1.9.25

 O NOVO LIVRO DE HORAS

Estarão disponíveis nas livrarias (e na Feira do Livro do Porto) a partir do dia 4 de Setembro dois Livros de Horas de Maria Gabriela Llansol: o último (A Floresta das Intensidades. Livro de Horas X. 1991-1995) e a reedição do primeiro, Uma Data em Cada Mão, há muito esgotado.


O período coberto por este décimo Livro de Horas — que parte ainda da casa de Colares que fora o centro dos primeiros anos depois do regresso do exílio, e chegará à nova casa de Sintra em Abril de 1994 — vai dando a ler a «inarrativa» de uma vida, à margem da «vida real» (mas sem dela desviar o olhar), num convívio preferencial com plantas, animais, muitos objectos agora herdados e que se transformarão, eles também, em vivos e figuras textuais.

Uma vez publicado, no final de 1990, esse livro maior que foi Um Beijo Dado Mais Tarde, os dias são agora mais preenchidos e amplificados por uma escrita centrada no encontro com outros: as traduções de poetas — Emily Dickinson, Rilke, Hölderlin, vários poetas franceses da Modernidade, de Baudelaire a Rimbaud, de Verlaine a Paul Éluard — marcam também este tempo de convívio entre línguas e mundos. O tempo da «potência de autonomamente estar só».


                                                                            *****



Este primeiro volume de uma aventura iniciada há dezasseis anos cobre os anos do exílio de 1972 a 1977, e apresentava-se assim, nas palavras da autora:

«___________ a primeira imagem do Diário não é, para mim, o repouso na vida quotidiana, mas uma constelação de imagens, caminhando todas as constelações umas sobre as outras. Qualquer aprendiz imagético, quando sobe ao meu quarto e atravessa o meu escritório, tem o sentimento de que 'um belo lixo de imagens se criou aqui?. Se for menos inocente dirá: 'que belo luxo de imagens'. Eu diria: aqui está a raiz de qualquer livro».


25.8.25

 LUÍS LUCAS NO ESPAÇO LLANSOL

Faleceu ontem o actor Luís Lucas, nome incontornável do teatro e do cinema portugueses depois do 25 de Abril, em companhias de primeiro plano como a Comuna (de que foi co-fundador), a Cornucópia, o Teatro da Graça, os Cómicos, os Artistas Unidos ou o Théâtre du Soleil, de Paris.

Luís Lucas e Hélia Correia nas Jornadas de 2013, no Palácio Valenças, em Sintra

«Actor incandescente», como o Público o designa, entregou-se sempre com entusiasmo aos projectos de que participou, nomeadamente naqueles em que, por mais de uma vez, emprestou a sua voz a textos de Maria Gabriela Llansol em eventos nossos. Lembro, entre outros, as Oitavas Jornadas Llansolianas de 2016, em que o Luís leu textos de Llansol sobre Spinoza, e especialmente a leitura (de parceria com Hélia Correia) de uma série de poetas de língua francesa traduzidos por Maria Gabriela – Baudelaire e Rimbaud, Verlaine e Apollinaire, Éluard, Pierre Louÿs ou Rilke –, nas Jornadas intituladas «Trans-Dizer: Llansol tradutora, traduzida e trans-criada», em 2013.  Obrigado, Luís!

26.5.25

ALGUMAS AFINIDADES ELECTIVAS DE LLANSOL

No próximo dia 7 de Junho, pelas 16h, voltamos às sessões públicas do Espaço Llansol, desta vez apresentando uma faceta muito particular, e decisiva, da escrita de Maria Gabriela: a do seu convívio e diálogo com muitos outros escritores, pensadores, místicos, que fazem de muitos dos seus livros um espaço de «troca verdadeira» e da sua escrita um acto não apenas próprio, mas antes um escrever com quem se lê, um «escreler», na original expressão por ela inventada.

O pretexto é o da apresentação de mais um livro do Espaço Llansol, que retoma oito cadernos de sessões anteriores dedicadas a algumas dessas figuras de escrita, e que será apresentado pela nossa colega de Direcção Cristiana Vasconcelos Rodrigues. João Barrento lembrará ainda brevemente os elos de ligação de Llansol com esses compagnons de route: os escritores Emily Dickinson, Rilke, Virginia Woolf, Vergílio Ferreira, os filósofos Spinoza e Nietzsche e os místicos Ibn 'Arabî e Hadewijch de Antuérpia.

