29.6.14

UM QUARTO QUE SEJA NOSSO...
Virgina Woolf na «Letra E»

Com a ausência da escritora Ana Luísa Amaral, que por um impedimento de última hora não pôde deslocar-se do Porto a Sintra, tivémos ontem a última sessão da «Letra E» antes das férias de Verão. Ocasião de balanço, feito a abrir o encontro por João Barrento, que lembrou o que foi a programação deste espaço em dois anos e meio de existência, com vinte e nove sessões (e dezasseis «Cadernos da Letra E» produzidos por nós) em torno da ligação de Llansol a algumas das suas figuras históricas, ou com nomes da literatura, das artes e do pensamento contemporâneos, cruzando-se e alternando com uma outra linha de programação que trouxe a Sintra muitos intervenientes que reflectiram sobre problemas específicos da escrita desta autora, do seu universo ou do espólio que deixou, mas igualmente de questões prementes do mundo de hoje, que foi também o seu. Por aqui passaram figuras como Hölderlin ou Ana de Peñalosa (e as beguinas), Pessoa e Bach, Emily Dickinson e Virginia Woolf; escritores como Gonçalo M. Tavares, Hélia Correia ou António Vieira (e a austríaca Ilse Pollack, com o seu «Almanaque-Llansol»); pensadores como Augusto Joaquim, Blanchot ou Eduardo Prado Coelho; críticos e professores como António Guerreiro, Tomás Maia, Sousa Dias, Paulo Sarmento, Helena Vieira e Paula Morão; criadores como a fotógrafa Teresa Huertas, os pintores João Queiroz e Pedro Proença, o compositor João Madureira. Aqui se discutiu e leu, se fizeram exposições (de fotografia, pintura, colagem, desenho; e de imensos materiais do espólio de Llansol, desde a sua juvenilia), se mostraram filmes, se ouviu música, atravessando assim lugares e épocas, temas e problemas, todos eles com uma ligação explícita ao universo-Llansol.

A ausência de Ana Luísa Amaral foi colmatada com a reflexão (e conversa alargada no final a muitos dos presentes) de Hélia Correia, Maria Etelvina Santos e João Barrento em torno da ligação, não isenta de oscilações, mas intensa em pelo menos duas épocas da sua vida de escrita, de Llansol com Virginia Woolf. A escrita nos cadernos (e entretanto também já nos Livros de Horas II e III) permite constatar que a ocupação de M. G. Llansol com a escritora inglesa se concentra em dois períodos distintos e distantes no tempo: os anos finais da década de setenta (na Bélgica) e os anos noventa, entre Colares e Sintra (é nestes anos que Llansol – sob o pseudónimo de Ana Fontes – traduz e publica, na Colares Editora, as Cartas Íntimas a Vita Sackville-West). 



Tudo parece ter começado com a releitura de Mrs. Dalloway em 1978 (o exemplar que temos na biblioteca traz uma assinatura que remete já para a juventude de Llansol, ainda em Portugal):

... Leio Mrs. Dalloway – uma parte da grande sensação que eu conheço agora – num livro. Tornei-me um instrumento muito percutente,  à  entrada do mundo,  quer  ele seja a  cidade,  a espera, a secretária, a partida ou o regresso. Poeira do chão levanta-se com vibrações, eu troco o meu corpo por um encontro global com o prazer que, neste instante de meses, é a minha fonte durável de conhecimento.
(Avulso FAms0103r, 1978)

2 de Janeiro de 1978
Agora, os Diários Íntimos são os meus Contos de Infância. Biografias que consigo vão trazendo e definindo os acontecimentos e os ambientes, enfim, as épocas históricas, mas de forma próxima e através de homens; como no Natal passado descobri Rilke, agora descubro Virginia Woolf. Nada li da sua obra, por um acaso tomei primeiramente contacto com o seu Diário1 e a sua vida. Mulher agreste, obcecada pelo seu trabalho quotidiano, de que não conheço o alcance, a não ser pela Enciclopédia. (...)  Vou encomendar o Diário de Katherine Mansfield. Um pouco fora de moda, a forma de sentir destas mulheres? Eu encontro-me, no entanto, com elas, um século depois. Eram seres múltiplos num único ser, num mundo de convencionais durezas «machas», elas deram em sua casa com a escrita que, ao ritmo da sua coragem e medo, lhes permitiu erguer a voz.
(Livro de Horas II)


O que une e o que separa os universos de vida e de escrita destas duas mulheres? As três intervenções abordaram os mais diversos aspectos deste encontro, que começou por suscitar alguma resistência por parte de Llansol («A princípio não a amava, à sua figura de feminista e de mulher em que sobressaía demasiadamente sobretudo o intelectual. Embora a admirasse, era-me antipática...»). O que explica a «perplexidade» expressa por Hélia Correia, no início da sua intervenção, em relação a esta atracção, que acabaria por ir dar a uma convivência mais intensa, e por dar frutos concretos e deixar rasto na escrita de Llansol. De facto, Virginia Woolf (como outros grandes inovadores da ficção do seu tempo) acabará por ser confessadamente, objecto de fascínio – e não de mera sedução – para M. G. Llansol, como se pode ler na grande entrevista de 1995:

... É a esta destrinça que se vão dedicar Kafka e Musil (e, um nível diferente, que tem o seu paralelo em E. Dickinson, Virginia Woolf) (...)
A sedução é uma relação de captação, dispositivo gestual e cénico de submissão de todas as vozes a uma única voz (...) O fascínio, pelo contrário, é um acontecer imponderável sem destinatário preciso, despido de qualquer intenção de atrair: pura afirmação a criar movimento. E, sob este aspecto, Musil (e, de outro modo, V. Woolf) foi bastante longe...
(«O Espaço Edénico»)

Vivendo e escrevendo em mundos muito diferentes (Woolf imersa na vida social – ainda que à margem das convenções, no microcosmo de Bloomsbury –, Llansol no isolamento e na fobia do «gregário»: «Herbais foi de silêncio»), criando figuras e mundos que se tocam em algumas arestas, mas não se identificam, as duas acabam por se encontrar em múltiplos aspectos, justificando plenamente a sua relação em termos de «afinidades electivas selectivas» que a conversa de ontem documentou amplamente, apoiada na leitura dos fragmentos de Llansol que figuram no «Caderno da Letra E» feito para esta ocasião. Eis alguns desses pontos de encontro, que foram surgindo, como matéria que proporcionou uma viva conversa final, nos comentários dos três intervenientes, cruzados e complementares:
- a preferência por determinados géneros, para além da ficção (diários e biografias):
         15 de Agosto de 1985
Mais do que Kafka ou Virginia Woolf, interessam-me agora os seus diários – o duplo da obra em causa. Será o Diário aquilo, de pouco valor, que roubaram à Obra? (...) São um só, disse: – São diferentes aspectos de uma unidade incorruptível.  
(Caderno 1.18, avulso 07)
 
