regressando às suas próprias origens numa família de média burguesia católica e conservadora, num Portugal saído de uma «revolução» e pronto para entrar numa ditadura dita «branda»:

Como acho urgente esta abertura, sobretudo para Portugal, e me interesso muito pela origem de tabus, de formas paralisadas de convivência, da aceitação incontestada da diversidade de classes, em resumo, pelas origens da incomunicabilidade individual e social, estou a tentar proceder à leitura de um Álbum de Bebé, na década de trinta/quarenta, análise que comporta uma variedade de planos diferentes (semiológico, sociológico e psicanalítico) e que apenas encontrará a sua significação definitiva quando os referidos planos forem reunidos num texto global. Aqui, presa do próprio nome, o sujeito é presa de «O Álbum do Bebé», em que confluem, para querer e desejar no lugar dele, um hábito social da classe burguesa (ideologia), a montagem do álbum e as notas do relator, o pai, centro dos fantasmas da família e dos seus fantasmas. Este tem por móbil aparente fazer a história do sujeito, o seu filho, num livro que guarde a sua memória. Mas, com este processo, o que irá é inscrever a direcção obrigatória do seu crescimento.

Um pouco mais adiante, no caderno, ficam claras as ligações entre o livro de 1925 e o Álbum (pessoal) do Bebé:

Pretendo encontrar a relação entre o sujeito deste texto (o pai) e o significante (o filho), de modo a estabelecer aproximadamente o padrão da sociedade burguesa dos anos de 1931-34. Uma criança é, pois, o nódulo em que se articula e decifra essa personagem parental. Escolhi tal período porque em 1931 nasce a criança que ficará colocada entre a espada (a potencialidade de se exprimir livremente) e a parede (o pai). Leitura obrigatória, pela criança, das palavras e figuras desenhadas. Disponho de uma resenha, escrita pelo próprio pai, dessa criança-chave, ou seja, de um Livro de Bebé.

Mas o centro luminoso da casa não é o pai, como lemos por duas vezes neste caderno: A Maria Amélia é o centro, não o meu pai. Quase quarenta anos mais tarde, Gabriela regressa a esse tema e aos testemunhos de uma infância para os analisar ao nível icónico (as suas próprias fotografias, e os desenhos de Raquel Roque Gameiro no livro) e linguístico (os comentários e textos do pai, e os versos de Delfim Guimarães no livro, submetendo estes a uma desmontagem implacável), sabendo que qualquer linguagem que fale a partir desta distância, avançando nela, é uma linguagem de ficção. É preciso então atravessar toda a prosa e toda a poesia, todo o romance e toda a reflexão, sem distinções (Marcelin Pleynet, na altura editor da importante revista Tel Quel).

Llansol fará precisamente isso, vinte anos depois, com livros como Um Beijo Dado Mais Tarde, que refaz a história da «rapariga que temia a impostura da língua», levando-a a adquirir rosto e voz própria para lá da voz da autoridade que, lemos neste caderno de 1969, tende a moldar até as formas da oração:

______ eu rezava segundo as suas indicações. Formas de contestação adentro da aceitação: o meu livrinho de orações com a cruz pintada.


Dez anos depois do Beijo, em O Jogo da Liberdade da Alma, dá-se finalmente a (aparente e ficcional?) decepação da memória, a rapariga é agora a «desmemoriada», e acontece então, sentada no colo humanizante de Spinoza, nas escadas do prédio, a definitiva morte do fantasma do pai, dos vários pais (é o momento do fim do ciclo, através da reconciliação), que começou a acontecer no momento  de rebeldia suave do Livro de Ourasões. Então, já com oito anos, talvez fosse ainda o tempo da proverbial infância feliz. Mas o caderno anota também (imagine-se de que fonte: Trotski!): Diz-se da infância que é o tempo mais feliz de uma existência. Será sempe assim? Não. E algumas páginas mais adiante, e da mesma fonte: Mas eu não conheço tragédia pessoal.

