LLANSOL E O «GRANDE MAIOR»
No próximo dia 21 de Dezembro, às 10h30, a Câmara Municipal de Sintra, pela mão do seu Presidente, descerrará uma placa evocativa da ligação de Maria Gabriela Llansol a Sintra, junto da árvore que dá pelo nome de «Grande Maior» no livro Parasceve. Puzzles e ironias (Relógio d'Água, 2001).
Fica aqui o convitee algumas passagens do livro em que esta portentosa árvore – um grande plátano – tem lugar de destaque:
II - O Vaso Quebrado e o Grande Maior
ergo os olhos para a cúpula da árvore. Próximo, há uma fonte, a fonte do Plátano, e o que me atraiu foi a humidade do lugar, e a anfractuosidade da pedra para apoiar as costas. Mas, já sentada, apoiei a nuca sobre a rocha e principiei a ver que, por cima da minha cabeça, seguindo os raios de luz que desejavam partir, havia ruas extensas e elípticas, orifícios ou vazios entre as folhas, que correspondiam a praças verdes, que acolhiam um lugar habitado, elevado à potência da copa de uma árvore. O meu corpo sentado perdeu-se, e fiquei visível e invisível. Dois cães não tiveram medo da minha imobilidade, e o meu encontro com eles foi breve, pois estavam de passagem. Tinha o sentimento de que, com um simples olhar, eu própria deslocara o meu corpo. E o corpo estava onde estava o meu olhar, às portas de uma cidade-árvore que eu intitulara o Grande Maior. Nesse lugar, eu não devia preocupar-me com a credibilidade do meu testemunho, pois seria dito, de uma vez para sempre, que era uma cidade invisível e que só eu via. A árvore, essa, poderia ser vista por toda a gente. (p. 11) […] Descrever um lugar indescritível é torná-lo inamovível para o resto da minha vida, que certamente decorrerá ao lado da árvore, como sempre tem decorrido no jardim que o pensamento permite. O jardim não é criado pelo pensamento, o jardim permite pensar, tem a sua própria forma de pensar o pensamento. O Grande Maior tem as mesmas propriedades. Apenas não pensa do mesmo modo. Na verdade, aprofundar a intensidade de viver e deixá-la à natureza, é morrer menos. Falo do meu ponto de vista de visitante, porque ali não havia morte… (p. 12) […]– É doloroso dar vida ao espírito bravio, e não lembrar... – Acho que ter um tronco e equilibrá-lo é preferível a ter memória. – Também é verdade que, com algum treino, o dentro e o fora se tornam reversíveis, quase sem dor. – Nascer e renascer. Dar botões e ramos. Deixar cair as folhas e torná-las matéria nossa... – É a tua travessura de árvore. A tua pujança não recorda. Mas eu não sou árvore. – Por que hei-de fazer como tu? – Haverá uma outra maneira efectiva de procurar? Se viver fosse recordar, uma semente sonhante seria o seu perfeito equivalente. Olha, seríamos cristais... (p. 131) […]
Explicitar medo pode escrever-se dentro, a partir de fora, como faz o realismo. A estaca apoia a árvore. A árvore cresce, a estaca apodrece. É mais prático escrever dentro, de dentro. É o ponto de vista da seiva. Nem sempre é possível, é a arte de jardinar. A mulher ouvia a voz, era a sua estaca. O grão corria pela voz, a seiva. Alguém-infância cantava. No jardim onde está, neste momento, ela ouve um ruah nos ares. (p. 151) […] … Na minha procura de ritmo, cheguei à seguinte conclusão: «a causa que é totalmente diferente de outra causa mas produz um efeito semelhante e muito próximo, deve ter tido, embora muito longe, um encontro fulgurante com essa causa». Não cheguei lá sozinho, fui muito ajudado pelo Grande Maior. O que é o Grande Maior? Um ser que certamente acharias muito estranho. O Alguém-vegetal que, num momento extremo, salvou uma criança humana de perder o seu ruah. Ruah? A parte mais íntima e activa do som. De um som que podes chamar ar ou vento. Somos suas causas longínquas, sem que ela seja, no entanto, nosso efeito… (p. 177)