1.6.14

LLANSOL, O TEMPO E OS ALMANAQUES

«Só hoje ontem se deixa escrever...» 
(M. G. Llansol, Inquérito às Quatro Confidências, p. 63)





Escrevamos então a tarde de ontem na Letra E – uma forma de compensar a desvantagem em que sempre se encontram aqueles que não podem viver os acontecimentos...
Contámos com a presença de Ilse Pollack, austríaca, grande conhecedora de Portugal e das literaturas de expressão portuguesa, e responsável por essa pequena pérola que se chama, no original publicado em Berlim, Territorium der Randständigen. Ein Llansol-Almanach, e que em português poderia trazer o título «Nós herdámos as margens. Um Almanaque-Llansol». Um livro delicado, feito com paciência, muita leitura e sensibilidade aos textos e aos tempos, o que levou alguns leitores austríacos a falar da sua renitência em escrever nos espaços destinados em cada página às anotações pessoais. Também as recensões de alguns jornais e revistas destacaram «esta aventura de leitura, que assim se torna também uma aventura de vida» (revista Sterz), o «conjunto de pedras preciosas arrancadas a uma grande massa de textos», num «atractivo volume em que cada citação estimula o pensamento» (Wiener Zeitung, de Viena), «o belo grafismo, a boa selecção de textos e a introdução escrita com espírito» (um conhecido alfarrabista de Salzburgo), «publicação belíssima, extremamente atraente e conseguida» (o poeta austríaco Hans Raimund)...

 No início da sessão de ontem João Barrento apresentou a autora, sua amiga de longa data, recordando uma crónica escrita no jornal Público em 10 de Dezembro de 1994, onde então comentava o livro de Ilse Pollack Fado. Lebensbilder aus Portugal [Fado. Vidas portuguesas], saído na Áustria nesse ano:
«As suas paixões são os lugares de passagem, cemitérios e fronteiras, cidades entre mundos (Trieste ou Lisboa, Brody ou Cernowitz), literaturas esquecidas (a 'literatura colonial portuguesa': quem se lembra dela? quem lhe conhece os nomes?), universos em vias de extinção, como o da cultura judaica do Leste europeu ou o das personagens de um Portugal que já quase não há (...)
As histórias portuguesas de Ilse Pollack, a autora austríaca que há muito nos descobriu e insistentemente vai lembrando à Europa Central quem somos e fomos, têm a sua origem num tempo já distante e ainda tão perto, tempo também ele de transição, a uma escassa dúzia de anos de nós. O velho ainda resistia, o novo debatia-se nas suas contradições, o futuro pintava-se de cores incertas. Alguns anos depois da Revolução, o nosso fado jogava-se entre memórias negras, esperanças mais ou menos avermelhadas e os tons já pardos da melancolia. 
 Ilse Pollack: uma vida de escrita e andanças em torno de Portugal e da literatura portuguesa, e que agora chegou também a Llansol...
O livro de Ilse Pollack vem desses anos... São crónicas da desagregação das grandezas e misérias de uma revolução efémera (sem, no entanto, serem crónicas 'da' revolução), ficcionadas através de uma galeria de figuras que falam na primeira pessoa, quase só de si, mas apesar disso, por isso, também de um país e dos seus tempos vários. Muitas delas vêm de um Portugal sem história, vidas anódinas, quem sabe se felizes, de uma província apagada e modorrenta, de cidades trituradoras dos desejos, apanhadas nas ondas de uma (r)evolução social e económica em que baloiçam ainda, com a diferença de que agora julgam saber já muito bem para onde vão.
(...) Em fundo, um estado de melancolia latente que é afinal o laço da indisfarçável empatia entre a autora e as suas personagens. É daí que vem, provavelmente, o grão da diferença nestas histórias em que um olhar exterior nos quer apanhar num momento de passagem. A escolha das figuras mostra como Ilse Pollack não se deixa ir com os tempos, como é uma grande solitária solidária, pessimista e voluntariosa, cujo olhar se fixa de preferência nos perdedores deste mundo: minorias, fracos, marginais, judeus, escritores de não-sucesso, radicais, casos perdidos(como o nosso?). Escreve histórias a contrapêlo da História, para assim melhor poder ler-lhe os caminhos...», etc., etc.

Num espírito perfeitamente afim do de Llansol, como se vê...
 
Falou-se ontem do tempo e de almanaques, e Ilse Pollack lembrou, também com um texto antigo, a sua mania, quase doença, dos almanaques, e deu-nos conta das motivaçõs e da génese do único almanaque até hoje feito com textos de Llansol. Deixamos aqui alguns momentos dessa sua apresentação do tema da sessão, extraídos da crónica «A doença dos almanaques», publicada num jornal austríaco em 1990, e do prefácio ao Almanaque Llansol (que figura, em tradução portuguesa, no «Caderno da Letra E» que ontem oferecemos, como sempre, aos que vêm até nós).

 Mais um «Caderno da Letra E» sobre as mesas...