O que nos é contado marginalmente neste caderno de 1969 é também já um destino de mulher, semelhante àquele que Gabriela encontra descrito no livro que lê na mesma altura – L'échec de Pavese / O Fracasso de Pavese, de Dominique Fernandez, 1968 – e de onde transcreve, em francês, um fragmento directamente relacionado com a Biografia da infância:

... e as mulheres não contam, na família. Quero dizer que entre nós as mulheres ficam em casa, põem-nos no mundo e não dizem nada e não contam para nada, e assim desaparecem das nossas recordações... As mulheres não fumam nem bebem, sabem apenas ficar paradas ao sol...

Mas, o que é uma biografia?, pergunta-se já então Maria Gabriela. Para responder: Não é certamente ser guardada à vista, inspeccionada, espiada... Por isso, conclui que é preciso fazer a crítica da palavra biografia, assim entendida. Mais tarde explicará isso melhor, quando, em Inquérito às Quatro Confidências, traz a noção alternativa de signografia do Há: o registo de sinais próprios que, para lá do nome, inscrevem cada ser individual na ordem geral, e mais autêntica, do Ser.

J. B.

O ÁLBUM DA INFÂNCIA : ALGUMAS IMAGENS 

(De Janeiro de 1932 a Agosto de 1934)

 
 
 
 

P.S. – A biografia da infância de Maria Gabriela Llansol pode ser seguida (até aos doze anos) nas nossas publicações: O Ofício de Crescer (Caderno da Letra E, 15 de Novembro de 2014) e Llansol. Uma vida de escrita. Espaço Llansol/Mariposa Azual, 2018.

27.3.21

A LUZ DE LER

(16)

Recebemos do C.E.M.-Centro em Movimento, de Lisboa, através dos amigos Bernardo Bethônico (ex-colaborador do Espaço Llansol) e Sofia Neuparth (que dirige o C.E.M.), três videos-performance com leituras feitas a partir do livro Contos do Mal Errante (capítulos XII, XV e XIV).

Deixamos o link para o visionamento dos três videos em sequência, com os nossos agradecimentos ao Bernardo, à Sofia e a todo o C.E.M. : https://vimeo.com/529417681


22.3.21

 A LUZ DE LER

(15)

Mais uma leitura, desta vez por voz masculina, na série que já vem de longe, A Luz de Ler.



 

Jaime Rocha, poeta, dramaturgo, novelista, lê-nos o enigmático e revelador início de Um Beijo Dado Mais Tarde, em que é cortada a língua da impostura que a rapariga tanto temia – e que mais tarde deixou de temer, porque decepou a memória desses tempos e se tornou na «rapariga desmemoriada» de O Jogo da Liberdade da Alma. E que no livro de onde hoje se fará a leitura chega já, enquanto Témia, a uma «relação de não hipocrisia com a palavra», coisa quase desconhecida nos tempos que correm.

O video com a leitura de Jaime Rocha pode ver-se aqui: https://vimeo.com/527274567

20.3.21

 NO DIA MUNDIAL DA POESIA

– A Poesia estendida –


Maria Gabriela Llansol só escreveu (formalmente) poesia na sua juventude. Depois, a poesia infiltra-se progressivamente, e das mais diversas formas, nos seus livros de prosa, anunciando uma geografia imaterial por vir. Ou como uma forma de contra-música que se torna poesia do mundo e não apenas do Eu, e que ela define assim no último livro que publicou, Os Cantores de Leitura:

Criar ruídos que sejam uma contra-música. Dar substância harmónica aos ruídos... Tudo se passa ao nível das paisagens de imagens. Das suas sonoridades. Das suas parecenças e dissemelhanças.

Amanhã, dia 21 de Março, celebra-se o Dia Mundial da Poesia, que costumava ser assinalado em Campo de Ourique, no Jardim da Parada, com a Feira do Livro de Poesia, que este ano (como já em 2020) não se realiza. Em vez disso, a Casa Fernando Pessoa e a Junta de Freguesia propuseram (e o Espaço Llansol colaborou no projecto) que se desse a ler e ver a «poesia estendida» em algumas fachadas de casas do bairro, com frases de poetas que viveram em Campo de Ourique, a começar por Pessoa e indo até Ruy Belo, Luísa Neto Jorge, Fernando Assis Pacheco e Maria Gabriela Llansol.

 

Nas imagens, os exemplos da Casa Fernando Pessoa e do Espaço Llansol.