22.4.25

 OS CONTOS JUVENIS DE LLANSOL

pelo Clube de leitura «Leia Mulheres»

No próximo sábado, 3 de Maio, pelas 16 horas, o clube de leitura «Leia Mulheres», orientado por Déa Paulino, dará conta, no Espaço Llansol, da sua leitura dos contos juvenis de Maria Gabriela Llansol, que publicámos no volume O Timbre da Estrela (Espaço Llansol/Mariposa Azual, 2024).

Às 15h30 haverá uma visita guiada ao Espaço Llansol, para os membros do grupo que ainda não conhecem a Casa.

7.4.25

 METANOITE

A actualidade de uma ópera llansoliana

Deixamos aqui o resumo da sessão de sábado, 5 de Abril, no Espaço Llansol, recuperando uma ópera feita a partir de textos de M. G. Llansol, e que hoje volta a ser muito actual. 


METANOITE

A forma quimérica do mundo

Metanoite foi uma ópera de câmara concebida expressamente para o fórum cultural do projecto da Fundação Gulbenkian «O estado do mundo», em 2006-2007. O libretto foi escrito por João Barrento a partir da Obra de Maria Gabriela Llansol, em especial do livro O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a representação estética do mundo, e suas tentações (de 2002). A ópera, com música de João Madureira, foi apresentada em estreia absoluta nos dias 29 e 30 de Junho de 2007, no Grande Auditório da Fundação.

O libretto foi composto a partir de conversas com a própria autora e o compositor, e ganhando forma no caderno de João Barrento (exposto entre outros materiais, na sessão de sábado), de que se mostram aqui algumas páginas preparatórias:


O habitual caderno temático feito para esta sessão contém uma selecção de cenas, apresentadas numa leitura encenada, com as vozes de Diogo Dória (o Produtor), Anita Ribeiro (Psalmodia, a autora do espectáculo), Eva Dória (a Rapariga do Fulgor) e João Barrento (o Escrivão do contrato), acompanhada por fragmentos da música original de João Madureira para as quatro cenas da leitura, que o breve vídeo que se segue apresenta com imagens da sessão (fotografias de Teresa Huertas e João Barrento):

https://vimeo.com/1073210526

O caderno da sessão –  Metanoite. A forma quimérica do mundo – inclui ainda o texto de apresentação da ópera e das suas ideias-chave por João Barrento, de que transcrevemos a seguir o essencial:


Uma música sem mancha de ruído

 

Metanoite é o espectáculo de um espectáculo virtual dentro do grande espectáculo real do mundo. Um espectáculo sobre o estado desse mundo e as suas perspectivas futuras, nomeadamente no âmbito da produção artística. Como a play within the play de Hamlet («The play’s the thing / Wherein I’ll catch the conscience of the King», II, ii), esta ópera é um catalizador que porá à vista a consciência – e o inconsciente – do nosso mundo.

De que matéria(s) se faz hoje o mundo? A visão barroca e simbolista do mundo como sonho aplica-se menos ao nosso mundo do que a shakespeariana (e também calderoniana) do mundo como palco. Maria Gabriela Llansol, que forneceu a matéria para o libretto desta ópera, via-o, a princípio, como sendo feito sobretudo da matéria da injustiça, da «trama da existência» subordinada ao tempo do poder. Hoje, sem renunciar a esse ponto de vista, mas deslocando-o e ampliando-o, insiste mais (como demonstra o subtítulo de um dos últimos livros, O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações) na matéria das imagens e na natureza constitutivamente estética do mundo.

