29.3.08


DO URSO PEREGRINO

... um poema oferecido a Maria Gabriela Llansol por paulo de andrade, legente e poeta baiano-mineiro em tempo de nomadismo (tours-lisboa-sintra-estoril). Llansol respondeu, já da distância, com uma frase de Causa Amante:
«Estamos sós, só nós – disse Coração do Urso (...) – pois, por direito,
nós herdámos as margens...»


O OUTRO CURSO DE SILÊNCIO
(sintrabelohorizonte)

O caminho do Texto continua. Um video a partir de Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004. Mais um feliz «encontro inesperado do diverso»: o corpo (de Brunna Tayer), a música (de Lucas Miranda), a voz (de Lou de Resende, que também coreografou), a direcção (de Gustavo Pains), os sons de uma cidade lá fora...
Em Llansol:
«______ o encontro inesperado do diverso
é assistir o belo a comunicar com o silêncio;
a fraccionar a imagem nas suas diversas formas;
ajudá-las a levantar o véu para que se mostrem mutuamente na beleza própria, e fechar os olhos para que se não rompa a delicada tela desta vida
(Lisboaleipzig. O encontro inesperado do diverso, Edições Rolim, 1994, p. 135)


7.3.08

A CONSCIÊNCIA, ENVOLTA EM CÁLICE,
DE QUE O DIA NASCE...


Há dois dias que sou atravessado, dia e noite, por uma catadupa de imagens, de ideias, de afectos que me deixam num estado às vezes quase febril, outras vezes letárgico, outras ainda numa disposição quase visionária – a que sou pouco atreito – que me enche de desejos e convicções em relação ao futuro que espera o legado, a memória, o que fica do Texto de Llansol.
Voltei hoje a Sintra, pela primeira vez depois da noite do fim. Do comboio, vejo quintais com laranjeiras, limoeiros, nespereiras, sinais de vidas simples e límpidas, e logo a seguir, dominando a paisagem, grandes massas de betão, matéria inerte que sustenta o mundo inerte. E lembrei-me do universo desde sempre mais próximo de Llansol: um mundo de vivos e intensos, de energia e vibração contagiosas, sem distinção entre vivos-vivos e vivos tornados vivos pela força da escrita, como os objectos e o próprio texto.
Na noite anterior imaginara – levada que fora para aí a imaginação ao ver aquelas duas figurinhas no blog «Legente» – a casa vazia, a guardiã que ficou (a gata Melissa) deambulando por ela a chamar as Figuras para um festim de luto e alegria, para uma orgia grave e jubilosa: o menino-Literatura, a boneca preta do relógio, a senhora decepada, o homem da bigorna, Témia em equilíbrio instável na sua cadeira, Sant'Ana e Myriam, o carneiro e o cão-lobo, a «jovem vestindo o seu jardim», a máquina de escrever, o candeeiro de abat-jour redondo sobre a secretária, todas as figuras que se agitam no armário que lhes coube como casa – Musil e Teresa de Ávila, Rilke e Bach, Teresa de Lisieux e Nietzsche à vista através do vidro, e as Figuras maiores, os dois grandes companheiros filosóficos e espirituais, abertos em cima da pequeníssima mesa redonda ao lado do lugar de trabalho: Spinoza e João da Cruz.
O terreiro deste grande festim eram as muitas páginas, abertas e estendidas no chão, de todos os livros, d'
O Livro das Comunidades a Os Cantores de Leitura. Era a festa do Texto, sensualética, libidinal, vibrante, orgiástica, de mística e carne, de matéria e espírito, do corpo e da escrita e de todos os arcanos do mundo, sem excepção e sem exclusões. Era a festa da despedida e da esperança, da recusa da «experiência abusiva da morte» e da convicção de que haverá Parasceve, ressuscitação.
Foi então que verdadeiramente compreendi o que este Texto tem para dizer – num único lampejo, como aquele que julguei ver no rosto da Maria Gabriela poucas horas antes da passagem definitiva para a outra margem, o da revisitação de uma vida num instante. E percebi também melhor o sentido daquela frase de Spinoza sobre a qual tantas vezes tinha reflectido, e que a lição de Deleuze me ensinara a entender, mas não a viver em experiência: «Sentimos e experimentamos que somos eternos.»
Foi alguma coisa parecida com isto que me sacudiu do torpor dos últimos dias, à medida que ia lendo os testemunhos mais autênticos que chegavam de muitos lados, por mail, telegrama, carta, na Internet. Há entre eles muitos que relevam de uma ligação sem máscara ao Texto de Llansol – até entre os oficiais e oficiosos –, bem longe de muitas outras notícias e escritas de assinalar o evento e marcar o ponto, politicamente correctas, anódinas e baças, indiferentes, tudo espelho dos tempos. O destino desses já estava traçado à nascença. Dos outros, deixamos aqui fragmentos, frases, ecos, arrancados ao convívio ou à memória do Texto de Maria Gabriela Llansol – prolongamentos dele, como ela gostava de acentuar, neste momento em que se suspende sem que se extinga a sua luz.
A todos, muito obrigado.
J. B.


