24.10.23

A «RESTANTE VIDA» DO REINO ANIMAL

XIV JORNADAS LLANSOLIANAS



João Barrento abriu estas XIV Jornadas Llansolianas, dedicadas ao «Prazer do reino animal» no mundo de Llansol, evocando o desprazer do mundo que diariamente nos cai em cima neste nosso nada «admirável mundo novo». Com estas palavras:

«Há um chocante contraste que nos atinge ao abrirmos mais umas Jornadas, que sempre foram momentos carregados de esperança, de beleza e de júbilo, como toda a escrita da Maria Gabriela: vamos falar durante dois dias de um universo de harmonia, entendimento mútuo, diálogo entre seres, humanos e não humanos, que nos oferece um horizonte de paz, silêncio criador, coexistência possível. E lá fora, no grande e no pequeno mundo, no dos poderes arbitrários e desumanos como no de um dia a dia de indiferença, banalidade e ruído, a paisagem é a de um apocalipse universal em que a violência, a brutalidade e a hipocrisia tudo abarcam e dominam.

Ocorre citar Augusto Joaquim, ao evocar já profeticamente, há meio século, um mundo devastado, anunciando o de hoje, a que a Geografia de Rebeldes da Maria Gabriela iria contrapor uma alternativa. Na contracapa da primeira edição de O Livro das Comunidades o Augusto escreve: "Barbárie a Leste, lucro a Oeste, pobreza a Sul, neve a Norte". E a própria Llansol responde no que escreve então sobre as contradições do mundo e o que dele está ausente, com "a dualidade dos mundos, que tem causado imensas e incalculáveis perdas ao ser humano mais comum. A ele, mas também a esta pedra, a este arbusto, a este bicho... Parece haver dois mundos: o Mundo e a Restante Vida. Irredutíveis entre si, inimigos um do outro, temendo-se"».

Vamos tentar, durante estes dois dias, contrariar o Mundo (com M grande e carregado a negro)! Depois, provavelmente regressaremos à consciência do «fim das possibilidades», que era já a minha há alguns anos, quando escrevi a minha versão d' A Nave dos Loucos, de onde transcrevo apenas algumas linhas do epílogo: 

Nem Deus nem deuses nos dirão como aferir / A geometria dos corpos do tempo por vir, / Peso e medida da pessoa humana / Para lá do 'crescimento', essa obsessão insana. / Tudo recomeçou numa barca, a de Noé, / A de todas as possibilidades, porque aí / Se não distingue o Homem do outro ser, / Nem a dignidade se mede pelo ter. / Virá outro dilúvio, e então saberemos / Pela caixa negra desta barca o que fizemos. / Esquecemos lições. Ignorámos muito sinal. / Cedemos à razão dita instrumental. / Morta a alma, esquecido o corpo, essa 'grande razão', / Perguntamo-nos o que resta então / Das escadas de Odessa, dos murais de Abril: / Guerras e mortos, muros limpos, pesadelos mil. / Europa a crédito. O resto: atrocidades. / Será o fim das possibilidades?

Talvez não. Contrariamente à cegueira e à rigidez dos factos, as possibilidades são sem fim, como certamente nos confirmará a Profª Maria Esther Maciel, com perspectivas mais luminosas na sua intervenção.»

As intervenções sobre o tema das Jornadas iniciaram-se precisamente com a Profª Maria Esther Maciel, da Universidade Federal de Minas Gerais, que há anos se dedica à temática da «Zooliteratura», do «animal escrito» na literatura universal. Partindo do que, recorrendo a um conceito de Roland Barthes, considerou ser a escrita «atópica» de Maria Gabriela Llansol, e lançando mão da ideia seminal do lugar essencial do texto poético no tratamento do animal, teceu considerações sobre «O animal-fulgor: Breves incursões no espaço zoo de Maria Gabriela Llansol», tomando como exemplo paradigmático do animal como meio de subversão da escrita o livro Amar um Cão, e outros textos dos cadernos de inéditos.

João Barrento e Maria Esther Maciel

Por seu lado, João Barrento (na intervenção que intitulou: «Figuras do Aberto: Os animais do Texto e o Texto-animal») perspectivou, na sua ampla diversidade, as figuras de animais em toda a Obra de Llansol, esboçando uma tipologia do «bestiário poético» llansoliano, que comentou a partir da noção rilkeana (e, por contraste, heideggeriana) do Aberto. Para chegar, finalmente, à própria condição animal, de coisa viva, que é a do Texto para Llansol, bem cedo expressa já em Causa Amante: «era uma vez um animal chamado escrita...».

No segundo painel, que reuniu dois escritores muito próximos da Obra e da pessoa humana de Maria Gabriela Llansol – Hélia Correia (com o texto «Outra ocupação da terra») e José Manuel Vasconcelos (com «O convívio perfeito») –, as intervenções trouxeram registos diferentes, mas complementares. 

Hélia Correia deu-nos a ouvir um texto poético, sensível e sempre pensado com Maria Gabriela e os seus animais – que num dado momento, depois da partida da «madrinha» Gabriela, foram também da Hélia: primeiro, com a reescrita de Amar um Cão para os mais pequenos, depois com o acolhimento da última gata, Melissa. E a partir desta dupla referência se construiu a deambulação de Hélia Correia sobre os animais no mundo da vida e na escrita da «dama singular».