«O mundo é puramente estético (mas raramente santo)», diz a Rapariga do Fulgor. O ser estético disponibiliza-o para uma série de possibilidades (potencialidades) de apreensão para lá da sua mera representação e exposição, numa zona de que a maior parte das pessoas, ocupadas com o que (lhes) é útil, não se apercebe – porque esse trabalho estético consiste em ver à sombra do que se não vê. O não ser santo, por sua vez, implica que o mundo só pode ser (tendencialmente) cínico, pérfido, ressentido, absurdo. As estéticas de que o mundo é feito dão corpo, cor, imagem às coisas, são sinais de vida: «a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas», lemos já, na pré-história desta Obra, em Depois de Os Pregos na Erva. É essa, precisamente, a sua outra «santidade», aquela que Spinoza nelas viu com olhar (de) intenso. E é esse equilíbrio tensional entre a substância do invisível (que o estado actual do mundo insiste em esconder ou negar) e o estendal de absurdidade da sua imensa superfície visível, que Metanoite pretende dar a ver e problematizar – com humor e sensibilidade. Musil trata já este problema e esta tensão em O Homem sem Qualidades, uma obra imensa em que o essencial se joga entre a busca de um «outro estado» (que implica uma existência tacteante e céptica, aberta ao reino do possível e sem «qualidades») e a auto-satisfação dos «pragmáticos da razão suficiente». No meio, em inúmeras variantes, vegetam os ingénuos paladinos de uma realidade já sem perfil identificável, a que a cultura ocidental gosta de chamar o «Espírito», com maiúscula.

Também o libretto de Metanoite propõe dois filões alternantes, deixando repetidamente o caminho aberto a terceiras vias. O primeiro é o da paródia e da ironia (em relação às figuras do Escrivão e do Produtor do espectáculo), mais presente do que geralmente se pensa na Obra de Maria Gabriela Llansol, e que só por si poderia ter originado uma ópera puramente buffa. A paródia, lembremo-lo, tem a sua etimologia no párodos do teatro grego, aquela entrada lateral, ou canto paralelo que, remetendo para o pano de fundo contra o qual se desenrola a acção, se apresenta como discurso que passa ao lado da acção principal (isto é, mais visível) do mundo, que, no nosso caso, se pretende séria e é hilariante e absurda («Se o mundo é o imediato, este espectáculo / passa longe dele», diz a sua criadora, Psalmodia). O segundo filão, representado pelos intermezzi e pelo coro final, dá voz ao que deseja o que o desejo pode, à potência, despossuída de interesse, do «sexo do mundo», terceiro sexo que pode propiciar a terceira via implícita na ideia de Psalmodia para o seu espectáculo, que, repetindo realidades e práticas correntes no universo capitalista dominante, é sabotado, destruído, atraiçoado pelos «intermediários» (aquelas figuras, sinistras, invertebradas e sem rosto, de «funcionários» e guardas de uma lei que desconhecem, que povoam já o universo de Kafka). A perspectiva aberta da criação, para lá do «Ou... ou» do Produtor e da ignorância gestionária do Escrivão, é a do «ímpar»: não simplesmente a do número, já que participa do duplo sentido do termo, e implica, para um espectáculo como para uma existência, a relação tensional fora da simetria estéril, a orientação para a singularidade in-igualável (do mundo por vir). Só assim se poderá sair dos maniqueísmos do mundo e da eterna oposição não resolvida entre o carnaval (trágico) da História e um outro antiquíssimo (e mais humano) rumor da história. «Onde houver Bem e Mal» – lemos em O Senhor de Herbais – «a justiça nunca será reposta.» Mas, sabemo-lo há muito, o mundo precisa de se reger (de ser regido) por batutas dualistas, desvirtuando inevitavelmente os resultados dessa equação viciada. Por isso, o grande problema do mundo – e do espectáculo (de Psalmodia) dentro do espectáculo (da ópera) dentro do espectáculo do mundo – é o da reposição de uma justiça imanente, para além do Bem e do Mal.

[...]

As cenas da preparação do espectáculo (gorado) a que aqui se assiste deixam no ar dilemas e perguntas: como conceber o grande teatro do mundo de modo a que nele se possa afirmar a forma do humano? O humano será já hoje um fóssil, como sugere, no segundo quadro, a máquina que lê o pensamento e grava a palavra? Já estivémos mais perto da sua efectivação? A técnica desumaniza? Quando poderá o humano voltar a ser o que a visão ofertou a alguns e a História lhes retirou? Quando é que os olhos do humano estarão melhor apetrechados para ver o invisível, arriscando entrar no brilho perigoso e irresistível do Sol da metanoite? O que é, afinal, a metanoite?

