30.7.07

A METANOITE DO e. t.



Metanoite:
verbo grego, forma do imperativo de metanoia,
significando literalmente
"Pensai para além do que é conhecido!"
Perpetuou-se a tradução errónea,
nas versões católica e protestante do
Novo Testamento (Mat., 4, 17),
por "Fazei penitência!"
("Tut Buße!" na tradução de Lutero).


Um dos últimos acontecimentos culturais relacionados com a Obra de Maria Gabriela Llansol foi a estreia da ópera de câmara
Metanoite, no âmbito do Fórum Cultural do projecto «O estado do mundo», na Fundação Calouste Gulbenkian. A ópera, com música de João Madureira, libretto de João Barrento e uma encenação que anulou estes dois ingredientes essenciais, pôde ser vista no Grande Auditório nos dias 29 e 30 de Junho passados.
A auto-encenação de Metanoite na Gulbenkian foi engendrada por um rapaz, de seu nome André e. t. (ver mais aqui), e é narcísica, egocêntrica, megalómana, arbitrária, absurda, abusiva e ruidosa a todos os níveis. Não entendeu nada do libretto, mistura-o abusivamente, em projecções paroxísticas de texto sobre vidro que cegam o espectador e lhe desviam a atenção do que é importante, com o seu próprio palavreado po-mo pretensamente culto ou erudito, meteu-se a brincadeiras de mau gosto com o nome de Maria Gabriela Llansol, enfim, conseguiu anular completamente a música de João Madureira (pode ouvir algumas obras deste compositor aqui
). Êxito em todas as frentes, portanto, tiro na mouche para quem apenas busca promoção pessoal. Mas a fumarada não impede que se veja como foi tudo fogo de artifício para confundir e épater.

Reproduzimos aqui os textos escritos pelo compositor e pelo autor do
libretto, que dão a entender como o espectáculo poderia ser, mas não foi, um encontro de vozes e de linguagens em convergência, no espírito do texto original de onde tudo partiu (as montagens são de fotos dos ensaios). E remetemos os interessados para o oitavo caderno da série «Jade–Cadernos Llansolianos», editados pelo Espaço Llansol, onde se pode encontrar a versão original do libretto:



João Madureira
A PROPÓSITO DE METANOITE

A encomenda de uma ópera para o Fórum Cultural O Estado do Mundo, a propósito das comemorações dos 50 anos da Fundação Gulbenkian, permitiu-me continuar um caminho que venho trilhando há já alguns anos. Tenho vindo a escrever música para textos de autores como Ana Hatherly, Herberto Helder, Álvaro de Campos, António Franco Alexandre, Sóror Mariana Alcoforado, Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Belo, Heinrich Heine, isto para além de música de cena para O Casamento de Fígaro, de Beaumarchais, e para Os Dias de Hoje, de Jacinto Lucas Pires. Compus também música directamente inspirada por textos como Ausgraben und Erinnern (Escavar e Recordar, de Walter Benjamin), ou Inscrição (a partir de Amar um Cão, de Maria Gabriela Llansol).
O texto, a palavra escrita ou falada, tem desempenhado uma função central na minha produção musical. E quando o texto não está presente, é a própria música que se assume como tal, como em Glosa, para marimba e orquestra de câmara.
Na verdade, desde Poemúsica — sobre poemas de Herberto Helder, estreado em 1998 por Luís Miguel Cintra e Nuno Vieira de Almeida — que procurei encarar a coexistência de dois discursos distintos — palavra e música — para além das formas tradicionais. A relação entre estas duas realidades discursivas — ora se encontrando, ora seguindo caminhos diferentes, embora paralelos — revelou-me, com o tempo, um tecido que, longe de ser uma mera sobreposição de discursos, proporcionava uma reflexão e iluminação mútua entre ambos: o texto pensava a música e a música, mais do que apenas o reflectir, reimaginava-o. Esta relação de fricção entre duas realidades tem-me levado, assim, a reflectir sobre a multidimensionalidade de cada uma delas.
Se todos sabemos que o texto não é portador de apenas um nível de sentido, e que a música mora entre os vários aspectos que a compõem, na composição de Metanoite estes aspectos ganharam o dramatismo inerente à própria ideia de narrativa e de um tempo dilatado de convivência. Narrativa e acção musical que se opunham à mera criação de momentos estáticos. Tempo alargado de convivência que exige a constante reinvenção da relação entre texto e música. Esta experiência plural confrontou-me, finalmente, com duas questões maiores: a potência da música talvez resida no facto de ela ser pobre de língua, uma linguagem não verbal, e portanto 'condenada' à criação de significados dúbios e indefinidos, numa espiral que ela própria não consegue dominar. Paralelamente, talvez o texto, na sua aparente coerência linguística, mais não seja do que veículo para a expressão musical do testemunho vivencial de quem o pratica.
Penso que o texto de Llansol tem demonstrado a pertinência destas questões. Mas, mais do que isso, parece-me ser um texto que denuncia como a nossa relação com a linguagem acaba por condicionar a maneira como pensamos e ser algo de decisivo no destino que o mundo tem tomado. Temos tendência a aceitar a impostura da língua (Llansol) como algo inevitável, mas, como nos diz o libreto de João Barrento, a partir das palavras de Llansol:

Quem escolhe a palavra, decide o real…
E a terceira atitude existe, é o terceiro sexo,
o sexo de ler e o das coisas, força actuante
para lá de fusão e intercepção,
um rumor, espécie de brumor no mundo,
uma coisa que o atravessa e o murmura,
envolta numa bruma sem linguagem.

Metanoite é uma ópera que, mais do que reflectir de forma exaustiva sobre «o estado do mundo», procura mostrar como ele se espelha neste microclima que é o meio artístico erudito dos nossos dias.

Resta-me agradecer a João Barrento a oferta do libreto para esta ópera, e a Maria Gabriela Llansol pelo entusiasmo com que acolheu esta ideia.

© Henrique Figueiredo

João Barrento

UMA MÚSICA SEM MANCHA DE RUÍDO



Metanoite é o espectáculo de um espectáculo virtual dentro do grande espectáculo real do mundo. Um espectáculo sobre o estado desse mundo e as suas perspectivas futuras, nomeadamente no âmbito da produção artística. Como a play within the play de Hamlet («The play’s the thing / Wherein I’ll catch the conscience of the King», II, ii), a ópera é um catalizador que porá à vista a consciência — e o inconsciente — do nosso mundo.
De que matéria(s) se faz hoje o mundo? A visão barroca e simbolista do mundo como sonho aplica-se menos ao nosso mundo do que a shakespeariana (e também calderoniana) do mundo como palco. Maria Gabriela Llansol, que forneceu a matéria para o libretto desta ópera, via-o, a princípio, como sendo feito sobretudo da matéria da injustiça, da «trama da existência» subordinada ao tempo do poder. Hoje, sem renunciar a esse ponto de vista, mas deslocando-o e ampliando-o, insiste mais (como demonstra o subtítulo de um dos últimos livros, O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações) na matéria das imagens e na natureza constitutivamente estética do mundo.
«O mundo é puramente estético (mas raramente santo)», diz a Rapariga do Fulgor. O ser estético disponibiliza-o para uma série de possibilidades (potencialidades) de apreensão para lá da sua mera representação e exposição, numa zona de que a maior parte das pessoas, ocupadas com o que (lhes) é útil, não se apercebe — porque esse trabalho estético consiste em ver à sombra do que se não vê. O não ser santo, por sua vez, implica que o mundo só pode ser (tendencialmente) cínico, pérfido, ressentido, absurdo. As estéticas de que o mundo é feito dão corpo, cor, imagem às coisas, são sinais de vida: «a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas», lemos já, na pré-história desta Obra, em Depois dos Pregos na Erva. É essa, precisamente, a sua outra «santidade», aquela que Spinoza nelas viu com olhar (de) intenso. E é esse equilíbrio tensional entre a substância do invisível (que o estado actual do mundo insiste em esconder ou negar) e o estendal de absurdidade da sua imensa superfície visível, que Metanoite pretende dar a ver e problematizar — com humor e sensibilidade. Musil trata já este problema e esta tensão em O Homem sem Qualidades, uma obra imensa em que o essencial se joga entre a busca d’ «o outro estado» (que implica uma existência tacteante e céptica, aberta ao reino do possível e sem «qualidades») e a auto-satisfação dos «pragmáticos da razão suficiente». No meio, em inúmeras variantes, vegetam os ingénuos paladinos de uma realidade já sem perfil identificável, a que a cultura ocidental gosta de chamar o «Espírito», com maiúscula.
Também o libretto de Metanoite propõe dois filões alternantes, deixando repetidamente o caminho aberto a terceiras vias. O primeiro é o da paródia e da ironia, mais presente do que geralmente se pensa na Obra de Maria Gabriela Llansol, e que só por si poderia ter originado uma ópera puramente buffa. A paródia, lembremo-lo, tem a sua etimologia no párodos do teatro grego, aquela entrada lateral, ou canto paralelo que, remetendo para o pano de fundo contra o qual se desenrola a acção, se apresenta como discurso que passa ao lado da acção principal (isto é, mais visível) do mundo, que, no nosso caso, se pretende séria e é hilariante e absurda («Se o mundo é o imediato, este espectáculo / passa longe dele», diz a sua criadora, Psalmodia). O segundo filão, representado pelos intermezzi e pelo coro final, dá voz ao que deseja o que o desejo pode, à potência, despossuída de interesse, do «sexo do mundo», terceiro sexo que pode propiciar a terceira via implícita na ideia de Psalmodia para o seu espectáculo, que, repetindo realidades e práticas correntes no universo capitalista dominante, é sabotado, destruído, atraiçoado pelos «intermediários» (aquelas figuras, sinistras, invertebradas e sem rosto, de «funcionários» e guardas de uma lei que desconhecem, que povoam o universo de Kafka). A perspectiva aberta da criação, para lá do «Ou... ou» do Produtor e da ignorância gestionária do Escrivão, é a do «ímpar»: não simplesmente a do número, já que participa do duplo sentido do termo, e implica, para um espectáculo como para uma existência, a relação tensional fora da simetria estéril, a orientação para a singularidade in-igualável (do mundo por vir). Só assim se poderá sair dos maniqueísmos do mundo e da eterna oposição não resolvida entre o carnaval (trágico) da História e um outro antiquíssimo (e mais humano) rumor da história. «Onde houver Bem e Mal» — lemos em O Senhor de Herbais — «a justiça nunca será reposta.» Mas, sabemo-lo há muito, o mundo precisa de se reger (de ser regido) por batutas dualistas, desvirtuando inevitavelmente os resultados dessa equação viciada. Por isso, o grande problema do mundo — e do espectáculo (de Psalmodia) dentro do espectáculo (da ópera) dentro do espectáculo do mundo – é o da reposição de uma justiça imanente, para além do Bem e do Mal.