- as questões de gender e sexo (de «mulheres fora de moda» – estranha afirmação, quando nos anos setenta V. Woolf era tão actual!), e os caminhos da libertação da sua «fixidez»:
... O que será quem estiver liberto da fixidez do seu sexo? O que poderá vir a ser? O que estará sendo? (...) Leio V. Woolf como um campo florido de possibilidades para sempre, e a mutação masculino/feminino, presente em Orlando, como uma grande liberdade de espírito na travessia do conhecimento / da consciência própria.
Orlando não é uma guerra concreta, é uma mente exigindo uma forma corpórea de vida...
(Caderno 2.46, Março de 1992)

- o espectro amplo da compreensão (e da prática) da experiência sexual, até ao limite da rejeição do sexo (no ambiente «marginal» do grupo de Bloomsbury, mas que Hélia Correia distinguiu da sexualidade mais radicada no corpo que é a que transparece na escrita de Llansol):
... Vendo V. Woolf, o seu destino, compreendo como é necessário viver e escrever, e não não viver sozinha com a escrita. Viver sozinha com a escrita seria uma aventura temerária. Não desejarei preparar nenhuma espécie de decadência (...), pois que estou multiplamente viva.
(Livro de Horas III)

- «seres múltiplos num único ser», um ponto de vista muito llansoliano, e já «figural»; aspecto particularmente evidente em Orlando de V. Woolf, e que em Llansol se manifesta num entendimento do sexo como energia do ser que se propaga ao mundo (o «sexo da paisagem») e ao próprio acto de legência (o «sexo de ler»); e em V. Woolf na ideia de que nem dois sexos bastam, e muito menos apenas um, e de que é preciso descortinar «outros sexos, olhando através das árvores e outros céus...»:
... e eu compreendo (...) que ela viveu no tempo concreto do seu próprio corpo, da sua própria época, mas que vários aspectos de outros seres, e de outras dimensões – o tempo e o espaço – vieram encontrar-se, unir-se e fragmentar-se nela – de si para o outro – e no trabalho que exercia sobre os seus próprios livros.
Fragmentação, dispersão, um caminho possível para a unidade...
(Sobre Orlando, Caderno 2.46, Março de 1992)
 
- o trabalho manual como parte integrante de um quotidiano que se transformará em escrita:
Acontece-me uma estranha solidão ou companhia, aquela que escreve desprende-se de mim e vive como uma sombra comigo, numa existência plenamente autónoma. Quando faço o pão ela está lá, quando ando na rua está comigo, em toda a parte vem atrás de mim como se fosse eu na minha imaginação criadora e de poder.
(Livro de Horas II)
 
- a escrita como modo de afirmação, ou como o próprio cerne do Ser constituído pela intensidade do instante (moments of being em V. Woolf):
Sentir-se alguém assim como V. Woolf – é não ser ninguém, não possuir uma marca concreta de existência. Por essa razão, Marguerite Yourcenar dizia que os seus livros eram biografias do ser...
(Caderno 2.46, Março de 1992)
 
- a inserção da matéria biográfica na «ficção», a ponto de se tornarem indistintas: tudo é autobiográfico, mas na escrita não há autobiografia, antes uma «signografia do Há», registo de sinais de uma existência sustentada pela escrita, e algumas relações que dela emergem. É o grande paradoxo do autobiográfico em M. G. Llansol (e Virginia Woolf), presente também numa frase de Um Quarto…: «Quanto mais verídicos forem os factos, melhor será a ficção».

- o poder das sensações (cf. começo de The Waves), em especial do olhar, e do ponto de vista descritivo (cf. já Mrs Dalloway, ou Rumo ao Farol), que leva a que o próprio ensaio conviva com o quotidiano e as suas descrições (em Um Quarto que Seja Seu), animado pelo acaso e pelas afecções da alma, com uma sensibilidade ampla e liberta que permita iluminar até as mais insignificantes coisas do mundo;
- uma escrita de atmosferas (V. Woolf) ou da predominância do espaço sobre o tempo (como de si diz Llansol); espaços e atmosferas com nomes próprios, que em si mesmos sintetizam (sem simbolizarem, a não ser talvez como lugares de regresso permanente) uma existência de escrita: Elvedon na V. Woolf das Ondas, Herbais para M. G. Llansol a partir dos anos oitenta (mesmo em Sintra, Herbais está sempre a regressar);

- a anulação dos tempos no tempo da escrita; e o tratamento livre das figuras, sem tempo, nos espaços que lhes são próprios, sem biografia nem sexo/género – como o próprio Texto? (cf. Orlando). Em Orlando estamos perante o livro mais «figural» de V. Woolf (como em The Waves teremos o mais metaliterário e «poético», em paralelo, por ex., com O Jogo da Liberdade da Alma), livre no tratamento da personagem-figura, oscilante e metamórfico (há paralelos com a Lillias Fraser da Hélia, na sua deambulação por espaços vários e na sua metamorfose, entre Culloden e Lisboa, os terramotos da História e as suas próprias variações interiores?);
- e houve ainda tempo para assinalar paralelos quanto aos caminhos da escrita das duas: o «caminhar por um sítio interdito» (Um Quarto…) e a busca de uma «verdade». Na V. Woolf de Um Quarto…, no British Museum; em Llansol, em si própria enquanto ser de escrita, e não social; nas duas: fora da impostura, procurando algo como «a truth of one's own», num processo de individuação contínuo através da escrita.

De tempo e espaço, e do seu tratamento muito sui generis se falou muito no final, a partir de várias questões colocadas pelos presentes. E também da casa e do seu lugar nestas autoras, por comparação e contraste com a grande tradição do romance realista. Aí todos entenderam melhor como os espaços do texto (que Llansol transforma em «lugares») são essenciais, para lá dos tempos, para atribuir marcas próprias à experiência dos dias que neles se desenrola, e como as datas, a que ambas as autoras atribuem grande importância, precisam de ver o seu carácter referencial de calendário preenchido pela matéria existencial específica que lhes dá rosto próprio.

23.6.14

LLANSOL E VIRGINIA WOOLF

É já no próximo sábado, 28 de Junho, pelas 16 horas, que Llansol e Virginia Woolf se encontrarão na «Letra E» do Espaço Llansol. Falaremos do encontro entre as duas escritoras, desde os anos sessenta do século passado, quando Llansol começa a ler Woolf, leremos algumas passagens dos cadernos de Maria Gabriela Llansol sobre a inglesa, em eco com passagens de Virginia Woolf, e mostraremos algumas peças do espólio que documentam este diálogo.

 (clique na imagem para aumentar)

E haverá, como sempre, um caderno que documenta mais esta afinidade electiva de Llansol com as suas figuras e outros criadores, reunindo muito do que encontrámos nos cadernos manuscritos e nos dois últimos Livros de Horas.


Esta será a última sessão da «Letra E» antes do Verão. Retomaremos em Outubro, para revelar aspectos menos conhecidos do espólio de Llansol e continuar os encontros com algumas das suas figuras.
E entretanto daremos em breve notícia das Jornadas Llansolianas de Sintra deste ano (que terão lugar em 27 e 28 de Setembro, no espaço cultural «Vila Alda», em Sintra).