A metanoite é o que nos espera do outro lado de uma fronteira que poucos atravessam: uma noite, mas de luz, um lugar de risco que é preciso atravessar para crescer na intensidade. Desde O Livro das Comunidades que encontramos na Obra de Maria Gabriela Llansol três noites: a do deserto, noite do agir em vida, travessia cega que os Gregos subordinavam a um destino (a moira) que o texto de Llansol  desconhece, porque nele o caminho da Figura, o «nocturno trabalho figural» (Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 167), é o da busca de uma energia autónoma (dos semelhantes na diferença); a do exílio, noite escura dos banidos do tempo, do esquecimento a que a História e os seus poderes os votaram; e a do espírito (daquele espírito que é manifestação de uma energia do corpo), da futura noite da ressuscitação sem ressurreição, da salvação sem deus, de um «espaço edénico» a-teológico, que pode estar à espera de cada um de nós na dobra de qualquer experiência, do outro lado da fronteira da metanoite. A metanoite seduz, e mete medo. Os perigos inerentes ao poço da metanoite, com a sua natureza de «imagens tempestuosas», são inseparáveis dos prazeres do jogo da escrita, da criação e do encontro de si (a psicologia jungiana chama-lhe «processo de individuação», e nele o papel da arte pode também ser central): porque é aí que encontramos o que não sabemos, mas precisamos de saber, porque é aí que arde a «chama num interior de anel», ou seja, a luz que torna possível o «eterno retorno do mútuo» e a emergência do humano – aquela categoria que o texto de Llansol desde sempre desloca do centro para a periferia e questiona, o não realizado, já fóssil e ainda quimera. A metanoite, na definição que dela dá em O Ensaio de Música, é o terreno onde se ilumina a transparência deste enigma:

«Há, no real, um lugar envolvente e sublime, a que chamo metanoite, que está para além da noite,

quando se caminha porque é o único caminho,

obscura,

mas, depois dela,

o corpo volta a envolver o querer, o paladar age com a certeza, a visão rejubila em metamorfose. 

[...]

E, como diria Alberto Caeiro, e Llansol confirma, não há mistério nenhum nisto. Há e não há, como sempre nos textos de Maria Gabriela Llansol. De todas as figuras de Metanoite, talvez só o cão Jade possa verdadeiramente entender essa língua.

21.3.25

 METANOITE

Regresso a uma ópera llansoliana

No próximo dia 5 de Abril, pelas 16 horas, teremos mais uma sessão pública do Espaço Llansol, em que apresentaremos fragmentos de uma ópera de 2007, construída a partir do conceito llansoliano de «Metanoite», com música do compositor João Madureira e libretto de João Barrento.

Faremos uma leitura encenada de partes dessa ópera, com os actores Diogo Dória, Anita Ribeiro e Eva Dória (e algumas falas e música em gravação), e João Barrento apresentará o conceito e situará a ópera no seu contexto.



 LLANSOL EM ITALIANO

O blog de poesia italiano Bottega Portosepolto acaba de publicar alguns fragmentos de Maria Gabriela Llansol, em tradução de Fabrizio Boscaglia, professor da Universidade Lusófona de Lisboa e co-organizador do nosso colóquio sobre a figura de Ibn 'Arabî em 2016.

Occaso: voci poetiche dal Portogallo (XXVI) – Maria Gabriela Llansol

Autore/a cura di:

Os textos traduzidos podem ler-se aqui:

https://bottegaportosepolto.it/2025/03/20/occaso-voci-poetiche-dal-portogallo-xxvi-maria-gabriela-llansol/

3.3.25

 A «MESTRA IGNORANTE»

ou: As dobras do não-saber


Da nossa sessão de sábado, 1 de Março, deixamos aqui o breve resumo da intervenção de João Barrento e algumas imagens das peças expostas. Foram ainda lidos fragmentos de Llansol sobre a figura da sua «Mestra ignorante», a Maria Adélia de Um Beijo Dado Mais Tarde, a partir do Caderno feito para esta sessão.



**

A «Mestra ignorante»

ou: As dobras do não-saber

 