Amigos/as, Maria Gabriela Llansol empreendeu a Grande Viagem. Hoje ao romper do dia. Em serenidade. Talvez assim: "__________ penso em fazer esta experiência: levantar-me numa manhã de inverno, quando ainda fizer escuro (...), ver o dia levantar-se, clarear, eu sempre sentada na minha cadeira de balouço. Começar a mover-me, a dar passos em todos os pequenos percuros que me ligam à casa e, num dado momento, ter a consciência, envolta em cálice, de que o dia nasce..." (Do caderno 5 do espólio, 1978) Espaço Llansol

pela sua originalidade e inconformismo, o trabalho de Gabriela Llansol justifica a admiração que tantos leitores lhe tributam e vai, com certeza, perdurar como referência inconfundível. aníbal cavaco silva (presidente da república) | um singular e inestimável discurso de reflexão sobre a palavra e o seu valor na literatura portuguesa contemporânea... josé antónio pinto ribeiro (ministro da cultura) | ... senhora de uma escrita intensa e sublime onde estão reflectidas algumas belíssimas imagens da Europa, de Portugal à Bélgica, de Pessoa a Espinosa, de Bach a Holderlin e S. João da Cruz, Maria Gabriela Llansol afirmou-se com uma escrita radicalmente inovadora que levou a literatura portuguesa a campos nunca antes percorridos josé manuel durão barroso (presidente da comissão europeia) |

