29.9.25

AMAR UM CÃO

Leitura encenada

O texto de Maria Gabriela Llansol Amar um Cão será dito pela actriz Inês Gonçalves, com encenação de Jean Paul Buchieri, na Padaria do Povo (Rua Louis Derouet, 20-A, em Campo de Ourique), nos dias 2 a 5 de Outubro, pelas 19h. No dia 2 (quinta-feira) pelas 18h João Barrento fará uma apresentação deste texto de Llansol, e no sábado, dia 4, a sessão terá interpretação em Língua Gestual Portuguesa.

Para todas as sessões haverá um limite de 30 lugares. As marcações podem ser feitas em:  amarumcao@gmail.com .

A leitura, preparada com a colaboração do Espaço Llansol, insere-se no ciclo «Episódios para um actor (só)», onde foram já lidos textos de Samuel Beckett e Etty Hillesum; o próximo, depois de Llansol, será A Loucura do Dia, de Maurice Blanchot.

24.9.25

 O SOPRO DA CRIAÇÃO... E DA MORTE

A sessão de sábado, 20 de Setembro, trouxe ao Espaço Llansol uma artista singular – Juju Bento – que, com as suas duas últimas obras (que a seguir damos a ver), encetou um projecto de ligação ao universo de M. G. Llansol que a leva a partilhar o respirar do «Texto Vivo», nome do Prémio que ganhou no Festival FOLIO de 2024, no seu trabalho que se desenvolve entre Portugal, a Dinamarca e a Suécia. Apresentamos aqui os dois projectos realizados até hoje, que a artista comentou na sessão: «A Baía do Ar» (instalação em Óbidos) e «Sopra um modo de morrer», início de um projecto mais amplo, a partir do livro Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, em torno do luto, da transmutação da dor e da perda.

João Barrento e Juju Bento

A história da instalação «A Baía do Ar» está documentada no caderno que fizemos para esta sessão, de cuja introdução transcrevemos parte do texto de João Barrento que dá conta das razões pelas quais o Júri atribuiu o Prémio a esta obra.


O TEXTO RESPIRA E VIVE...


«Concebe um mundo humano que aqui viva»: esta frase de Maria Gabriela Llansol, que é todo um programa e orienta toda uma vida de escrita (e que neste momento histórico parece ter redobrado de actualidade), foi o lema encontrado para este Prémio, uma ideia condutora que, ligada a essa escrita (e agora também à obra apresentada por Juju Bento), nos leva a uma outra ideia llansoliana que deu nome ao Prémio – «O Texto Vivo» – e que se poderia também aplicar a todo o espaço da instalação desta artista a quem ele foi justamente concedido.
De facto, ambas as obras não se limitam a ser mera forma ou construção, linguística ou plástica/visual, mas algo de vivo, que respira; não um mero espaço (de leitura ou de fruição contemplativa), mas aquilo a que Llansol chama um Lugar: um envolvimento com uma atmosfera e uma vibração muito singulares, capazes de proporcionar a transformação de quem lê ou vê. O Texto vivo, a obra viva, é então aquele Lugar em que as palavras, ou os elementos que compõem uma instalação, respiram – porque sabemos desde os Gregos antigos que as palavras, as linhas, os volumes, respiram (ou não) numa atmosfera muito própria (e ainda Herberto Helder falava também do «ar em que respiram as palavras» da poesia). É isso que faz a diferença em alguns Textos/obras como os de Maria Gabriela, ou agora de Juju Bento.
É por aí que vai claramente este projecto «pneumatológico», como a artista também o designa, com um título – «A Baía do Ar» – que parte de um jogo de palavras de Maria Gabriela Llansol, no livro Lisboaleipzig-O Encontro Inesperado do Diverso, em que transforma o nome da última localidade onde viveu num exílio de vinte anos na Bélgica – Herbais –, que ela vê como uma cápsula de silêncio e de criatividade, em Air BaieA Baía do Ar, na versão portuguesa da artista, que, com a imagem da baía, propõe precisamente a entrada num espaço interior mais amplo, onde «o belo comunica com o silêncio», como também queria Llansol.
Estamos perante um original projecto, em que se sente a possível «condição aérea» da existência, com esse envolvimento do silêncio (aqui sugerido por headphones que dão acesso a um mundo, não de ruído, mas de subtis sonoridades, ou do silêncio absoluto, ambos «falantes», como do silêncio da poesia diz o grande poeta Hölderlin, também ele figura dos livros de Llansol).
O Júri sentiu que a ideia de fundo e a sua transposição visual faz todo o sentido neste projecto, e tem uma ligação clara e pertinente com o «Texto vivo» da escritora. A artista leu (e apreendeu) muito bem a sua Llansol, formula as ideias do projecto sem perder de vista esta referência, e fá-lo também, na memória descritiva que apresentou, com uma capacidade de escrita invulgar hoje. E reflecte igualmente uma experiência, hoje cada vez mais rara, voltada para a interioridade, também ela marcadamente llansoliana. Como a escrevente diz, trata-se de «ouvir a minha própria respiração numa melodia privada e única». A artista ouviu essa melodia do silêncio, esperando também que quem olhe a sua obra a ouça. 