19.6.14

LISBOALEIPZIG:
O LANÇAMENTO


Apresentámos ontem, na Livraria Assírio & Alvim do Chiado, em Lisboa, a nova edição de Lisboaleipzig, num volume em que o texto vem acompanhado de 32 xilogravuras de Ilda David' (a totalidade de gravuras criadas pela artista, em número superior a 100, será mostrada na grande exposição do «Centro Internacional das Artes José de Guimarães», que inaugura a 26 de Julho próximo na cidade de Guimarães).
Este livro é mais uma das muitas edições que o Espaço Llansol tem vindo a realizar com diversos editores nacionais e estrangeiros, numa actividade paralela à do tratamento do espólio de Maria Gabriela Llansol e da divulgação da sua Obra pelos mais diversos meios, agora em particular com as sessões regulares do espaço que designámos de «Letra E», em Sintra.
Esta nova reedição fez-nos olhar para os últimos seis anos, os que passaram desde que a Maria Gabriela nos deixou, e para o muito que tem acontecido no campo da edição, reedição e tradução de obras suas, e também de livros sobre a sua escrita e o seu universo. O balanço – sem contar com os muitos textos inéditos que vimos dando a conhecer regularmante em revistas (portuguesas, brasileiras, francesas, espanholas, catalãs..., em suporte de papel e online) e nos «Cadernos da Letra E» que nós próprios editamos – é deveras impressionante, e faz da Obra de Llansol uma das mais editadas, traduzidas e comentadas actualmente no espaço literário português (com permanentes prolongamentos no estrangeiro). Contando com as novas edições em andamento, no final deste ano teremos um total de 36 livros publicados por nossa iniciativa e com a nossa intervenção directa, assim distribuídos:
Edições:
- 4 Livros de Horas (Assírio & Alvim)
- Uma tradução de M. G. Llansol (de Pierre Loüys, Relógio d'Água)
Reedições:
- 3 Diários, com um volume de Entrevistas (Editora Autêntica, Belo Horizonte)
- Um Beijo Dado Mais Tarde e a primeira trilogia, «Geografia de Rebeldes» (7 Letras, Rio de Janeiro)
- Lisboaleipzig (Assírio & Alvim)
Traduções:
- 5 livros em francês (quatro na editora Pagine d'arte e um na Les Arêtes)
- 2 livros em italiano (Pagine d'arte, contando já com a Antologia de Textos escolhidos de Llansol, em preparação)
- 3 livros em alemão (2 volumes de Lisboaleipzig, na Leipziger Literaturverlag; e o Almanaque Llansol na Berlin-Press)
- 3 livros em castelhano (a primeira trilogia, a sair brevemente na Editora Cinca, de Madrid)
- 1 livro em inglês (O Livro das Comunidades, já traduzido e revisto, para a Ugly Duckling Press, de Nova Iorque)
Sobre a Obra de Llansol:
- Europa em Sobreimpressão: Llansol e as dobras da História (Assírio & Alvim e Espaço LLansol)
- 8 volumes da colecção «Rio da Escrita», na editora Mariposa Azual
- 1 Caderno de Leituras (Llansol na crítica) (Mariposa Azual)

E ainda dois volumes colectivos, realizados com a nossa colaboração e publicados por duas editoras universitárias brasileiras: Um Nome de Fulgor, organizado por Maria Lúcia W. de Oliveira para a Editora da Universidade Federal Fluminense; e Partilha do Incomum, organizado por Maria Carolina Fenati para a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina.

Este é apenas um preâmbulo à matéria mais importante no dia de ontem, a apresentação da nova edição por Maria Etelvina Santos, cujo texto aqui deixamos:

No regresso de Lisboaleipzig
 
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Aos leitores dos meus textos:
Há anos que escrevo Lisboaleipzig. Inicialmente pensei que seria um livro de um único volume. Com o tempo, apercebi-me de que seria um livro em vários volumes (...). Achei oportuno publicar, no mesmo volume, textos dispersos que escrevi, ao longo dos anos, e com os quais procurei esclarecer-me sobre o sentido da minha escrita.
(Maria Gabriela Llansol (folha-convite para a apresentação de Lisboaleipzig, em Julho de 1994) 

 
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Em 18 de Julho de 1994 – há precisamente vinte anos – Eduardo Prado Coelho apresentava na Casa Fernando Pessoa a primeira edição de Lisboaleipzig (nas Edições Rolim), nesse dia apenas o primeiro volume, ao qual se juntaria um segundo ainda antes do final desse ano.
É para mim muito comovente estar hoje aqui, com este livro inteiro na minha mão, assistindo ao encontro de três partes de uma mesma vontade: reunidos os dois volumes da edição anterior com as xilogravuras de Ilda David’. É um encontro do diverso, mas esperado, pelo menos por nós e pela Maria Gabriela Llansol que tanto desejou esta edição como ela agora se apresenta. Estamos perante um objecto belo, no sentido em que o belo é definido neste livro: «salvo de qualquer embelezamento, para lá de toda a estética, e firmemente empenhado no corpo e no afecto».
Agradeço a todos os que possibilitaram a realização deste livro, e dedico esta apresentação à memória de Eduardo Prado Coelho.


1.
Falar deste livro de Maria Gabriela Llansol é como falar de toda a sua Obra, de um livro único onde podemos ler o registo – em múltiplos planos sobreimpressos, mas translúcidos – do percurso de quase todas as figuras que habitam os seus livros (aqui trazidos pelas vozes de um poeta – Pessoa, transfigurado em Aossê –, de um músico, Bach, e de um homem de pensamento, o filósofo Spinoza); mas é também o registo da problemática presente em toda a obra de Llansol – a procura das fontes da alegria – e ainda (o que pode ser mais inesperado) o registo, sob o modo de «ensaio-diário», de textos onde, como afirma, procurou esclarecer-se sobre o sentido da sua escrita.
Llansol traz para os seus textos duas constatações.
A de que a realidade é um contínuo, não um encadeamento de causas e efeitos; porque o que existe, existe em correspondências, «em evolução e oscilação permanentes» [entrevista a António Guerreiro, em 1991]. É deste modo que apresenta a realidade nos seus textos, e por isso eles pressupõem um «pacto de inconforto» com o leitor, que aceita ou recusa ler através dessa descontinuidade.
E constata também, como nos diz, que «faz sofrer viver sem certezas, mas que aqueles que devem viver sem elas têm a possibilidade de criar “outros possíveis” que serão outros mundos, se a linguagem os fizer e o corpo os puder tornar viáveis; e não haverá mundo se no seu centro irradiante estiver ausente a figura da alegria, que cada um de nós possa vislumbrar (...) porque  a espécie morre de sede à míngua de outros campos do possível». [publicado no jornal O Diário, em 1982].
É esta a matéria dos livros de Llansol, a procura que a orientou durante toda uma vida de escrita, e que está tão claramente presente neste Lisboaleipzig.