 Os almanaques e a escrita do tempo em exposição

Ano após ano, quando chega o fim de Dezembro, ela ataca em força, a doença dos almanaques. Nunca são de mais os que me poderiam oferecer... (...)  Só os tipos humanos com um ego fraco se deixam obsecar assim pelo tempo. Li isto em tempos, já não sei onde. Pode ser que sim… E no entanto: haverá coisa mais bela do que um desses almanaques acabados de chegar, dia após dia uma folha branca, ainda virgem de escrita? Por outro lado, como é triste o almanaque do ano passado! Porque, ainda que fosse essa a minha intenção, acabei por nunca ser o exacto guarda-livros dos meus dias (...)  Nunca imaginei começar o ano a praguejar, mas eis que a isso me obriga o Almanaque de Pragas e Impropérios da Estíria. No dia 1 de Janeiro, em letras verdes sobre fundo cinzento, lá está um desses impropérios, a palavra «Weintatschker» [Sapo bêbado], referindo-se sem dúvida à noite de Ano Novo que passou. O dia 2 de Janeiro, vá lá, já nos diz que devemos começar o ano com espírito jovem e dinâmico! E para isso temos o Almanaque dos Amigos da Vida, com os seus «pensamentos positivos, animadores e meditativos para cada dia». Sentenças triviais, logo a abrir o ano? Prefiro os almanaques dos padeiros e dos açougueiros, com as suas receitas sólidas para todos os dias. Mas estas coisas úteis, ao que parece, passaram de moda, desapareceram como A Loja da Esquina, o almanaque que em tempos nos oferecia coisas dessas, há muito, muito tempo.
As pessoas modernas usam agendas que trazem no bolso: agendas da Mulher e do Homem, do Ambiente e do Terceiro Mundo, do Greenpeace e da Paz… a perder de vista. Mas o que eu quero é mesmo um almanaque, e não uma qualquer mixórdia temática!  É pena! Até o velho Almanaque Camponês já não confia nas belas cores dos seus santinhos – e é por isso que agora, em vez da barba de fogo de Santo Inácio, tenho de engolir sempre uma história parva («Ai, filha, vamos a isto!»). Então antes uma agenda «neutra», em que posso ler na última página, enquanto espero pelo dentista, por exemplo que a órbita de translação da terra tem uma extensão de 939.200.000 quilómetros.
Tantos almanaques! E no entanto só um me agrada realmente, com as muitas alegrias que nos dá ao longo do ano! Durante todo o mês de Janeiro, o Gato Maltês (Kater Murr) não faz outra coisa senão entregar-se ao seu passatempo preferido, a patinagem no gelo; em Fevereiro só tira a máscara para meter o dente nas deliciosas bolas-de-Berlim. Em Março sobe a uma árvore e fica ali sentado a sonhar com o amor, e em Abril esconde-se debaixo do guarda-chuva. Em Maio, finalmente, vem a descendência, e no fim de Junho vai até à praia. O mês de Julho é passado de patas estendidas a apanhar sol, e em Agosto vai á pesca e apanha uns peixes. Em Setembro, o Maltês leva os filhos à escola e em Outubro já está demasiado cansado para apanhar os últimos pássaros. Em Novembro já cai neve, e o Maltês fica em casa, deitado em almofadas fofinhas, contemplando o cair lento dos flocos através da janela. E em Dezembro ganha novo alento, escreve cartas e traz para casa uma árvore de Natal.  Ah, como tudo está no lugar certo neste ritmo anual do Gato Maltês! E também eu fui um dia a criança para quem este almanaque era feito, e todas as coisas estavam então em ordem e no lugar certo. Só mais tarde começaram a mudar de lugar, cada vez mais depressa – e sem eu dar por isso tinham desaparecido: as coisas, as pessoas, as forças, as emoções. 
Ficar quieta, é esse agora o meu sonho. Quietinha, sem bolir, mais nada…
 E  apresentando o seu Almanaque Llansol, Ilse Pollack esclarece:
Apesar de algumas tentativas arriscadas e ousadas de a traduzir para alemão e de a editar, a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol é praticamente desconhecida do público leitor de língua alemã.
E de repente, isto: um almanaque, feito de frases, fragmentos de texto, respigados exclusivamente das suas obras, para todos os dias do ano – com algum espaço de permeio (aqui e ali algo reduzido), para que os estimados «legentes» possam acrescentar a cada passagem de texto as suas notas pessoais. E apesar disso, não se trata de uma agenda no sentido corrente do termo.
(...)