[João Barrento]

                                                                                                                                                           
A instalação de Juju Bento em Óbidos pode ser vista clicando no link que dá acesso ao video:
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A nova instalação apresentada pela artista no Espaço Llansol – «Sopra um modo de morrer» – parte do livro de Llansol Amigo e Amiga e sugere o trabalho de luto feito pela autora ao longo desse livro da transmutação progressiva do negro do luto em tonalidades de azul que evoluem até à luz final. Deixamos a seguir algumas imagens da obra que pudemos ver no Espaço Llansol.






                                


(Fotografias de Francisca Esteves Ferreira)

8.9.25

 «PNEUMA» - A RESPIRAÇÃO DA OBRA

Com a artista Juju Bento

Retomamos as nossas sessões públicas no próximo dia 20 de Setembro, pelas 16 horas, com a artista portuguesa da novíssima geração Juju Bento, vencedora, em 2024, do Prémio «O Texto Vivo», inspirado na Obra de Maria Gabriela Llansol, no âmbito do Festival Literário FOLIO.

Apresentaremos (em video) a instalação de Juju Bento então vista em Óbidos, com o título A Baía do Ar (derivado de uma passagem do livro de Llansol Lisboaleipzig). E a artista concebeu agora expressamente para esta nossa sessão uma outra instalação que poderá ser vista no Espaço Llansol: Sopra um Modo de Morrer. Este trabalho vem na linha do anterior, com o tema da respiração (da natureza, das palavras, das obras) em lugar central.

Em conversa com João Barrento, a artista comentará estas suas obras e o seu interesse pelos temas — também muito llansolianos — do sopro, do respirar do mundo, do batimento cardíaco, que têm inspirado os seus trabalhos mais recentes, expostos em Portugal, na Suécia e na Dinamarca — sempre à sombra do Texto de de Llansol.

Teremos o habitual Caderno a acompanhar a sessão, documentando a obra vencedora do Prémio com textos de Llansol, Juju Bento e João Barrento, a memória descritiva do projecto, o caderno preparatório da artista e fotografias da instalação no Centro de Design de Interiores-CDI, em Óbidos.

1.9.25

 O NOVO LIVRO DE HORAS

Estarão disponíveis nas livrarias (e na Feira do Livro do Porto) a partir do dia 4 de Setembro dois Livros de Horas de Maria Gabriela Llansol: o último (A Floresta das Intensidades. Livro de Horas X. 1991-1995) e a reedição do primeiro, Uma Data em Cada Mão, há muito esgotado.


O período coberto por este décimo Livro de Horas — que parte ainda da casa de Colares que fora o centro dos primeiros anos depois do regresso do exílio, e chegará à nova casa de Sintra em Abril de 1994 — vai dando a ler a «inarrativa» de uma vida, à margem da «vida real» (mas sem dela desviar o olhar), num convívio preferencial com plantas, animais, muitos objectos agora herdados e que se transformarão, eles também, em vivos e figuras textuais.

Uma vez publicado, no final de 1990, esse livro maior que foi Um Beijo Dado Mais Tarde, os dias são agora mais preenchidos e amplificados por uma escrita centrada no encontro com outros: as traduções de poetas — Emily Dickinson, Rilke, Hölderlin, vários poetas franceses da Modernidade, de Baudelaire a Rimbaud, de Verlaine a Paul Éluard — marcam também este tempo de convívio entre línguas e mundos. O tempo da «potência de autonomamente estar só».


                                                                            *****



Este primeiro volume de uma aventura iniciada há dezasseis anos cobre os anos do exílio de 1972 a 1977, e apresentava-se assim, nas palavras da autora:

«___________ a primeira imagem do Diário não é, para mim, o repouso na vida quotidiana, mas uma constelação de imagens, caminhando todas as constelações umas sobre as outras. Qualquer aprendiz imagético, quando sobe ao meu quarto e atravessa o meu escritório, tem o sentimento de que 'um belo lixo de imagens se criou aqui?. Se for menos inocente dirá: 'que belo luxo de imagens'. Eu diria: aqui está a raiz de qualquer livro».