2.
No contexto da obra de Llansol, Lisboaleipzig surge depois da publicação das duas primeiras trilogias (onde o objectivo é pôr em evidência a conquista de um bem como a liberdade de consciência, sobretudo através da figura do rebelde), e na sequência de livros como Um Beijo Dado Mais Tarde, de1990, ou o diário Um Falcão no Punho, de 1985.
Publicado só em 1994, em dois volumes, o projecto Lisboaleipzig inicia-se muito antes, tem várias ramificações noutros livros, irradia por todo o espólio de Llansol, primeiramente ao longo de cerca de quinze anos (entre 1978 e 1994), sendo posteriormente retomado em vários momentos. Podemos dizer que se trata de uma dispersão contínua e consciente, oscilante e produtiva, de forma a atingir um máximo de amplificação, experiência que terá o seu expoente no último livro, Os Cantores de Leitura, através do encontro de praticamente todas as figuras dispersas pela totalidade da obra, que se encontram para «cantar a leitura» ou elevar a escrita à dimensão da música e do canto. Creio poder dizer que o projecto Lisboaleipzig só se conclui com Os Cantores de Leitura, em 2007.
Se a liberdade de consciência foi a preocupação primeira da obra de Llansol, depois das trilogias começou a tornar-se evidente a necessidade de experienciar um novo valor que consolidasse e fizesse evoluir a liberdade de consciência, inscrevendo-a numa prática de características ético-estéticas a que chamou «dom poético», e que também define como a capacidade de «efectivar o possível».
Assim surge uma nova orientação na Obra, que se inicia com o projecto Lisboaleipzig, pondo ênfase no «dom poético», e cujos antecedentes radicam na afirmação de uma língua sem impostura.
As razões são conhecidas: se é certo que o ser humano transporta consigo uma marca evolutiva, esta não deve, contudo, ser vista como superioridade ou como um dado adquirido. É tarefa do homem contribuir para que se desenvolva uma outra percepção de elos e de relações entre todo «o vivo», e para que se estabeleça um contrato de mútua não-anulação com todo o vivo da espécie terrestre. Esse valor de inscrição da liberdade de consciência, o «dom poético», capaz de quebrar hierarquias entre todos os seres, assenta, assim, na convicção de que o mundo é profundamente estético e sensitivo, e de que é necessário fugir aos dogmas da crença e da razão, e tentar perceber o que há nas coisas como forma de linguagem que se oferece aos sentidos e ao pensamento. E se todo o pensamento é uma afecção do corpo (segundo Spinoza), é preciso desenvolver um novo corpo de afectos que possibilite a criação de novos modos de pensar, de novos «ciclo[s] de pensamento e de formas de viver». Procurar desenvolver um pensamento afectuante que entenda o fulgor que há nas coisas, o seu modo de comunicar connosco através de campos imagéticos (não imaginários), significa fazer a experiência do diverso num lugar imaginante, «o denominado estético» ou «entresser», lugar fora do tempo e de coordenadas de espaço, um locus/logos de acolhimento das constelações de forças visíveis e invisíveis, um lugar de encontro de vestígios deixados por outros que nos antecederam, vestígios que irradiam como aparições fugazes mas intensas, através de imagens fraccionadas que se nos oferecem para composição. O «dom poético» é essa capacidade de dialogar com o mundo, de ver e compor imagens, de as «cerzir às palavras». Uma interrogação face ao mundo que, no caso de Llansol, não se faz sob o modo teológico ou filosófico, mas estético, como afirma e mostra neste livro, e sintetiza numa página programática, espécie de pórtico-manifesto que inicia a segunda parte do livro. E também nestas linhas iniciais:

            o encontro inesperado do diverso
            é assistir ao belo a comunicar com o silêncio;
            a fraccionar a imagem nas suas diversas formas;
            ajudá-las a levantar o véu para que se mostrem mutuamente
            na beleza própria
           
Sejamos, por isso, conscientes da necessidade de reaprender a ler o mundo, sobretudo não escavando mais fundo, mas olhando mais longe na paisagem; pela necessidade de deixar vestígios operantes e futuros, imagens que outros possam vir a recolher e transformar.


3.
Este livro mostra a oficina de escrita de Maria Gabriela Llansol, que parece espalhar em cima de uma mesa, e sob os nossos olhos, vários tipos de textos: páginas de diário (de 1978 a 1994) – de todos os lugares da Bélgica onde viveu, até Colares onde se fixou depois do regresso a Portugal; páginas de agradecimento de prémios literários (de 1990 a 1994) – textos de intervenção pública que sistematizam as directrizes fundamentais da sua escrita, como que oferecendo ao leitor comprometido com o «pacto de inconforto» da sua escrita um instrumentário que lhe permita desbravar, mas não a anulando, toda a caoticidade observada na leitura da primeira parte do volume; fragmentos de livros anteriores que desenham as mesmas problemáticas através de outras figuras; fragmentos de livros futuros, onde iremos encontrar estas mesmas figuras; uma possível carta aos habitantes de Herbais, na Bélgica, que lá ficaram; um post-scriptum aos leitores de lá e de cá, onde (em duas linhas) dá conta do que fez enquanto andou pelo mundo; uma página-manifesto onde fala da procura de «um final feliz», e também o relato de uma ceia de Natal em Leipzig, na casa do músico Bach, onde, anulando fronteiras de espaço e tempo, se espera a chegada de um hóspede, o poeta Pessoa, aliás Aossê de seu nome, que, desiludido com a sua terra natal, vai ter com o músico para que este lhe componha uma Ode Sinfónica a um Deus Errante – um canto que exacerbe o seu povo, que o tire da sua «apagada e vil tristeza». Com a família Bach e o poeta estão também  Infausta (o heterónimo feminino de Aossê), ou a escrevente que os espreita da janela, e os traz depois até ao Cabo Espichel para um encontro com o filósofo Spinoza, e onde um falcão sobrevoa a paisagem...
É difícil imaginar um livro feito de tudo isto. Sobretudo é difícil perceber como Llansol consegue a coerência que circula entre todos estes textos e a sua unidade final. Mas é também no livro que encontramos justificação para o seu procedimento.