O libretto de Metanoite estrutura-se também em canto (odós, caminho, passagem; e óde, ode, canto) e contracanto (párodos), mas com todos os ingredientes que permitem minar este dualismo – como numa peça do teatro do absurdo, até certa altura mais próximo do universo radical de Beckett, depois, à medida que se caminha para o apoteótico e distópico final, evocando mais o nonsense de Ionesco. A figura de Psalmodia gere as oposições e desfaz o seu maniqueísmo, assumindo-se como o compromisso possível entre presente e futuro, e como representante de uma estética do «entre», do não definitivo. O canto, que vem do segundo grupo de figuras e do lugar da Rapariga, de Ana e Llansol, é a música leve e jubilosa dos que apostam no quase nada de uma existência nua e intensa, e se abrem ao Aberto do mundo. O contracanto é a cegarrega dissonante e estridente de clones e posers que não vêem e não sabem «o que deseja o que o desejo pode», nem entendem que «o uso do desejo é preferível ao uso do poder». Qualquer destas duas partes pode (e deve) provocar o riso como postura ética: o primeiro grupo, mais através da ironia subtil dos vencidos que acreditam no poder da metamorfose e (com Spinoza) que podemos «sentir e experimentar que somos eternos»; o segundo, pela paródia hilariante de um universo da «kultura» que se afunda no seu próprio delírio de audiências, orçamentos, néons e gadgets, e de uma precária eficácia instrumental esvaziada de conteúdo.
A suspeita em relação a visões dualistas é ainda evidenciada pela própria estrutura do libretto, com o seu desenvolvimento em três quadros e três momentos alternantes. O primeiro quadro propõe o espectáculo de Psalmodia como materialização sensível de um mundo desejado e desejante: daí o ser designado, num termo-síntese do qual irradia a sua intencionalidade, como «sonóptica com faro». No segundo somos confrontados com a visão do Produtor e as suas quimeras de uma cultura do futuro (que, como tudo aquilo que se não faz para um presente, está destinada a não ter futuro). No terceiro é-nos dado assistir ao descalabro contratual (e, assim, à inviabilidade do espectáculo), já que o contrato que se vai esboçando é um contrato com a técnica, mas não com o Vivo, com o «pacto de Bondade» proposto pela Rapariga do Fulgor, um contrato que se revela incapaz de conciliar a criação com a visão. Como contraponto dos três quadros, três momentos em que as vozes parecem vir já claramente do lado de lá da linha divisória da «metanoite»: as vozes da mulher (Ana-Llansol, últimas testemunhas humanas da clonização da arte), da Rapariga (a que «teme a impostura da língua», a desmemoriada — porque é só presente vivo —, a do sonho e do fulgor) e do cão Jade (um «ser sendo» que sabe como «desculpir o humano» dos medos que o tolhem). É uma galeria, múltipla e una, do que há de mais vivo no Vivo, no meio de um mundo a caminho de um futuro delirantemente dissonante, e que irá implodir para dentro de si próprio, tal como a arte que gera, progressivamente transformada no seu próprio medium, estéril, impraticável e vazio. E a viagem faz-se a bordo de um «comboio hidrofóbico»: porque a água é o elemento de um fado a que este país não soube furtar-se, nem compensar com a sua dose de liberdade de consciência.
As cenas da preparação do espectáculo (gorado) a que aqui se assiste deixam no ar dilemas e perguntas: como conceber o grande teatro do mundo de modo a que nele se possa afirmar a forma do humano? O humano será já hoje um fóssil, como sugere, no segundo quadro, a máquina que lê o pensamento e grava a palavra? Já estivémos mais perto da sua efectivação? A técnica desumaniza? Quando poderá o humano voltar a ser o que a visão ofertou a alguns e a História lhes retirou? Quando é que os olhos do humano estarão melhor apetrechados para ver o invisível, arriscando entrar no brilho perigoso e irresistível do Sol da metanoite? O que é, afinal, a metanoite?
A metanoite é o que nos espera do outro lado de uma fronteira que poucos atravessam: uma noite, mas de luz, um lugar de risco que é preciso atravessar para crescer na intensidade. Desde O Livro das Comunidades que encontramos na Obra de Maria Gabriela Llansol três noites: a do deserto, noite do agir em vida, travessia cega que os Gregos subordinavam a um destino que o texto de Llansol desconhece, porque nele o caminho da Figura, o «nocturno trabalho figural» (Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 167), é o da busca de uma energia autónoma (dos semelhantes na diferença); a do exílio, noite escura dos banidos do tempo, do esquecimento a que a História e os seus poderes os votaram; e a do espírito (daquele espírito que é manifestação de uma energia do corpo), da futura noite da ressuscitação sem ressurreição, da salvação sem deus, de um «espaço edénico» a-teológico, que pode estar à espera de cada um de nós na dobra de qualquer experiência, do outro lado da fronteira da metanoite. A metanoite seduz, e mete medo. Os perigos inerentes ao poço da metanoite, com a sua natureza de «imagens tempestuosas», são inseparáveis dos prazeres do jogo da escrita, da criação e do encontro de si (a psicologia jungiana chama-lhe «processo de individuação», e nele o papel da arte é também central): porque é aí que encontramos o que não sabemos, mas precisamos de saber, porque é aí que arde a «chama num interior de anel», ou seja, a luz que torna possível o «eterno retorno do mútuo» e a emergência do humano – aquela categoria que o texto de Llansol desde sempre desloca do centro para a periferia e questiona, o não realizado, já fóssil e ainda quimera. A metanoite, na definição que dela dá em O Ensaio de Música (pp. 13-14), é o terreno onde se ilumina a transparência deste enigma:

«Há, no real, um lugar envolvente e sublime, a que chamo metanoite, que está para além da noite,
quando se caminha porque é o único caminho,
obscura,
mas, depois dela,
o corpo volta a envolver o querer, o paladar age com a certeza, a visão rejubila em metamorfose. É nesse momento
do corpo dividido, mas já correndo,
que é noite, que será sempre noite, sem trevas, que a metanoite tem o poder de seduzir o texto, e de o fazer esvair-se do que é.»

Nesse momento poderemos talvez estar às portas do «espaço edénico (...) criado no meio da coisa, como um duplo feito de novo e de desordem» (M. G. Llansol, «O Espaço Edénico»). O contrato para a produção do espectáculo de Psalmodia não prevê tal momento. Mas quem sabe se, encostando o ouvido à pequena fresta que abre para um qualquer paraíso sem anjos, ali mesmo ao dobrar da esquina, não ouviremos ao longe — se isso é possível, e humano —, sobrepondo-se à «beleza ensurdecedora» do espectáculo, uma música sem mancha de ruído... Semelhante à língua do poema, que segue outro rumo e deixa ouvir outro rumor (brumor) que não é o da língua comum, geralmente atravessada pela «impostura». Em O Senhor de Herbais (p. 55), Llansol explica:

«... há um rumor, uma espécie de brumor, no mundo. É uma coisa que o atravessa e murmura. A linguagem ruidosa que falamos como aflitos ou velozes não lhe presta ouvidos (...) É um rumor envolto numa bruma sem linguagem. Ainda não foi codificado. [Vem de] antes da infância...» E, como diria Caeiro, e Llansol confirma pela boca de Jane Austen e de Diotima, não há mistério nenhum nisto. Há e não há, como sempre nos textos de Maria Gabriela Llansol. De todas as figuras de Metanoite, talvez só o cão Jade possa verdadeiramente entender essa língua.

© Henrique Figueiredo