Os almanaques são geralmente feitos de provérbios, ditos, máximas, pelos quais nos orientamos, ou que nos desafiam a contradizê-los; e isso acontece também com este. Com a diferença de que neste caso eles estão intimamente ligados aos lugares de vida e de escrita da autora: Lisboa ou o «não-lugar» de Herbais, Bruges, lugar de beguinas, ou Alpedrinha, lugar da infância, para apenas mencionar alguns. E neste contexto surgem também as figuras, nomes conhecidos e desconhecidos da História que são reinventados nos textos de Llansol, acolhidos em vários livros onde formam constelações, numa coexistência que supera todas as barreiras de tempo e de espaço.
E tudo isto entrecortado por reflexões sobre a escrita, leituras e gostos pessoais, os animais da casa, sobretudo os gatos, e, enfim, também algumas afinidades especificamente «femininas», muito embora o texto, para esta autora – que heresia! – não tenha sexo.
Neste almanaque seguimos uma «ordem» que é a da própria Maria Gabriela Llansol, que «descasca ervilhas enquanto ouve Bach», em cujo universo não existem hierarquias, nem «em cima» e «em baixo», nem juízos de valor ou prerrogativas sociais. Um mundo no qual o quotidiano se situa ao mesmo nível da mais alta concentração mental e o diálogo com Spinoza se encontra com a preparação da ração para as galinhas.
E agora, cara/caro legente, entra no ano, nos seus meses e dias, descobre, anota e continua as tuas buscas!

A meio da sessão, e antes da leitura colectiva de excertos de Llansol sobre o tempo, João Barrento traçou ainda brevemente algumas linhas de ligação entre os modos de escrita e a relação com o tempo em M. G. Llansol e nos almanaques:
Llansol, o tempo e os almanaques
À primeira vista, e para quem conhece os modos de relação com o tempo e os ritmos da vida de Maria Gabriela Llansol, nada de mais afastado do registo dominante da sua escrita do que o lado contingente, tranquilizador e por vezes sentencioso do almanaque – que é aquele tipo de obra que mais de perto acompanha a esfera de que a sua Obra se distancia desde sempre, e a que Llansol a certa altura chama «a luz comum», com os seus ritmos diários sempre iguais e sem consequências. Do outro lado está o «combate», a tensão produtiva da inquietação. 
 O Almanaque de Liège da colecção de Llansol, com escrita da autora
Mas, como quase sempre acontece em Llansol, a realidade nunca é lisa e unívoca, tudo existe em dobra. E assim constatamos que, por outro lado, toda a sua escrita nasce ao fio dos dias e das suas contingências e humores, de acasos que o não são, ou a breve trecho deixam de o ser; sabemos hoje que ela sempre teve uma ligação natural às datas e ao seu registo – apesar de, por outro lado, as ver como outros tantos momentos de antecipação da morte, como lemos hoje num dos cadernos –, e grande parte da sua escrita, pelo menos depois das trilogias, não foge aos acontecimentos dos dias, antes pelo contrário, eles estão sempre a «cair» de algum lugar para os seus cadernos, e é deles que se alimenta a sua escrita: «A realidade acontece no tempo em que escrevo ___ julgo-a, e brinco com ela sob o nome de trans-realidade» (caderno 1.70, 19).
E assim também a luz comum – se por isso entendermos agora a luz que ilumina todos os seres no seu trajecto por este mundo, à espera de serem fulgorizados na sua singularidade e singeleza – não está ausente desta obra, nem ela a rejeita.
E há entre ambos – o almanaque e o universo da escrita de Llansol – um elo que os aproxima: o tempo, nas suas múltiplas vertentes, nos seus rostos mutantes.
Que tempo é o do almanaque? E que tempos encontramos na Obra de Llansol?
Num e noutro caso, tempos vários – da história quotidiana à imaginária ou fantástica, da mais insignificante às de dimensão e sentido cósmico, das rotineiras histórias «que estamos sempre a contar uns aos outros» aos mais extraordinários saltos para zonas quase alucinatórias, da pequena «anedota» ou da sentença (que também há em Llansol, na sua veia mais irónica) às grandes parábolas que são sempre as das figuras retiradas à história e à vida comum, para serem implantadas no espaço edénico do texto – exemplos não faltam, como bem sabem aqueles que a lêem.
Em qualquer caso, histórias de subversão e transfiguração do tempo, a partir das mais rasas, mas reveladoras, vivências do tempo. Em Llansol actua um olhar que, antes e depois da narrativa, fulgoriza o instante e o veste de uma aura que o leva para outras eternidades. Era já assim n' O Livro das Comunidades, e será assim até Os Cantores de Leitura.

O resto, no que aos tempos de Llansol se refere, está no meu ensaio "Llansol: Os rostos do tempo", de que transcrevo uma parte no caderno feito para o dia de hoje (o ensaio completo, «Llansol: o texto dos tempos», pode ler-se no volume colectivo organizado por Maria Carolina Fenati e saído recentemente na Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, com o título Partilha do incomum: leituras de Maria Gabriela Llansol).

E terminámos, antes de algumas questões que depois nos foram colocadas, com um modelo de leitura até agora não ensaiado na Letra E, mas que resultou num momento conseguido de partilha, a repetir no futuro: cada um dos presentes leu um ou mais fragmentos de textos de Llansol sobre o tempo, inscritos em faixas de cartolina numeradas previamente distribuídas, agora transformadas em marcadores de leitura dentro do caderno «Llansol e os rostos do tempo», que cada um levou consigo...