4.
Após um exílio de vinte anos na Bélgica, Maria Gabriela Llansol volta a Portugal e encerra um ciclo que culminou com o viver solitário de Herbais. Nas mudanças pelos diferentes lugares, a que chama «passagens-metamorfose», Llansol encontra a explicação para o modo como todo o seu texto se constrói e organiza. Deixa claro que as figuras dos seus livros viajam com ela fisicamente, deixando-se envolver nas paisagens futuras para onde são levadas, provocando com esse envolvimento desvios e transformações nos projectos a que estão ligadas, e que, enquanto escritora (ou escrevente, como preferia dizer), o seu papel é deixar fluir, a esse ritmo, o ritmo da escrita e da construção das figuras. É o que acontece com o livro Lisboaleipzig, e é essa uma das razões que explicam a introdução, na primeira parte, dos muitos fragmentos de diários que povoam as páginas ao longo dos anos de preparação do livro, com o objectivo de não anular o registo desse imenso caminho percorrido até ao apuramento das figuras, dos seus contornos, das decisões (por vezes prolongadas no tempo) acerca «de quando queriam encontrar-se, enfim, os membros – visíveis e invisíveis – dessa comunidade», o que só virá a acontecer em Colares.
A figura de Pessoa/Aossê é paradigmática da estrutura fragmentária e dispersa de toda a  primeira parte de Lisboaleipzig, que se constrói no trajecto Jodoigne-Herbais-Colares, com fragmentos de todos esses lugares, e com uma organização interna que nada tem a ver com a habitual estrutura diarística – os fragmentos de diário não surgem agrupados cronologicamente. Podemos concluir que o carácter fragmentário e o modo disperso como surge a figura de Aossê está de acordo com a «sobrevida» que Llansol lhe confere a partir do poeta Pessoa – a «autêntica figura explosiva da galáxia Ocidente».
Por outro lado, Aossê, Bach e, de certo modo, Spinoza, aparecem principalmente associados ao lugar de Herbais, que foi, entre todos os lugares, o punctum das passagens-metamorfose de Llansol: o maior isolamento na maior intensidade e, paradoxalmente, um quase arquétipo do que significa ser passagem e ser metamórfico. A força do isolamento de Herbais adequa-se bem à pujança de Bach, e o facto de ser um lugar de passagem aproxima-o da multiplicidade dispersa de Pessoa/Aossê, também este figura de passagem e metamorfose.
Assim, toda a primeira parte de O encontro inesperado do diverso mostra, na sua arquitectura e já no seu título, a clara intenção de não limar arestas, de não retirar aos textos dos diários, ou dos livros, o seu carácter fragmentário e ocasional, disperso e intercambiável. Pessoa/Aossê adequa-se perfeitamente a este núcleo onde se condensa a maior dispersão na maior intensidade. Retirar à construção da figura de Aossê o que de mais conseguido Pessoa deixou como Livro do Desassossego, seria retirar-lhe a possibilidade de devir, que tanto motivou Llansol, que faz o seu trabalho de escrita sem anular a possibilidade de poder reconstituir a figura do poeta continuadamente. Deixar a figura crescer durante tanto tempo, e num projecto tão alargado, torna mais possível a sua não cristalização.
Neste livro associado à imagem de um falcão e à ideia de um ser futuro, mas também à escrita, Aossê entrou no punho daquela que escreve já num fragmento anotado nos primeiros anos na Bélgica:

Nevava em Lovaina, de encontro aos Cafés que eu abrangia como comunidades de peregrinos, e suspeitei que um falcão voava para o meu trabalho, com uma aura de nobreza, e vindo de um país do sul.
Não pousou no meu pulso, entrou no meu pulso.
Os seus olhos redondos, duas vezes maiores, entre mim e a neve, são-me entregues.  
(16 de Janeiro de 1985 – Colares).

Ainda uma nota, que me parece importante, para a figura de Infausta: é através desta figura que se estabelece a coesão da estrutura fragmentária das duas partes de Lisboaleipzig. Penso que a perplexidade causada no leitor, principalmente pela composição da primeira parte e da sua relação com a segunda, não poderá ser entendida senão através da figura e do papel de Infausta, que orienta e revela a oficina textual, articula a génese das figuras com as entradas diarísticas e os textos metateóricos, fornecendo a chave dessa imensa e complexa composição intertextual.
Sendo «a alegria de Aossê», «o seu heterónimo feminino», «a chave da porta», o seu corpo surge como um «domínio revelador» da experiência de Bach e Aossê.


5.
Uma palavra final (sem a qual não poderia concluir a apresentação deste novo Lisboaleipzig) para as xilogravuras de Ilda David’ e para a matriz de leitura que elas nos oferecem, ecoando a matriz da imagem-figura no texto.
Parto desta citação de Llansol:

Não vejo em palavras: ouço imagens que se confrontam a admirações de pensamento e que não serão nada se não nascerem com o corpo que lhes convém.

As xilogravuras de Ilda David´ inserem-se neste percurso de descoberta, de escuta às imagens. Mostram, num modo oficinal, o seu traço, a marca de quem as realiza, o claro/escuro de quem atravessa com este texto a metanoite do acto criativo, também ele um encontro inesperado do diverso e um ensaio permanente. As suas gravuras convocam os lugares e as figuras deste texto como Maria Gabriela Llansol convoca um mundo originário, fora do tempo, ou sempre futurante, e o traz para um lugar propício ao aparecimento de imagens, que ora se constituem em paisagens ora em figuras, vestígios a recuperar, vislumbres deixados ao cuidado de quem olha. «Reparar no real faz eclodir o real que, no invisível, lhe corresponde», diz-se no livro O Senhor de Herbais, para explicar como «as flores em amentilhos, das plantas com ramos longos, finos e flexíveis, correspondem na invisibilidade ao livro das comunidades». É disso que aqui se trata. Daquilo que Llansol nomeia como a «dobra». Também neste livro, neste livro inteiro, as imagens surgem em e como dobra – as de Ilda David’ e as do texto. As imagens múltiplas, diversas e, por vezes, contrastantes, destas xilogravuras correspondem, no plano textual, à composição de um livro como Lisboaleipzig. À técnica da sobreimpressão, que Maria Gabriela Llansol afirma, neste mesmo livro, ser a que melhor define o seu modo de escrita, a de uma paisagem e uma língua sobreimpressas, corresponde este entalhamento nas gravuras, preciso no detalhe, matérico, criador de intensidades dramáticas, onde se avivam tensões que originam diferentes ritmos.
Ao leitor pede-se que apure os sentidos, que exercite a capacidade de ver no visível o invisível que lhe corresponde. Olhar a superfície da madeira – elemento condutor e matriz da imagem – pressupõe ver na dobra a imagem que lhe corresponde, deixando-a emergir, tal como no texto a imagem deixa emergir a sua condição nascente de figura.
O silêncio primordial que, por vezes, envolve Lisboaleipzig, parece alongar-se no espaço negativo da gravura. Em contraste, noutros momentos a música, o canto, o riso de crianças povoa-o com figuras sonoras. E o jogo de alternâncias torna-se visível nas gravuras de Ilda David’ – entre a matriz pura, não trabalhada do negro silente, e o branco dos espaços com sulcos, que escavam a matriz e a enchem de sonoridade. Essa alternância na superfície gravada corresponde ao elemento significante no plano textual – no dizer de Llansol, «as nervuras do tempo», a capacidade de «ver as poeiras» ou «o ressalto de uma frase». Este ressalto é um «silente», ou «a diferença que significa e que nem sempre está onde o público a espera». É, por certo, o pequeno objecto de madeira que nos entregam na passagem de testemunho, vestígio que guardamos na mão quando partimos «à procura das fontes da alegria e da sua figura irradiante».


