10.9.11

TERCEIRAS JORNADAS LLANSOLIANAS DE SINTRA

Os objectos a iluminar


Num caderno de 1999 (o 1.53, no primeiro dia do ano), Maria Gabriela Llansol escreve:
«Encho a casa de móveis e objectos para tornar mais intenso e denso o espaço percorrido. Assim torno uma casa pequena maior. Deixe-se a nudez para a amplidão do espaço...»
E antes, em O Raio sobre o Lápis (1990):
«Os objectos escavam o espaço e ocupam nele um lugar (...) Vistos assim, são o mundo físico da inteligência atravessando a luz.»
Antecipamos hoje, com fragmentos de Llansol que se lhes referem, alguns desses objectos, os que merecerão particular atenção nas intervenções previstas para as Jornadas dos dias 24 e 25 (incluindo, a encerrar, uma performance feita a partir da correspondência de Llansol e a leitura cantada de textos seus sobre os objectos). Entre eles encontram-se alguns que, não tendo tido oportunidade de ganhar estatuto figural nos livros, foram e são igualmente significantes nas mãos e para os olhos de quem os herdou. Afinal, foram herdados quase todos os objectos relevantes nos livros de Llansol, que os recebe, não como herança que os colocaria «no lugar dos mortos», mas como legado que os transforma em «passagens claras e puras» para outros lugares de sentido.
Eis alguns deles:

A tipologia do objecto em Llansol e a Senhora decepada:

A imagem tinha as mãos cortadas rentes pelos punhos, de um só golpe e, no alto da cabeça, o véu descolorido deixava à mostra uma zona circular de madeira. (...) Foi vindo da janela, enquanto tomava banho, que lhe surgiu um impulso no seu corpo dizendo-lhe que a imagem representava a Senhora decepada...

Ana ensinando a ler a Myriam, ou A Estátua de Leitura:


Arde ali a substância onde Ana está ensinando a ler a Myriam, Ana sentada numa cadeira, com o livro aberto no colo, Myriam de pé, a olhar um dos primeiros textos (…)

Os Livros de Horas:

Qualquer aprendiz imagético, quando sobe ao meu quarto e atravessa o meu escritório, tem o sentimento de que «um belo lixo de imagens se criou aqui». Se for menos inocente dirá: «que belo luxo de imagens». Eu diria: aqui está a raíz de qualquer livro.

Aossê e o ovo do falcão:


(...) em Aossê, esse ser futuro nasce de um falcão, de uma ave de rapina.
No fim desse processo, Aossê descobre a sua bi-humanidade com o paradigma de muitos humanos vindouros (...)
Aossê (...)
entregue a uma tarefa absolutamente inverosímil,
chocar um ovo de falcão.

(Escultura: Rui Chafes, «Vejo uma luz morrer...», 2011)


O quadro de Artur Loureiro: «Jovem vestindo o seu jardim»:


Chego à sala, em face do quadro de Artur Loureiro, a que chamei «uma jovem vestindo o seu jardim», falo com ele (...) É um dos jardins de Spinoza, e não de tela, por isso lhe chamo agora ————— jovem vestindo o seu jardim...


O nascimento de João da Cruz a partir de uma fotografia:


Um profundo sentimento se acolhe neste meu corpo
e nesse momento João da Cruz fala por sinais que eu entendo como se com eles estivesse vestida (...)
João olha-me com complacência, sabendo que eu sigo o meu caminho
que me é obscuro,
noite obscura.


A construção do livro infantil (Escola da Rua de Namur):


A criança será bom que nasça num grupo de adultos que «fait la fête», organiza a sua própria fruição, os seus meios de produção, e os seus saberes experimentados. E pouco a pouco, como uma voz persistente que cada vez fala mais baixo, até extinguir-se, a Escola desaparecerá.

Os cadernos de M. G. Llansol:


Escrevo nestes cadernos para que, de facto, a experiência do tempo possa ser absorvida. Pensei que, um dia, ler estes textos, provenientes da minha tensão de esvair-me e cumular-me em metamorfoses poderia proporcionar-me indícios do eterno retorno do mútuo.

Témia, a rapariga que temia a impostura da língua:


... sou a rapariga que temia a impostura da língua e, ao subir estas escadas para tocar as chamas da entrada
em que arde,
no presente,
o passado,
sinto-me Témia,
temível e com amor.

Os objectos herdados:

... quando tudo por mim for abandonando (penso na morte), haverá objectos que, em outras casas que os herdarem, chamarão alguém a seu destino.

Os cavalinhos transparentes | Pano azul com caixa | A leiteira

«A forma de mão» – arquivo de correspondências:



Fico na mão com uma carta dirigida ao piano, animal que acirra a minha inteligência, põe-na em cima do texto.
Mas só brota uma carta desarmada e muito simples. Do envelope aberto:
«a beleza da forma
e da cor
é a santidade
das árvores.»

Não tinha selo.



Cantar a leitura:



Eu sou Gratuita (...)
.. . tenho presa à borda
da minha saia (...)
um raio de sol,
que ao levar-me à Casa da Saudação
me chamou ao cântico da leitura.

*