Este tema leva-nos para um novo espaço na Obra de Maria Gabriela Llansol, que ela própria designou de «a ordem figural do quotidiano», depois de tratarmos um outro que com ele tem afinidades, o da «Restante Vida» (vd. caderno «Os restos e a restante vida», de 2024). De facto, também as figuras do quotidiano, particularmente a partir de um livro como Um Beijo Dado Mais Tarde (1990) vêm todas dessa esfera de uma «Restante Vida», que neste caso não é a das margens da História (que as duas primeiras trilogias, ou Lisboaleipzig, exploram), mas a dos «restos actuantes», através da busca de outras formas de sageza e de vida, com figuras do dia a dia e para lá dos saberes instituídos. A figura que aqui designamos de «Mestra ignorante« (na senda do filósofo Jacques Rancière e do seu livro Le maître ignorant, de 1987), a da criada Maria Amélia das casas da avó paterna e dos pais (e que no livro assume os nomes de Maria Adélia ou Mélito), é colocada por Maria Gabriela Llansol no centro desse livro, que poderia ter sido um romance autobiográfico, mas é de facto o registo, em diferido, de uma «signografia» dos seus anos de formação desde a mais tenra infância, à sombra dessa figura da sua segunda (ou talvez primeira?) mãe, que frequentemente evoca nos seus cadernos de escrita desde os anos da Bélgica. É ela – juntamente com uma outra, a da «Mestra de leitura» representada pela estátua de Sant'Ana ensinando Myriam a ler – a responsável pela formação da figura (essa mais explicitamente autobiográfica, confundindo-se muitas vezes com a da narradora que diz «Eu») de Témia, «a rapariga que temia a impostura da língua» e do mundo, impostura mais claramente associada ao fausto da casa e seus objectos, à figura do Pai, detentora de um saber mais livresco, e à fachada da casa – Témia preferia habitar as traseiras, ou os espaços da sua «Mestra», a cozinha ou o quarto. De facto, o saber, o conhecimento que emana de Maria Adélia – que é «um pedaço de Natureza», como diria Goethe, e por isso a pura «não-impostura» – é neste aspecto diferente do da estátua de leitura (que configura «uma ideia»), e aproxima-se mais dos objectos que lhe servem muitas vezes de referência, com a sua «verdade móvel» (Maria Gabriela iria transformá-los,  na sua escrita,  em «objectos nómadas», susceptíveis de adquirir diferentes significações na sua relação com as diversas figuras e seus contextos).

A figura da «Mestra ignorante» é, assim, o centro de um «romance de formação» muito particular, em que nos é narrada, não tanto «a história de uma família ambiciosa e fechada, vinda da Beira para um andar mítico na cidade...», como é sugerido no segundo capítulo do livro, mas antes a história de uma origem. Não a biológica, mas uma outra, escolhida e reconhecida como determinante ao longo de toda uma vida e uma Obra: «Eu crio-me sentada à beira da minha origem...» (Um Beijo Dado Mais Tarde); «Eu nasci no decorrer da leitura silenciosa de um poema...» ou «Eu nasci na sequência de um ritmo» (Onde Vais, Drama-poesia?). Esta ideia é claramente de inspiração nietzschiana, em textos como Ecce Homo. Como se chega a ser o que se é, ou a segunda das Considerações intempestivas, onde essa noção de origem tem a ver com «aquela força e crescer a partir de si próprio, de transformar e assimilar coisas passadas e que nos são estranhas».

Os textos reunidos no caderno sobre «A Mestra ignorante» dão conta dos modos de ensinar e de saber dessa mestra singular que representa claramente uma alternativa às vias de formação e aos saberes tradicionais e convencionais, como também acontecerá nas Escolas que Llansol e Augusto Joaquim criam no exílio da Bélgica. Também aí, nas práticas pedagógicas à margem da escola oficial, se parte do princípio de que há outras vias para o conhecimento, não racional, mas intuitivo, não erudito ou científico, mas prático e simplesmente humano. Não se trata de rejeitar o saber e a aprendizagem, mas de dar o seu lugar a modos de conhecimento não conceptuais, abstractos ou sistemáticos. A intuição é aqui tão importante como o saber científico, é uma forma particular de sageza, mas não necessariamente de saber.

Na sua interacção com Témia, a Mestra mergulha assim nas suas próprias origens, num mundo elementar da intuição e do vivo, que se foi perdendo e que ela procura despertar na mente e no corpo da sua «menina», com frases lapidares, narrativas e olhares, jogos e brincadeiras – e que esta interioriza. Na grande entrevista «O espaço edénico», de 1995,  Maria Gabriela  lembra a  importância da  «Mestra ignorante» para encontrar «as imagens fundadoras da sua realidade», «a criança que nascera para a escrita». É ela que lhe ensina a procurar os «existentes-não-reais», realidades que estão aí, ainda que se não vejam, sem lições de sábios, mas descobrindo sinais: uma estátua que fala, uma jarra que é mais do que isso, o «corpo-barco» de Maria Adélia que a levava nessas viagens da imaginação, que se iriam revelar decisivas para a sua escrita (a Mestra torna-se assim, como lemos em Um Beijo Dado Mais Tarde, uma «futurível mãe»). 