25.8.25

 LUÍS LUCAS NO ESPAÇO LLANSOL

Faleceu ontem o actor Luís Lucas, nome incontornável do teatro e do cinema portugueses depois do 25 de Abril, em companhias de primeiro plano como a Comuna (de que foi co-fundador), a Cornucópia, o Teatro da Graça, os Cómicos, os Artistas Unidos ou o Théâtre du Soleil, de Paris.

Luís Lucas e Hélia Correia nas Jornadas de 2013, no Palácio Valenças, em Sintra

«Actor incandescente», como o Público o designa, entregou-se sempre com entusiasmo aos projectos de que participou, nomeadamente naqueles em que, por mais de uma vez, emprestou a sua voz a textos de Maria Gabriela Llansol em eventos nossos. Lembro, entre outros, as Oitavas Jornadas Llansolianas de 2016, em que o Luís leu textos de Llansol sobre Spinoza, e especialmente a leitura (de parceria com Hélia Correia) de uma série de poetas de língua francesa traduzidos por Maria Gabriela – Baudelaire e Rimbaud, Verlaine e Apollinaire, Éluard, Pierre Louÿs ou Rilke –, nas Jornadas intituladas «Trans-Dizer: Llansol tradutora, traduzida e trans-criada», em 2013.  Obrigado, Luís!

26.5.25

ALGUMAS AFINIDADES ELECTIVAS DE LLANSOL

No próximo dia 7 de Junho, pelas 16h, voltamos às sessões públicas do Espaço Llansol, desta vez apresentando uma faceta muito particular, e decisiva, da escrita de Maria Gabriela: a do seu convívio e diálogo com muitos outros escritores, pensadores, místicos, que fazem de muitos dos seus livros um espaço de «troca verdadeira» e da sua escrita um acto não apenas próprio, mas antes um escrever com quem se lê, um «escreler», na original expressão por ela inventada.

O pretexto é o da apresentação de mais um livro do Espaço Llansol, que retoma oito cadernos de sessões anteriores dedicadas a algumas dessas figuras de escrita, e que será apresentado pela nossa colega de Direcção Cristiana Vasconcelos Rodrigues. João Barrento lembrará ainda brevemente os elos de ligação de Llansol com esses compagnons de route: os escritores Emily Dickinson, Rilke, Virginia Woolf, Vergílio Ferreira, os filósofos Spinoza e Nietzsche e os místicos Ibn 'Arabî e Hadewijch de Antuérpia.

22.4.25

 OS CONTOS JUVENIS DE LLANSOL

pelo Clube de leitura «Leia Mulheres»

No próximo sábado, 3 de Maio, pelas 16 horas, o clube de leitura «Leia Mulheres», orientado por Déa Paulino, dará conta, no Espaço Llansol, da sua leitura dos contos juvenis de Maria Gabriela Llansol, que publicámos no volume O Timbre da Estrela (Espaço Llansol/Mariposa Azual, 2024).

Às 15h30 haverá uma visita guiada ao Espaço Llansol, para os membros do grupo que ainda não conhecem a Casa.

7.4.25

 METANOITE

A actualidade de uma ópera llansoliana

Deixamos aqui o resumo da sessão de sábado, 5 de Abril, no Espaço Llansol, recuperando uma ópera feita a partir de textos de M. G. Llansol, e que hoje volta a ser muito actual. 


METANOITE

A forma quimérica do mundo

Metanoite foi uma ópera de câmara concebida expressamente para o fórum cultural do projecto da Fundação Gulbenkian «O estado do mundo», em 2006-2007. O libretto foi escrito por João Barrento a partir da Obra de Maria Gabriela Llansol, em especial do livro O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a representação estética do mundo, e suas tentações (de 2002). A ópera, com música de João Madureira, foi apresentada em estreia absoluta nos dias 29 e 30 de Junho de 2007, no Grande Auditório da Fundação.

