O ÁLBUM DO BEBÉ
ou Biografia de uma infância
Vamos hoje até ao princípio de tudo. O horizonte são as origens. Por vezes há-as duplas, mesmo múltiplas. Escolhemos muitas origens ao longo da vida, e Maria Gabriela Llansol fê-lo certamente. Em 1969, nos primeiros anos do exílio e já de preparação do que seria a sua primeira Escola, a da Rua de Namur em Lovaina, Gabriela regressa um dia às suas raízes, propondo-se levar a cabo um projecto que começa por intitular Leitura de um Álbum - Biografia de uma Infância. Esse álbum existe, está no seu espólio fotográfico e foi organizado pelo pai com fotografias que ele próprio fez desde os primeiros meses da filha, e até aos seus três/quatro anos.
Mas nesses anos de Lovaina Maria Gabriela Llansol descobre também – ou rememora – um livro publicado originalmente em 1925, e com várias reedições nos anos trinta e quarenta. Esse livro funcionará no seu «projecto» como contraponto do álbum paterno: trata-se d' O Livro de Bèbé, uma edição com versos de Delfim Guimarães e ilustrações de Raquel Roque Gameiro Ottolini, que Gabriela vê como uma «compilação de tiques de relações familiares», «um rito, um protocolo..., com as suas imagens estereotipadas».
Por essa altura lia Maria Gabriela, com Augusto, muita da literatura teórica então em voga, de estruturalistas, sociólogos, linguistas, psicanalistas, o que a leva a tomar como ponto de partida para a sua análise do álbum (e do livro) as considerações de Lacan em torno dos tópicos do «estádio do espelho» e da formação do eu através da imagem do corpo, da «instância da letra no inconsciente», etc. (há páginas do caderno onde o projecto vai ganhando forma que referem o lugar desta teoria, muitas vezes intimamente ligada a desenhos de Llansol).
Eis as linhas dos Écrits de Lacan de onde Gabriela parte para a leitura do álbum:
O nome:
O sujeito é servo de um discurso em cujo movimento universal o seu lugar já está inscrito desde o seu nascimento, quanto mais não seja sob a forma do seu nome próprio.
E seguem-se os primeiros comentários de Maria Gabriela, que reflectem o seu propósito de ler o álbum e o livro à luz de uma tripla perspectiva: sociológica, semiológica e psicanalítica, regressando às suas próprias origens numa família de média burguesia católica e conservadora, num Portugal saído de uma «revolução» e pronto para entrar numa ditadura dita «branda»:
Como acho urgente esta abertura, sobretudo para Portugal, e me interesso muito pela origem de tabus, de formas paralisadas de convivência, da aceitação incontestada da diversidade de classes, em resumo, pelas origens da incomunicabilidade individual e social, estou a tentar proceder à leitura de um Álbum de Bebé, na década de trinta/quarenta, análise que comporta uma variedade de planos diferentes (semiológico, sociológico e psicanalítico) e que apenas encontrará a sua significação definitiva quando os referidos planos forem reunidos num texto global. Aqui, presa do próprio nome, o sujeito é presa de «O Álbum do Bebé», em que confluem, para querer e desejar no lugar dele, um hábito social da classe burguesa (ideologia), a montagem do álbum e as notas do relator, o pai, centro dos fantasmas da família e dos seus fantasmas. Este tem por móbil aparente fazer a história do sujeito, o seu filho, num livro que guarde a sua memória. Mas, com este processo, o que irá é inscrever a direcção obrigatória do seu crescimento.
Um pouco mais adiante, no caderno, ficam claras as ligações entre o livro de 1925 e o Álbum (pessoal) do Bebé:
Pretendo encontrar a relação entre o sujeito deste texto (o pai) e o significante (o filho), de modo a estabelecer aproximadamente o padrão da sociedade burguesa dos anos de 1931-34. Uma criança é, pois, o nódulo em que se articula e decifra essa personagem parental. Escolhi tal período porque em 1931 nasce a criança que ficará colocada entre a espada (a potencialidade de se exprimir livremente) e a parede (o pai). Leitura obrigatória, pela criança, das palavras e figuras desenhadas. Disponho de uma resenha, escrita pelo próprio pai, dessa criança-chave, ou seja, de um Livro de Bebé.
Mas o centro luminoso da casa não é o pai, como lemos por duas vezes neste caderno: A Maria Amélia é o centro, não o meu pai. Quase quarenta anos mais tarde, Gabriela regressa a esse tema e aos testemunhos de uma infância para os analisar ao nível icónico (as suas próprias fotografias, e os desenhos de Raquel Roque Gameiro no livro) e linguístico (os comentários e textos do pai, e os versos de Delfim Guimarães no livro, submetendo estes a uma desmontagem implacável), sabendo que qualquer linguagem que fale a partir desta distância, avançando nela, é uma linguagem de ficção. É preciso então atravessar toda a prosa e toda a poesia, todo o romance e toda a reflexão, sem distinções (Marcelin Pleynet, na altura editor da importante revista Tel Quel).
Llansol fará precisamente isso, vinte anos depois, com livros como Um Beijo Dado Mais Tarde, que refaz a história da «rapariga que temia a impostura da língua», levando-a a adquirir rosto e voz própria para lá da voz da autoridade que, lemos neste caderno de 1969, tende a moldar até as formas da oração:
______ eu rezava segundo as suas indicações. Formas de contestação adentro da aceitação: o meu livrinho de orações com a cruz pintada.
Dez anos depois do Beijo, em O Jogo da Liberdade da Alma, dá-se finalmente a (aparente e ficcional?) decepação da memória, a rapariga é agora a «desmemoriada», e acontece então, sentada no colo humanizante de Spinoza, nas escadas do prédio, a definitiva morte do fantasma do pai, dos vários pais (é o momento do fim do ciclo, através da reconciliação), que começou a acontecer no momento de rebeldia suave do Livro de Ourasões. Então, já com oito anos, talvez fosse ainda o tempo da proverbial infância feliz. Mas o caderno anota também (imagine-se de que fonte: Trotski!): Diz-se da infância que é o tempo mais feliz de uma existência. Será sempe assim? Não. E algumas páginas mais adiante, e da mesma fonte: Mas eu não conheço tragédia pessoal.
O que nos é contado marginalmente neste caderno de 1969 é também já um destino de mulher, semelhante àquele que Gabriela encontra descrito no livro que lê na mesma altura – L'échec de Pavese / O Fracasso de Pavese, de Dominique Fernandez, 1968 – e de onde transcreve, em francês, um fragmento directamente relacionado com a Biografia da infância:
... e as mulheres não contam, na família. Quero dizer que entre nós as mulheres ficam em casa, põem-nos no mundo e não dizem nada e não contam para nada, e assim desaparecem das nossas recordações... As mulheres não fumam nem bebem, sabem apenas ficar paradas ao sol...
J. B.
O ÁLBUM DA INFÂNCIA : ALGUMAS IMAGENS
(De Janeiro de 1932 a Agosto de 1934)
P.S. – A biografia da infância de Maria Gabriela Llansol pode ser seguida (até aos doze anos) nas nossas publicações: O Ofício de Crescer (Caderno da Letra E, 15 de Novembro de 2014) e Llansol. Uma vida de escrita. Espaço Llansol/Mariposa Azual, 2018.