*
A apresentação do livro e as intervenções que se seguiram foram sendo entrecortadas por excertos de textos lidos por Helena Alves, Vasco David e João Barrento, oferecendo às pessoas que enchiam a sala uma primeira entrada no universo da obra. Num segundo momento, e depois de algumas considerações de João Barrento sobre o «baixo contínuo» subjacente a Lisboaleipzig (e a toda a Obra de Llansol desde o Prólogo d' O Livro das Comunidades), conferindo-lhe um «sentido projectivo», mas não necessariamente utópico, que o transformam no «grande Tratado do Contrato» encenado na cena final do Cabo Espichel, o compositor João Madureira ocupou-se do triângulo 

Bach, Llansol e Ilda David'

Venho, a propósito do lançamento de Lisboaleipzig com ilustrações de Ilda David', a convite da Assírio & Alvim, a quem agradeço, falar de um triângulo que me é particularmente caro: Llansol, Ilda David' e Bach.
Um triângulo de autores que me são particularmente queridos, pela forma como constroem Todos que são Unos, embora sejam feitos de fragmentos irredutíveis, feitos de visões que à partida diríamos inconciliáveis. Obras apenas consideráveis entidades unas se aceitarmos a sua condição de seres em constante e perpétuo devir.
Se o texto de Llansol é particularmente conhecido pela forma como guia o leitor através de caminhos labirínticos e aparentemente sem nexo, e a pintura de Ilda David' surge como um caminho pessoalíssimo de união do que muito prosaicamente poderíamos chamar de universos figurativo e não figurativo, a música de Bach, que Llansol tanto amava, é para mim um testemunho muitíssimo feliz de complementariedade entre unidade e diversidade.
Pensamos, habitualmente, na música de Bach, e particularmente nas suas fugas, como algo cuja figura principal é a reiteração de um tema e cujo fundo é constituído pela eclosão de outras vozes que acompanham esse tema ou sujeito.
Penso que esta realidade deve ser encarada de uma forma completamente diferente. Aquilo que podemos (devemos?) ouvir numa fuga de Bach é o perpétuo devir de vozes como figura principal face à reiteração de um tema, agora ouvido apenas como fundo.
Esta percepção do constante devir na produção musical de Bach acentuou-se substancialmente quando compus Eco, ou Bach em Pessoa, uma interpretação composta da Arte da Fuga de J. S. Bach cruzada com a leitura de poemas de Fernando Pessoa.
Com efeito, aí, para além daquilo que eu observava em cada uma das fugas de Bach — e que era o facto de o tema e a sua reiteração apenas estarem presentes como pretexto para uma elaboração melódica constante —, vi como esse mesmo desejo de invenção melódica conduzia ao desmembramento das características do tema, de fuga para fuga.
Não eram, portanto, apenas as pequenas figuras que se desenvolviam continuamente. Era o próprio tema que se alterava.



                             Bach e as alternâncias da fuga: normal, retrógrado, invertido e retrógrado-invertido

Recordo que nessa altura, constatando esse universo de mudança, não hesitei em juntar duas personagens da nossa cultura europeia aparentemente desavindas, cujo encontro, aliás, já havia sido experimentado por Llansol em Lisboaleipzig: Bach, o mestre da homogeneidade, e Pessoa, o autor irredutivelemente plural. Propus, aí, que ouvíssemos Bach como normalmente lemos a poesia de Pessoa, e percebessemos a sua enorme diversidade, ao mesmo tempo que desafiava o ouvinte a olhar a obra de Pessoa de uma forma muito mais interligada do que estamos normalmente habituados a fazer.
Por isso se adensou em mim a convicção de que no diverso reside uma surpreendente proximidade. E se verifico esse elogio do diverso em Bach, constato-o igualmente em Llansol e Ilda David'. Uma proximidade que nos habituámos, infelizmente, a ignorar — e as consequências desta infelicidade atingem a nossa própria identidade política e existencial.
Devo dizer que esta complementaridade entre unidade e diversidade da obra de Bach não se deve confundir com a criação de jogos de pergunta e resposta, que constitui a gramática musical de compositores como Mozart.
A este propósito, foi com espanto que vi Llansol opor Bach a Mozart numa entrevista que dá, logo após a publicação de Lisboaleipzig, nos anos 90, dentro de uma sua exposição maior sobre o que pensa da Europa e da sua história. Não deixa de ser uma intuição certeira, a que ela faz com a oposição entre estes dois compositores!
Gostaria, finalmente, de terminar com a audição de uma das fugas de Bach de que mais gosto: a fuga em Dó Maior do primeiro caderno do cravo bem temperado. Escolho uma interpretação no instrumento para o qual ele originalmente compôs, o cravo, que, pelo seu próprio timbre, consegue dar luz a esta sensação de um todo estilhaçado. 
Ouça-se aqui a fuga de Bach:



12.6.14

O REGRESSO DE LISBOALEIPZIG


Acaba de ser distribuída a nova edição do livro de Maria Gabriela Llansol Lisboaleipzig, agora com as duas partes – «O Encontro Inesperado do Diverso» e «O Ensaio de Música» – reunidas num único volume, com xilogravuras de Ilda David', em edição Assírio & Alvim.

Xilogravuras de Ilda David'

Lisboaleipzig é um livro com características singulares entre os de M. G. Llansol, fazendo conviver a forma diarística explícita, na primeira metade do primeiro volume, o «ensaio» ou o texto de reflexão, na segunda metade, e uma trama narrativa em torno da metamorfose textual de uma figura maior, complexa e que acompanha durante muito tempo a escrita de Llansol, que é a de Pessoa-Aossê, no segundo volume. Desde o tempo de Herbais, ainda no exílio belga, até ao fim da vida (com o último livro, Os Cantores de Leitura), esta matéria estará sempre presente na escrita de Llansol, que neste livro se organiza em torno de dois triângulos figurais que cobrem a «ordem figural do quotidiano» e a esfera musical, poética e filosófica, com vista à transmutação de Fernando Pessoa em Aossê e à sua libertação do «paradigma da água» português: o círculo masculino de Bach-Pessoa-Spinoza (Baruch) e o feminino de Anna Magdalena-Infausta-Elisabeth, ligados pelo fio condutor da figura do falcão que subjaz à de Aossê e representa a pujança poética e transformadora da escrita.
Assinalando a saída deste livro, uma série de obras de Ilda David' em torno do universo objectal e figural de Llansol integrarão uma grande exposição no Centro Internacional das Artes, em Guimarães, a partir de 26 de Julho próximo.

Xilogravuras de Ilda David'

A nova edição de Lisboaleipzig será apresentada no próximo dia 18 de Junho, às 18.30 h., na livraria da Assírio & Alvim do Chiado. Aqui fica o convite:

1.6.14

LLANSOL, O TEMPO E OS ALMANAQUES

«Só hoje ontem se deixa escrever...» 
(M. G. Llansol, Inquérito às Quatro Confidências, p. 63)





Escrevamos então a tarde de ontem na Letra E – uma forma de compensar a desvantagem em que sempre se encontram aqueles que não podem viver os acontecimentos...
Contámos com a presença de Ilse Pollack, austríaca, grande conhecedora de Portugal e das literaturas de expressão portuguesa, e responsável por essa pequena pérola que se chama, no original publicado em Berlim, Territorium der Randständigen. Ein Llansol-Almanach, e que em português poderia trazer o título «Nós herdámos as margens. Um Almanaque-Llansol». Um livro delicado, feito com paciência, muita leitura e sensibilidade aos textos e aos tempos, o que levou alguns leitores austríacos a falar da sua renitência em escrever nos espaços destinados em cada página às anotações pessoais. Também as recensões de alguns jornais e revistas destacaram «esta aventura de leitura, que assim se torna também uma aventura de vida» (revista Sterz), o «conjunto de pedras preciosas arrancadas a uma grande massa de textos», num «atractivo volume em que cada citação estimula o pensamento» (Wiener Zeitung, de Viena), «o belo grafismo, a boa selecção de textos e a introdução escrita com espírito» (um conhecido alfarrabista de Salzburgo), «publicação belíssima, extremamente atraente e conseguida» (o poeta austríaco Hans Raimund)...