Maria Gabriela Llansol aprendeu – melhor, apreendeu intuitivamente – a lição da «Mestra ignorante», e nunca mais abandonará essa «Nuvem do não-saber» (título de um tratado medieval anónimo sobre estas questões onde o «acto de ver» ou a «inteligência natural» têm lugar de destaque, como em Llansol), ideia que foi mais amplamente desenvolvida a partir do livro de Jacques Rancière e do seu «mestre ignorante», o revolucionário francês Joseph Jacotot, e regressando a fontes como o Sócrates da Apologia ou do Fédon, os mestres orientais do Tao (o caminho seguido a partir da origem escolhida), místicos como Mestre Eckhart ou Ibn 'Arabi, o Spinoza do Tratado da Reforma do Entendimento, ou também traçando paralelos com autores portugueses como Gonçalo M. Tavares (o do Atlas do Corpo e da Imaginação) e poetas como Fernando Echevarría ou Casimiro de Brito.



Também Maria Gabriela Llansol cultivou o «improvável» («Tudo o que se prova morre na incerteza»), que Augusto Joaquim definiu um dia como algo que «não tem prova, mas abre ao gosto», e apreendeu as lições da sua «Mestra ignorante», para nunca mais abandonar a sua nuvem de um saber-outro, sempre presente no céu da sua vida e da sua escrita, um saber sem forma, que assenta na consciência da mutação permanente das coisas.

Foi a lição da Mestra que lhe permitiu escrever um dia num dos seus cadernos:

«Há todo-um-saber na Enciclopédia [ou na inteligência artificial, diríamos hoje!]______ mas eu saberei infinitamente mais!» (Caderno 1.26, p. 161, em 31 de Julho de 1987). É o seu «sonho de nomadismo [por mundos-outros] e de contemplação do movimento nas coisas leves e simples», como lemos ainda nesse livro-chave para este nosso tema, Um Beijo Dado Mais Tarde.

J.B. 

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                            «... eu crio-me sentada à beira da minha origem...»

 



A HERANÇA DA «MESTRA»



27 de Abril de 1994

Recebo a herança da Maria Amélia – o seu amor por nós, em fotografias e numa carta.

(Caderno 1.40, p. 12)

16.2.25

 A «MESTRA IGNORANTE»

No próximo dia 1 de Março, pelas 16 horas, entraremos num novo ciclo da Obra (e vida) de Maria Gabriela Llansol, que ela própria designou de «a ordem figural do quotidiano». Sem abandonar a área da História (neste caso mais a pessoal) e a sua noção de «Restante Vida», a Maria Gabriela passa a certa altura a alimentar a sua busca de outras formas de sageza e de vida através de figuras ligadas à sua experiência quotidiana. No caso da «Mestra ignorante» trata-se da sua criada-mãe Maria Adélia, figura central do livro Um Beijo Dado Mais Tarde. João Barrento apresentará a Mestra de Témia/Gabi, e situará o tema dos mestres do não-saber numa longa tradição, que vem de Platão e dos mestres orientais e chega ao filósofo francês contemporâneo Jacques Rancière e a alguns poetas portugueses.

Teremos o habitual caderno, leremos alguns textos que documentam o tema am Llansol e mostraremos as peças da modesta herança que Maria Amélia/Adélia deixou à sua «menina» Maria Gabriela.

21.1.25

LLANSOL VIAJANTE:

O DIÁRIO DOS TRÊS CONTINENTES

No próximo dia 1 de Fevereiro, pelas 16 horas, retomamos as sessões públicas do Espaço Llansol, com a apresentação de um dos primeiros diários de Maria Gabriela Llansol, que resulta de um «Cruzeiro dos Três Continentes» feito em 1953 pelo Mediterrâneo, de Gibraltar a Constantinopla e Argel, passando por Palma de Maiorca, Itália e Grécia.

Os lugares visitados serão apresentados num video com os comentários de Llansol, provenientes do Diário, que estará disponível num dos nossos habituais Cadernos ilustrados.