4.11.12

UMA TARDE DE IMAGENS NA «LETRA E»


Foi uma tarde de imagens, desta vez com muitos estudantes e professores de Belas-Artes, de Cinema, e de Llansol, como sempre. O ruído sussurrante do projector e o silêncio das cenas alternantes do filme de Tomás Maia e André Maranha, Éden. O filme desta Terra (película, cor, 16 mm, 27'). O movimento tremulante da película contrasta com os gestos claros e decididos de Eva e Adão, mulher e homem, homem e mulher, pés nus, destruindo e construindo, transformando e fixando formas, fogo e terra, casa e túmulo, a língua livre da mulher e os gestos codificados do homem.


Isabel Santiago, professora de Filosofia e leitora de Llansol, falou disto, e de outras coisas, a propósito do livro que acompanha e ilumina o filme (Edição Documenta, com DVD). O filme da divisão incompleta, do dualismo imperfeito, seguindo a «lei da mediação» (Hölderlin) que, no filme, rege a função do tabique de separação-ligação entre dois compartimentos da casa, dois lugares de habitar, o da mulher e o do homem. O filme da saída do Éden para devir homem-mulher (e aspirar ao «ambo» de Llansol?). O filme onde se vê que, sendo cada um singular, não existe singularidade absoluta, que «habitar poeticamente esta Terra» (Hölderlin) é «viver quase a sós» (Llansol). O filme do que «está a começar» – e traz já consigo os sinais do fim: nascimento e morte, nascimento é morte, «o sabor a morte da vida» (Hölderlin).



É também o filme da afirmação da imanência absoluta da vida humana, «o filme desta Terra», porque no Éden não se entra, só se sai dele para nunca mais voltar – quando muito, espreita-se por uma fresta da «porta das traseiras» (H. von Kleist), no acto da criação da obra, do amor, talvez da experiência mística. É o momento do «estar eterno» (Tomás Maia/André Maranha), ou da eternidade segundo Spinoza, que fica a pairar quando se suspendem as imagens e do negro da tela ecoa, em alemão, a voz da actriz Ursula Rütt-Hamacher dizendo, com Hölderlin: «Leben ist Tod, und Tod ist auch ein Leben / A vida é morte, e a morte é também uma vida».


Foi o que se viu, se ouviu, se sentiu, no formigar da tela e no sussurro do projector, nas palavras dos que dialogaram, na tarde de ontem na «Letra E». «Tão simples são, porém, as imagens, tão sagradas, que muitas vezes realmente se teme descrevê-las» (Hölderlin). A função da «Letra E» é superar esse temor, com outros, que sempre vêm. Ontem vieram, e virão mais. «Com seriedade, de preferência», dizia Hölderlin, e assim «não cismarás por muito tempo ao sol invejoso» («Notas sobre Antígona»). Porque é preciso que se saiba (é ainda o poeta pela voz de Llansol) «que somos livres / De ir direitos ao alvo que – para nós – escolhemos», como se lê num dos poemas que ouvimos ontem, também na voz impressionante de Bruno Ganz, e que a seguir se transcreve e pode ouvir.




O curso da vida / Lebenslauf
(2ª versão)

Tu, tu também foste um sonhador de grandes coisas; mas o amor
Nos faz curvar a todos para que passemos debaixo da sua lei; a dor
         curva-nos mais para a frente ainda.
Mas, todavia, não é em vão que a órbita da nossa vida
Regressa à origem de que partiu.

Subir. Descer. Que importa? Na noite sagrada
Em que a natureza se cala para poder sonhar com os dias que hão-de vir – e

Até ao mais sinuoso e desleal dos infernos –,
Não há-de existir uma lei recta, uma justiça que reine?

É esse o fruto da minha experiência. Porque nunca deuses com imortalidade,
Defensores da vida, nunca, que eu tenha a consciência,
Me empurraram à sua frente e me levaram por caminhos fáceis,
Como é hábito fazerem os grandes deste mundo, mortais.

Os que têm trono na Imortalidade, dizem que o homem deve           
           experimentar todas as coisas,
E que, fortalecido por uma seiva pujante, deve aprender a dar graças
Por todas as coisas, e que saiba, finalmente, que ele é livre
De ir direito ao alvo que – para si – escolheu.

(Tradução de Maria Clara Salgueiro, i. é Maria Gabriela Llansol)

                                                                 [Hölderlin lido por Bruno Ganz]                     

[Fotos: fotogramas do filme e Vina Santos]