 No início da sessão de ontem João Barrento apresentou a autora, sua amiga de longa data, recordando uma crónica escrita no jornal Público em 10 de Dezembro de 1994, onde então comentava o livro de Ilse Pollack Fado. Lebensbilder aus Portugal [Fado. Vidas portuguesas], saído na Áustria nesse ano:
«As suas paixões são os lugares de passagem, cemitérios e fronteiras, cidades entre mundos (Trieste ou Lisboa, Brody ou Cernowitz), literaturas esquecidas (a 'literatura colonial portuguesa': quem se lembra dela? quem lhe conhece os nomes?), universos em vias de extinção, como o da cultura judaica do Leste europeu ou o das personagens de um Portugal que já quase não há (...)
As histórias portuguesas de Ilse Pollack, a autora austríaca que há muito nos descobriu e insistentemente vai lembrando à Europa Central quem somos e fomos, têm a sua origem num tempo já distante e ainda tão perto, tempo também ele de transição, a uma escassa dúzia de anos de nós. O velho ainda resistia, o novo debatia-se nas suas contradições, o futuro pintava-se de cores incertas. Alguns anos depois da Revolução, o nosso fado jogava-se entre memórias negras, esperanças mais ou menos avermelhadas e os tons já pardos da melancolia. 
 Ilse Pollack: uma vida de escrita e andanças em torno de Portugal e da literatura portuguesa, e que agora chegou também a Llansol...
O livro de Ilse Pollack vem desses anos... São crónicas da desagregação das grandezas e misérias de uma revolução efémera (sem, no entanto, serem crónicas 'da' revolução), ficcionadas através de uma galeria de figuras que falam na primeira pessoa, quase só de si, mas apesar disso, por isso, também de um país e dos seus tempos vários. Muitas delas vêm de um Portugal sem história, vidas anódinas, quem sabe se felizes, de uma província apagada e modorrenta, de cidades trituradoras dos desejos, apanhadas nas ondas de uma (r)evolução social e económica em que baloiçam ainda, com a diferença de que agora julgam saber já muito bem para onde vão.
(...) Em fundo, um estado de melancolia latente que é afinal o laço da indisfarçável empatia entre a autora e as suas personagens. É daí que vem, provavelmente, o grão da diferença nestas histórias em que um olhar exterior nos quer apanhar num momento de passagem. A escolha das figuras mostra como Ilse Pollack não se deixa ir com os tempos, como é uma grande solitária solidária, pessimista e voluntariosa, cujo olhar se fixa de preferência nos perdedores deste mundo: minorias, fracos, marginais, judeus, escritores de não-sucesso, radicais, casos perdidos(como o nosso?). Escreve histórias a contrapêlo da História, para assim melhor poder ler-lhe os caminhos...», etc., etc.

Num espírito perfeitamente afim do de Llansol, como se vê...
 
Falou-se ontem do tempo e de almanaques, e Ilse Pollack lembrou, também com um texto antigo, a sua mania, quase doença, dos almanaques, e deu-nos conta das motivaçõs e da génese do único almanaque até hoje feito com textos de Llansol. Deixamos aqui alguns momentos dessa sua apresentação do tema da sessão, extraídos da crónica «A doença dos almanaques», publicada num jornal austríaco em 1990, e do prefácio ao Almanaque Llansol (que figura, em tradução portuguesa, no «Caderno da Letra E» que ontem oferecemos, como sempre, aos que vêm até nós).

 Mais um «Caderno da Letra E» sobre as mesas...

 Os almanaques e a escrita do tempo em exposição

Ano após ano, quando chega o fim de Dezembro, ela ataca em força, a doença dos almanaques. Nunca são de mais os que me poderiam oferecer... (...)  Só os tipos humanos com um ego fraco se deixam obsecar assim pelo tempo. Li isto em tempos, já não sei onde. Pode ser que sim… E no entanto: haverá coisa mais bela do que um desses almanaques acabados de chegar, dia após dia uma folha branca, ainda virgem de escrita? Por outro lado, como é triste o almanaque do ano passado! Porque, ainda que fosse essa a minha intenção, acabei por nunca ser o exacto guarda-livros dos meus dias (...)  Nunca imaginei começar o ano a praguejar, mas eis que a isso me obriga o Almanaque de Pragas e Impropérios da Estíria. No dia 1 de Janeiro, em letras verdes sobre fundo cinzento, lá está um desses impropérios, a palavra «Weintatschker» [Sapo bêbado], referindo-se sem dúvida à noite de Ano Novo que passou. O dia 2 de Janeiro, vá lá, já nos diz que devemos começar o ano com espírito jovem e dinâmico! E para isso temos o Almanaque dos Amigos da Vida, com os seus «pensamentos positivos, animadores e meditativos para cada dia». Sentenças triviais, logo a abrir o ano? Prefiro os almanaques dos padeiros e dos açougueiros, com as suas receitas sólidas para todos os dias. Mas estas coisas úteis, ao que parece, passaram de moda, desapareceram como A Loja da Esquina, o almanaque que em tempos nos oferecia coisas dessas, há muito, muito tempo.
As pessoas modernas usam agendas que trazem no bolso: agendas da Mulher e do Homem, do Ambiente e do Terceiro Mundo, do Greenpeace e da Paz… a perder de vista. Mas o que eu quero é mesmo um almanaque, e não uma qualquer mixórdia temática!  É pena! Até o velho Almanaque Camponês já não confia nas belas cores dos seus santinhos – e é por isso que agora, em vez da barba de fogo de Santo Inácio, tenho de engolir sempre uma história parva («Ai, filha, vamos a isto!»). Então antes uma agenda «neutra», em que posso ler na última página, enquanto espero pelo dentista, por exemplo que a órbita de translação da terra tem uma extensão de 939.200.000 quilómetros.
Tantos almanaques! E no entanto só um me agrada realmente, com as muitas alegrias que nos dá ao longo do ano! Durante todo o mês de Janeiro, o Gato Maltês (Kater Murr) não faz outra coisa senão entregar-se ao seu passatempo preferido, a patinagem no gelo; em Fevereiro só tira a máscara para meter o dente nas deliciosas bolas-de-Berlim. Em Março sobe a uma árvore e fica ali sentado a sonhar com o amor, e em Abril esconde-se debaixo do guarda-chuva. Em Maio, finalmente, vem a descendência, e no fim de Junho vai até à praia. O mês de Julho é passado de patas estendidas a apanhar sol, e em Agosto vai á pesca e apanha uns peixes. Em Setembro, o Maltês leva os filhos à escola e em Outubro já está demasiado cansado para apanhar os últimos pássaros. Em Novembro já cai neve, e o Maltês fica em casa, deitado em almofadas fofinhas, contemplando o cair lento dos flocos através da janela. E em Dezembro ganha novo alento, escreve cartas e traz para casa uma árvore de Natal.  Ah, como tudo está no lugar certo neste ritmo anual do Gato Maltês! E também eu fui um dia a criança para quem este almanaque era feito, e todas as coisas estavam então em ordem e no lugar certo. Só mais tarde começaram a mudar de lugar, cada vez mais depressa – e sem eu dar por isso tinham desaparecido: as coisas, as pessoas, as forças, as emoções. 
Ficar quieta, é esse agora o meu sonho. Quietinha, sem bolir, mais nada…
 E  apresentando o seu Almanaque Llansol, Ilse Pollack esclarece:
Apesar de algumas tentativas arriscadas e ousadas de a traduzir para alemão e de a editar, a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol é praticamente desconhecida do público leitor de língua alemã.
E de repente, isto: um almanaque, feito de frases, fragmentos de texto, respigados exclusivamente das suas obras, para todos os dias do ano – com algum espaço de permeio (aqui e ali algo reduzido), para que os estimados «legentes» possam acrescentar a cada passagem de texto as suas notas pessoais. E apesar disso, não se trata de uma agenda no sentido corrente do termo.
(...)