Hélia Correia e José Manuel Vasconcelos

José Manuel Vasconcelos alargou, com a sua erudição e as suas muitas leituras, o tema do animal escrito a toda a tradição ocidental desde a Antiguidade, recorrendo depois concretamente ao Texto de Llansol, o édito e o inédito (a partir dos três cadernos que acompanharam estas Jornadas), para inserir a nossa autora no contexto de uma «ecoliteratura» contemporânea e para olhar mais de perto algumas das marcas distintivas da figuração animal (do bestiário vivo e do «bestiário pétreo», o dos animais-objectos) na escrita de M. G. Llansol.

A tarde de domingo acolheu o terceiro painel, com o Prof. Jorge Leandro Rosa (do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto) e a poeta Maria Brás Ferreira (autora dos livros de poesia Hidrogénio [2020] e Rasura [2021]).

Jorge Leandro Rosa (com o texto «Lançar-se adiante das significações: Os animais e o pensamento») começou por recuar até aos primórdios da «Geografia de Rebeldes» para situar Llansol numa linha da «Modernidade» que vem do século XVI e poderá clarificar o sentido de actualidade da sua Obra como «literatura que está de saída» (da norma e do cânone) e se projecta em horizontes-outros, nomeadamente no que ao tema destas Jornadas diz respeito. Interrogando-se sobre o que é um animal, para chegar à sua definição no universo de Llansol, Jorge Leandro responde (com filósofos como Husserl e Hans Jonas): o animal é um ser em movimento, um movimento capaz de «fazer mundo». E toda a sua intervenção teve como centro uma ontologia do movimento, uma permanente oscilação entre o movimento vivo no mundo animal e o curso antagónico da História – com o Texto de Llansol como referência.

Maria Brás Ferreira e Jorge Leandro Rosa

A poeta Maria Brás Ferreira (com o contributo «A escrita do instinto, ou O arquétipo plural do bando») propôs-se comentar a «cosmogonia futurante» (actualizante?) de Llansol a partir do papel «instigador» e iluminador (mas não necessariamente «inspirador») do animal para este Texto e o sentido do Ser que ele propõe, essencialmente por via dos sentidos – o olhar, o tacto, a escuta, vias privilegiadas do agir animal e de a eles chegarmos. Para concluir que as figuras animais nesta escrita configuram «o nascimento da voz» – o oposto de uma língua(gem) normativa ou mesmo morta, que em Llansol é veículo de um «mais-saber».


A tarde de sábado incluiu ainda a apresentação dos dois mais recentes livros de e sobre Llansol: o Livro de Horas IX  (Um Conjunto de Espirais. 1985-1990, da Assírio & Alvim)  e o  25º volume da colecção «Rio da Escrita»  (edição Mariposa Azual / Espaço Llansol) que  documenta  as  Jornadas de 2022: Os Jardins de Llansol: Uma imagem do mundo.

 

Deixamos aqui o link para o video que João Barrento montou para documentar com textos do Livro de Horas IX e imagens do arquivo os lugares de Llansol em Colares, depois do regresso do exílio, a partir dos três tópicos que – para além da escrita preparatória dos três livros que viriam no início dos anos 90: Um Beijo Dado Mais Tarde, Amar um Cão e Hölder, de Hölderlin – ocupam uma boa parte da reflexão de Maria Gabriela Llansol neste novo livro de inéditos: a casa (e os seus animais), a «floresta» (o pinhal de Colares) e o mar.

https://vimeo.com/877559907?share=copy

(Link para o video «Casa-Floresta-Mar»)

As Jornadas encerraram, como habitualmente, com a leitura, pelas jovens actrizes Eva Dória e Anita Ribeiro, de textos inéditos de Llansol sobre a temática do animal: «O prazer do reino animal» (por Eva Dória) e «O livro dos animais no deserto» (por Anita Ribeiro).

 
Eva Dória e Anita Ribeiro

Antes das leituras, João Barrento apresentou o video Jade: Um ser sendo..., em que Maria Gabriela Llansol comenta a figura do cão Jade, em gravações recuperadas dos encontros do Grupo de Estudos Llansolianos em 2005-06, onde falou largamente sobre a noção de «figura» na sua escrita, a partir do exemplo do cão Jade. O video integra a composição musical de João Madureira «Inscrição», feita por essa altura a partir do livro Amar um Cão (a transcrição completa dessas conversas está disponível no livro O que é uma Figura? - Diálogos sobre a Obra de Maria Gabriela Llansol na Casa da Saudação, Mariposa Azual, 2009).

https://vimeo.com/877566248?share=copy

(Link para o Video «Jade-Um ser sendo»)


AS EXPOSIÇÕES






Exposição de materiais do espólio sobre o tema:

- Animais-objectos («Animais da casa»)

- Cadernos com escrita e desenhos sobre animais

- Livros sobre o tema na biblioteca de M.G. Llansol

- Fotografias de animais e de Llansol com alguns deles 

(«O mundo amante dos animais»)