O libretto foi composto a partir de conversas com a própria autora e o compositor, e ganhando forma no caderno de João Barrento (exposto entre outros materiais, na sessão de sábado), de que se mostram aqui algumas páginas preparatórias:


O habitual caderno temático feito para esta sessão contém uma selecção de cenas, apresentadas numa leitura encenada, com as vozes de Diogo Dória (o Produtor), Anita Ribeiro (Psalmodia, a autora do espectáculo), Eva Dória (a Rapariga do Fulgor) e João Barrento (o Escrivão do contrato), acompanhada por fragmentos da música original de João Madureira para as quatro cenas da leitura, que o breve vídeo que se segue apresenta com imagens da sessão (fotografias de Teresa Huertas e João Barrento):

https://vimeo.com/1073210526

O caderno da sessão –  Metanoite. A forma quimérica do mundo – inclui ainda o texto de apresentação da ópera e das suas ideias-chave por João Barrento, de que transcrevemos a seguir o essencial:


Uma música sem mancha de ruído

 

Metanoite é o espectáculo de um espectáculo virtual dentro do grande espectáculo real do mundo. Um espectáculo sobre o estado desse mundo e as suas perspectivas futuras, nomeadamente no âmbito da produção artística. Como a play within the play de Hamlet («The play’s the thing / Wherein I’ll catch the conscience of the King», II, ii), esta ópera é um catalizador que porá à vista a consciência – e o inconsciente – do nosso mundo.

De que matéria(s) se faz hoje o mundo? A visão barroca e simbolista do mundo como sonho aplica-se menos ao nosso mundo do que a shakespeariana (e também calderoniana) do mundo como palco. Maria Gabriela Llansol, que forneceu a matéria para o libretto desta ópera, via-o, a princípio, como sendo feito sobretudo da matéria da injustiça, da «trama da existência» subordinada ao tempo do poder. Hoje, sem renunciar a esse ponto de vista, mas deslocando-o e ampliando-o, insiste mais (como demonstra o subtítulo de um dos últimos livros, O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações) na matéria das imagens e na natureza constitutivamente estética do mundo.

«O mundo é puramente estético (mas raramente santo)», diz a Rapariga do Fulgor. O ser estético disponibiliza-o para uma série de possibilidades (potencialidades) de apreensão para lá da sua mera representação e exposição, numa zona de que a maior parte das pessoas, ocupadas com o que (lhes) é útil, não se apercebe – porque esse trabalho estético consiste em ver à sombra do que se não vê. O não ser santo, por sua vez, implica que o mundo só pode ser (tendencialmente) cínico, pérfido, ressentido, absurdo. As estéticas de que o mundo é feito dão corpo, cor, imagem às coisas, são sinais de vida: «a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas», lemos já, na pré-história desta Obra, em Depois de Os Pregos na Erva. É essa, precisamente, a sua outra «santidade», aquela que Spinoza nelas viu com olhar (de) intenso. E é esse equilíbrio tensional entre a substância do invisível (que o estado actual do mundo insiste em esconder ou negar) e o estendal de absurdidade da sua imensa superfície visível, que Metanoite pretende dar a ver e problematizar – com humor e sensibilidade. Musil trata já este problema e esta tensão em O Homem sem Qualidades, uma obra imensa em que o essencial se joga entre a busca de um «outro estado» (que implica uma existência tacteante e céptica, aberta ao reino do possível e sem «qualidades») e a auto-satisfação dos «pragmáticos da razão suficiente». No meio, em inúmeras variantes, vegetam os ingénuos paladinos de uma realidade já sem perfil identificável, a que a cultura ocidental gosta de chamar o «Espírito», com maiúscula.