Querida Gabriela, (...) Olho para estas mãos agora — as tuas e as de Vina — e reparo no anel e na gema do anel e na chama de amor no interior de um anel. Olho para estas mãos que marcam, com firme delicadeza, o texto. E penso no teu legado mais forte: a responsabilidade da forma. (...) Sim, Gabriela, atravessaremos juntas a paisagem de nevoeiro e chuva e quase neve. Porque um dia atravessamos juntas o sol de teu nome, escrito hoje na curvatura da abóboda celeste. Tudo, aqui ou lá, continua a vibrar. E, em nome da cena fulgor que nos acompanha,
aqui ou ali, o teu nome vive, nela. lúcia vania inês cynthia (belo horizonte) | Deixe-lhe uma flor minha, pequenina, feita de último olhar, sim, João? dora batalim (usa) | que dias tão tristes... Descasquei ervilhas hoje, fora do tempo e enquanto o fazia pensava a sorrir na mulher das saias compridas, do casal que eu via passar em Colares, olha ali vai a Maria Gabriela Llansol, disse-me a mãe. E eu olhei e vi quem vi. fátima rolo duarte (bruxelas) | Voou bem longe além das nuvens e rompeu a prisão sem temor. mayara (rio de janeiro) | ... relembro a alegria de ter conhecido essa pessoa ímpar, essa escritora maior e a doçura cortante de sua escrita... elisa arreguy (belo horizonte) | ... essa fabulosa escritora. foi uma perda para todos nós. danielle lopes (santos, s.p.) | estou completamente sem saber o que dizer. guardo a palavra serenidade para levar comigo. carolina fenati (itália) | Llansol é agora o beijo dado na luz. jorge fernandes da silveira (rio de janeiro) | nossa grande «dama do amor completo». (...) o silêncio de seu corpo se impôs, e agora mesmo é que seu texto, seu amor entre nós, cada dia mais forte, servirá de guia no tempo terreno que me resta. inês (serra do cipó, minas gerais) | levar uma flor – e ser um elo na cadeia infinita de afectos que a ela nos liga. maria joão reynaud (porto) | ...nenhuma palavra altera a consciência da metamorfose... ruy ventura (portalegre) | encontrei no meu jardim na Esperança dois ramos em flor de uma ameixeira, prontos a serem transplantados. Como ameixeira é o PRUNUS TRILOBA que a Maria Gabriela descreve no jardim da casa de jodoigne, e por ter estado a ler sobre isto em FINITA, disse ao meu joão: – vamos plantar estes dois ramos de PRUNUS TRILOBA, e vamos chamar-lhes maria gabriela e augusto joaquim. E olhando para o céu disse em voz alta: – maria gabriela, a tua história continua, aqui. Isto passou-se entre as 9.30 e as 11h. ás 12 recebia uma sms a dar-me notícia da partida de Maria Gabriela. Rezo para que as duas ameixeiras se tornem árvores. helena vieira (barreiro/esperança, serra de portalegre) | aquele último e belíssimo livro - " Os cantores de leitura". (...) os amigos têm para ti um pensamento reconhecido, terno e solidário. maria antónia amarante (lisboa) | curvo-me perante a obra magnífica e ímpar de Maria Gabriela. maria joão cantinho (lisboa) | o que dizer _______. Felizes os que compartilharam da leitura e da presença. vanda pignataro pereira (belo horizonte) | vou dar aulas esta tarde. vou começar as aulas lendo um parágrafo de Um Falcão no Punho. envio-vos um abraço muito triste. pedro eiras (porto) | ... não pude deixar de me manifestar em palavra (...) Hoje, as palavras-escrita explodiram. Digo explodir, porque, se penso em francês – língua que me ensinaste a amar –, explodir/ éclater, traz, na sua explosão, um brilho intenso, um lampejo. Um acontecimento de escrita festejado na fugacidade e beleza da irradiação de luz. Um nascimento, pois. érica zíngano (são paulo) | passei ontem a noite com os desenhos de Amar Um Cão nas mãos. Deu-me forças. Obrigada. maria de lourdes soares (rio de janeiro) | ela deu-nos o Futuro, cabe-nos, a nós, cumpri-lo de algum modo. Se não tivermos o espírito e o corpo para o fazer, a letra não bastará. Não é só o texto que a Maria Gabriela nos entrega: é também o chamamento de que este texto nos fala. É por aí que eu vou. cristiana vasconcelos rodrigues (lisboa) | minhas mãos queriam vos oferecer a lágrima que caiu......eu sei, nós sabemos, que seria melhor que ela partisse.....mas, assim mesmo, dói-me o céu da boca...trava-se a garganta.....assim mesmo, não pude evitar o desejo de também partir.........partiu-se a luz, penso..... vania baeta (belo horizonte) | Ni que decir tiene lo que ha significado, y significa, haber conocido y haber empezado a traducir al español la obra de Gabriela. (...) Es un verdadero privilegio y un honor haber contado con la confianza de una de las mayores escritoras de nuestro tiempo a la hora de traducir y difundir su obra en la lengua que ella llamaba «a língua de São João da Cruz». mercedes f. cuesta y mario grande (atalaire) (madrid) | ensinas a ler, arrancando a mão com que a ave se firma na água carlos vaz, textualino (famalicão) | ... fui em busca do que o Livro guarda e expande de suas geografias secretas. paulinho assunção, cidades escritas (belo horizonte) | Llansol viveu na margem desse mundo supérfluo e superficial, mentecapto e acéfalo, de notoriedades efémeras, fogos-fátuos, famas de á-bê-cê, cânones estupidificantes. henrique fialho, insónia (caldas da rainha) | Pode ser alquimia da minha natureza mas creio bem que não: o universo llansoliano é um universo caleidoscópico onde o local em que captamos a sua luz nos permite ver algo que só nós vemos. Podemos, depois, discutir, as nossas visões - como é uma aparição o próprio mundo de Llansol – mas tenho dificuldade em aceitar que em algum momento estejamos a falar da mesma coisa. (...) Não tenho qualquer ensejo para um requiem. Se há autora cuja existência para mim sempre perdurará é a da Maria Gabriela Llansol. (...) Llansol dá-nos um mundo mas um mundo em que somos livres, com toda a angústia e felicidade que isso acarreta. Creio que não se pode pedir mais. domingos miguel/henrique bairrão, em busca da límpida medida (lisboa) | de que matéria és feita? que sons te requerem? que memórias habitas? em que palavras te jogas? (...) deito o meu coração no veludo das tuas sílabas. agora que te rendes à mais secreta iluminação do tempo. isabel mendes ferreira, piano (lisboa) | A Amiga partiu. Foi ser luz, ao encontro do seu ambo. Deixou-nos o texto do fulgor, singularidade irrepetível. maria de lourdes soares, notícias do cais (rio de janeiro) | um gato para llansol, o secreto sol da nossa língua francisco carvalho, nu singular (lisboa) | língua de ser sangue, língua de ser ar... un dress (anónimo) | embora a ame profundamente nunca tive, excepto por uma vez, coragem para tentar descobrir a casa dela em sintra. (...) Agora acho que talvez seja a única forma de ajudar a atenuar a tristeza . (...) Não quero incomodar ninguém, só quero passar à sua porta. leonardo c. (leitor não identificado) | Obrigado, por______ tanto. pedro afonso, a pedra



MARGENS?