8.3.21

«UM OLHAR INTENSO PODE INCENDIAR O TEXTO»

O filme Llansol

Durante o ano de 2019, o realizador Abílio Leitão e o poeta Fernando Luís Sampaio, autor do guião, passaram muitas vezes pelo Espaço Llansol para, juntos, nos lançarmos na difícil e prolongada aventura de construir um filme que desse a ver e ouvir os momentos fundamentais da vida de Gabriela, as veredas mais frequentes por onde se movimenta a sua escrita, as Figuras que ela arrancou ao fluxo do tempo e às vicissitudes da História para lhes dar nova vida.

O seu espólio, o de escrita e o material, foi uma fonte inesgotável de ideias e de inspiração, e o resultado vai ser mostrado no próximo dia 11 de Março, pelas 23h40, no segundo canal da Radiotelevisão Portuguesa (RTP2).


Deixamos aqui a ficha técnica completa do filme, e a ligação ao trailer de apresentação, que poderá ver clicando neste link:  https://vimeo.com/519471966


6.3.21

UMA COROA DE LUZ E DE SONS

Música para Llansol

 

 

O compositor João Madureira escreveu já por mais de uma vez peças a partir de textos de Maria Gabriela Llansol, entre elas a grande ópera Metanoite, apresentada na Fundação Calouste Gulbenkian em 2007. Para o Dia Llansol no Centro Cultural de Belém, em Março de 2011, o João compôs uma peça para piano e voz, executada na altura pela pianista Ana Telles, com leituras do actor Diogo Dória.

Agora, Ana Telles e João Madureira reencontram-se num CD (Estudos Literários - Retratos, da editora mpmp:https://mpmp.pt/produto/25-madureira-estudos/) em que o compositor reune peças dedicadas a amigos, músicos, escritores, artistas, e lá surge, em nova forma, uma das peças compostas a partir de Maria Gabriela Llansol, agora com o título «Coroa», e com interpretação e leitura de Ana Telles (duas passagens do livro Amigo e Amiga).

Pode ouvi-la, com mar e céu em fundo, clicando neste link: https://vimeo.com/520321613


3.3.21

A CASA LEMBRA-SE...

(Evocando Maria Gabriela Llansol)

A Casa de Julho e Agosto está só, espera pelo reencontro. Mas em cada canto, em cada objecto, continua vivo e presente o espírito de Maria Gabriela, que nos deixou faz hoje treze anos.

Evocamo-la levando até vós, os que a conhecem e os que nunca nela entraram, a sua «casa», o seu mundo de escrita e de objectos à espera de «vida figural», sobre os quais ela um dia escreveu:

Se gosto tanto desses objectos, por vezes simplicíssimos e sem marca de distinção, é porque onde outros vêem só tempo sedimentado, eu vejo imagens sobrepostas que me olham, prestes a continuar a sua viagem...

Para entrar na casa e nos seus recantos, e ouvir o que Maria Gabriela sobre ela diz, clique no link: 

https://vimeo.com/518731865

1.3.21

 A LUZ DE LER

(13 + 14)

Do Mundo à Restante Vida

Continuamos hoje a série de leituras de textos de Llansol por legentes suas, agora com duas escritoras, duas leituras, duas paisagens diferentes deste Texto.

Numa das leituras, o lado mais explicitamente político – que também existe – desta Obra; na outra, a sensibilidade ao mais frágil e «despossesso», a escrita, a criança, a arte da música.

No primeiro caso (um excerto de um artigo publicado na revista Vértice em 1991: «Diálogo com Llull») somos confrontados com uma leitura da História como acumulação de desastres que os muitos «rebeldes» e «pobres da História» não puderam evitar, para inverter o rumo dessa História do mundo no sentido de uma «Restante Vida».


O video de Teresa Cadete (professora) / Teresa Salema (escritora) aqui:

https://vimeo.com/518156707

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Na segunda leitura temos uma página desse livro da reconciliação consigo mesma que é Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004, em que regressamos à casa dos Bach em Leipzig (e à Escola da Rua de Namur, em Lovaina), dois oásis por onde a Restante Vida e a esperança terão passado um dia.

 


O video da escritora Julieta Monginho aqui:

https://vimeo.com/518160736