Os almanaques são geralmente feitos de provérbios, ditos, máximas, pelos quais nos orientamos, ou que nos desafiam a contradizê-los; e isso acontece também com este. Com a diferença de que neste caso eles estão intimamente ligados aos lugares de vida e de escrita da autora: Lisboa ou o «não-lugar» de Herbais, Bruges, lugar de beguinas, ou Alpedrinha, lugar da infância, para apenas mencionar alguns. E neste contexto surgem também as figuras, nomes conhecidos e desconhecidos da História que são reinventados nos textos de Llansol, acolhidos em vários livros onde formam constelações, numa coexistência que supera todas as barreiras de tempo e de espaço.
E tudo isto entrecortado por reflexões sobre a escrita, leituras e gostos pessoais, os animais da casa, sobretudo os gatos, e, enfim, também algumas afinidades especificamente «femininas», muito embora o texto, para esta autora – que heresia! – não tenha sexo.
Neste almanaque seguimos uma «ordem» que é a da própria Maria Gabriela Llansol, que «descasca ervilhas enquanto ouve Bach», em cujo universo não existem hierarquias, nem «em cima» e «em baixo», nem juízos de valor ou prerrogativas sociais. Um mundo no qual o quotidiano se situa ao mesmo nível da mais alta concentração mental e o diálogo com Spinoza se encontra com a preparação da ração para as galinhas.
E agora, cara/caro legente, entra no ano, nos seus meses e dias, descobre, anota e continua as tuas buscas!

A meio da sessão, e antes da leitura colectiva de excertos de Llansol sobre o tempo, João Barrento traçou ainda brevemente algumas linhas de ligação entre os modos de escrita e a relação com o tempo em M. G. Llansol e nos almanaques:
Llansol, o tempo e os almanaques
À primeira vista, e para quem conhece os modos de relação com o tempo e os ritmos da vida de Maria Gabriela Llansol, nada de mais afastado do registo dominante da sua escrita do que o lado contingente, tranquilizador e por vezes sentencioso do almanaque – que é aquele tipo de obra que mais de perto acompanha a esfera de que a sua Obra se distancia desde sempre, e a que Llansol a certa altura chama «a luz comum», com os seus ritmos diários sempre iguais e sem consequências. Do outro lado está o «combate», a tensão produtiva da inquietação. 
 O Almanaque de Liège da colecção de Llansol, com escrita da autora
Mas, como quase sempre acontece em Llansol, a realidade nunca é lisa e unívoca, tudo existe em dobra. E assim constatamos que, por outro lado, toda a sua escrita nasce ao fio dos dias e das suas contingências e humores, de acasos que o não são, ou a breve trecho deixam de o ser; sabemos hoje que ela sempre teve uma ligação natural às datas e ao seu registo – apesar de, por outro lado, as ver como outros tantos momentos de antecipação da morte, como lemos hoje num dos cadernos –, e grande parte da sua escrita, pelo menos depois das trilogias, não foge aos acontecimentos dos dias, antes pelo contrário, eles estão sempre a «cair» de algum lugar para os seus cadernos, e é deles que se alimenta a sua escrita: «A realidade acontece no tempo em que escrevo ___ julgo-a, e brinco com ela sob o nome de trans-realidade» (caderno 1.70, 19).
E assim também a luz comum – se por isso entendermos agora a luz que ilumina todos os seres no seu trajecto por este mundo, à espera de serem fulgorizados na sua singularidade e singeleza – não está ausente desta obra, nem ela a rejeita.
E há entre ambos – o almanaque e o universo da escrita de Llansol – um elo que os aproxima: o tempo, nas suas múltiplas vertentes, nos seus rostos mutantes.
Que tempo é o do almanaque? E que tempos encontramos na Obra de Llansol?
Num e noutro caso, tempos vários – da história quotidiana à imaginária ou fantástica, da mais insignificante às de dimensão e sentido cósmico, das rotineiras histórias «que estamos sempre a contar uns aos outros» aos mais extraordinários saltos para zonas quase alucinatórias, da pequena «anedota» ou da sentença (que também há em Llansol, na sua veia mais irónica) às grandes parábolas que são sempre as das figuras retiradas à história e à vida comum, para serem implantadas no espaço edénico do texto – exemplos não faltam, como bem sabem aqueles que a lêem.
Em qualquer caso, histórias de subversão e transfiguração do tempo, a partir das mais rasas, mas reveladoras, vivências do tempo. Em Llansol actua um olhar que, antes e depois da narrativa, fulgoriza o instante e o veste de uma aura que o leva para outras eternidades. Era já assim n' O Livro das Comunidades, e será assim até Os Cantores de Leitura.

O resto, no que aos tempos de Llansol se refere, está no meu ensaio "Llansol: Os rostos do tempo", de que transcrevo uma parte no caderno feito para o dia de hoje (o ensaio completo, «Llansol: o texto dos tempos», pode ler-se no volume colectivo organizado por Maria Carolina Fenati e saído recentemente na Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, com o título Partilha do incomum: leituras de Maria Gabriela Llansol).

E terminámos, antes de algumas questões que depois nos foram colocadas, com um modelo de leitura até agora não ensaiado na Letra E, mas que resultou num momento conseguido de partilha, a repetir no futuro: cada um dos presentes leu um ou mais fragmentos de textos de Llansol sobre o tempo, inscritos em faixas de cartolina numeradas previamente distribuídas, agora transformadas em marcadores de leitura dentro do caderno «Llansol e os rostos do tempo», que cada um levou consigo...