Há marginais da chamada crítica – coisa que já não existe, mas em que eles continuam a acreditar – que não se vêem ao espelho. Se o fizessem, veriam que quem anda pelas margens são eles, que são eles os dispensáveis, hoje e muito mais daqui a uma geração. Julgam-se no centro, pavoneiam-se, mas daqui a pouco... puff – foi um ar que lhes deu, ninguém se lembrará deles.
Llansol não é, nunca foi, marginal. Esteve sempre bem no centro, precisamente por ser luz escondida. Sem mística, nem sacra nem laica – quando é que essa gente perceberá isto? (quando a lerem!). E os «críticos» que teve e tem... «entusiastas»? Só isso? Ou críticos com todas as letras, isso mesmo, críticos críticos, como o não são os amanuenses de picar o ponto em jornais e blogs? Serão críticos «entusiastas» Eduardo Prado Coelho, Manuel Gusmão, António Guerreiro, Silvina Rodrigues Lopes, Pedro Eiras ou Manuel de Freitas? O adjectivo passa a milhas de distância do que têm escrito sobre Llansol...
Llansol, que não é Rimbaud nem Villon nem outro qualquer, porque é ela mesma (coisa que não é difícil de reconhecer para quem a ), nunca será «intrinsecamente marginal», pela simples razão de que é intrinsecamente central na escrita contemporânea. Naquilo que escreveu – a única coisa que importa e lhe importava – não há lugar para a «anedota biográfica». Toda ela é escrita sem-eu, como a melhor da melhor entre modernos e contemporâneos (escuso-me pelos adjectivos, que não gosto de usar, nem quando eles são justos e se ajustam ao objecto): o osso da palavra e o movimento das coisas na linguagem, mais nada. Nem romance nem novela, nem prosa nem poesia. Simplesmente escrita, texto, como ela sempre dizia e escrevia – sem «Obra». Essa, é para os patos-bravos.
João Barrento

2.3.08

FRASES IMAGENS COLA


Já está nas livrarias o livro com vinte desenhos de Augusto Joaquim feitos sobre o texto de Maria Gabriela Llansol Amar Um Cão (que o volume também reproduz), acompanhados de um testemunho escrito do autor ("Geometria de frases imagens cola») e de uma nota de João Barrento. A série de desenhos nasceu das discussões do Grupo de Estudos Llansolianos sobre Amar um Cão em 2002, como se pode perceber pelo texto do Augusto. Dele e da nota final extraímos dois excertos que poderão despertar a curiosidade dos interessados, mas nunca substituir o prazer de olhar para estas colagens delicadas e originais e cruzá-las com o texto de Llansol.

Foi nessa tarde, já em casa, que comecei os desenhos. Em apenas alguns dias, desenhei uns cinquenta sobre papel reciclado —
traço a lápis
(um cão e uma jovem [de costas], figuras geométricas, um cão e outros cães, um cão a correr atrás de pássaros gigantes, um coreto, um cão a transformar-se num pássaro gigante, grande prato de leite)
foram construindo a figura que tanto me ensinara
num texto subtil mas não malicioso.
(Augusto Joaquim)

O tempo na ponta do lápis

«Este texto tornou a minha vida improvável», escreveu um dia Augusto Joaquim, referindo-se à Obra de Maria Gabriela Llansol. E ao dizer «improvável» queria dizer: à prova de prova. Porque uma vida não prova nada, nem tem de ser provada, acontece-nos ou não nos acontece.
Sobre aquela Obra, de dentro de um breve texto dela – a sequência de intensidades escrita por Maria Gabriela Llansol com o título Amar Um Cão (1990) – nasceram estes desenhos. O dinamismo da relação entre traço, blocos de texto, fragmentos colados, indicia uma busca e quer captar uma vibração. Cada folha reage, com pontos de interrogação, a momentos concretos da escrita de Llansol. O texto age como uma mónada que se abre e fecha, pontuada de focos de luz que se acendem e se apagam. A interrogação maior, a que os desenhos procuram co-responder, é: Nasce-se como? Morre-se como? Como se age entre estes dois pontos, que relações se tecem entre os seres, homens ou cães (um deles, de nome Jade, foi um dos seres que o Augusto mais amou)? Como se chega, nesse percurso, a receber o «dom poético» e a praticar a «liberdade de consciência»? E a resposta, que é a de todo o texto de Llansol, está num dos desenhos: «Ficamos no tempo? Sim, ficamos.» Para viver o Ser no Tempo de forma plena e múltipla.
(João Barrento)