Também o libretto de Metanoite propõe dois filões alternantes, deixando repetidamente o caminho aberto a terceiras vias. O primeiro é o da paródia e da ironia (em relação às figuras do Escrivão e do Produtor do espectáculo), mais presente do que geralmente se pensa na Obra de Maria Gabriela Llansol, e que só por si poderia ter originado uma ópera puramente buffa. A paródia, lembremo-lo, tem a sua etimologia no párodos do teatro grego, aquela entrada lateral, ou canto paralelo que, remetendo para o pano de fundo contra o qual se desenrola a acção, se apresenta como discurso que passa ao lado da acção principal (isto é, mais visível) do mundo, que, no nosso caso, se pretende séria e é hilariante e absurda («Se o mundo é o imediato, este espectáculo / passa longe dele», diz a sua criadora, Psalmodia). O segundo filão, representado pelos intermezzi e pelo coro final, dá voz ao que deseja o que o desejo pode, à potência, despossuída de interesse, do «sexo do mundo», terceiro sexo que pode propiciar a terceira via implícita na ideia de Psalmodia para o seu espectáculo, que, repetindo realidades e práticas correntes no universo capitalista dominante, é sabotado, destruído, atraiçoado pelos «intermediários» (aquelas figuras, sinistras, invertebradas e sem rosto, de «funcionários» e guardas de uma lei que desconhecem, que povoam já o universo de Kafka). A perspectiva aberta da criação, para lá do «Ou... ou» do Produtor e da ignorância gestionária do Escrivão, é a do «ímpar»: não simplesmente a do número, já que participa do duplo sentido do termo, e implica, para um espectáculo como para uma existência, a relação tensional fora da simetria estéril, a orientação para a singularidade in-igualável (do mundo por vir). Só assim se poderá sair dos maniqueísmos do mundo e da eterna oposição não resolvida entre o carnaval (trágico) da História e um outro antiquíssimo (e mais humano) rumor da história. «Onde houver Bem e Mal» – lemos em O Senhor de Herbais – «a justiça nunca será reposta.» Mas, sabemo-lo há muito, o mundo precisa de se reger (de ser regido) por batutas dualistas, desvirtuando inevitavelmente os resultados dessa equação viciada. Por isso, o grande problema do mundo – e do espectáculo (de Psalmodia) dentro do espectáculo (da ópera) dentro do espectáculo do mundo – é o da reposição de uma justiça imanente, para além do Bem e do Mal.

[...]

As cenas da preparação do espectáculo (gorado) a que aqui se assiste deixam no ar dilemas e perguntas: como conceber o grande teatro do mundo de modo a que nele se possa afirmar a forma do humano? O humano será já hoje um fóssil, como sugere, no segundo quadro, a máquina que lê o pensamento e grava a palavra? Já estivémos mais perto da sua efectivação? A técnica desumaniza? Quando poderá o humano voltar a ser o que a visão ofertou a alguns e a História lhes retirou? Quando é que os olhos do humano estarão melhor apetrechados para ver o invisível, arriscando entrar no brilho perigoso e irresistível do Sol da metanoite? O que é, afinal, a metanoite?

A metanoite é o que nos espera do outro lado de uma fronteira que poucos atravessam: uma noite, mas de luz, um lugar de risco que é preciso atravessar para crescer na intensidade. Desde O Livro das Comunidades que encontramos na Obra de Maria Gabriela Llansol três noites: a do deserto, noite do agir em vida, travessia cega que os Gregos subordinavam a um destino (a moira) que o texto de Llansol  desconhece, porque nele o caminho da Figura, o «nocturno trabalho figural» (Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 167), é o da busca de uma energia autónoma (dos semelhantes na diferença); a do exílio, noite escura dos banidos do tempo, do esquecimento a que a História e os seus poderes os votaram; e a do espírito (daquele espírito que é manifestação de uma energia do corpo), da futura noite da ressuscitação sem ressurreição, da salvação sem deus, de um «espaço edénico» a-teológico, que pode estar à espera de cada um de nós na dobra de qualquer experiência, do outro lado da fronteira da metanoite. A metanoite seduz, e mete medo. Os perigos inerentes ao poço da metanoite, com a sua natureza de «imagens tempestuosas», são inseparáveis dos prazeres do jogo da escrita, da criação e do encontro de si (a psicologia jungiana chama-lhe «processo de individuação», e nele o papel da arte pode também ser central): porque é aí que encontramos o que não sabemos, mas precisamos de saber, porque é aí que arde a «chama num interior de anel», ou seja, a luz que torna possível o «eterno retorno do mútuo» e a emergência do humano – aquela categoria que o texto de Llansol desde sempre desloca do centro para a periferia e questiona, o não realizado, já fóssil e ainda quimera. A metanoite, na definição que dela dá em O Ensaio de Música, é o terreno onde se ilumina a transparência deste enigma:

«Há, no real, um lugar envolvente e sublime, a que chamo metanoite, que está para além da noite,

quando se caminha porque é o único caminho,

obscura,

mas, depois dela,

o corpo volta a envolver o querer, o paladar age com a certeza, a visão rejubila em metamorfose. 

[...]

E, como diria Alberto Caeiro, e Llansol confirma, não há mistério nenhum nisto. Há e não há, como sempre nos textos de Maria Gabriela Llansol. De todas as figuras de Metanoite, talvez só o cão Jade possa verdadeiramente entender essa língua.

21.3.25

 METANOITE

Regresso a uma ópera llansoliana

No próximo dia 5 de Abril, pelas 16 horas, teremos mais uma sessão pública do Espaço Llansol, em que apresentaremos fragmentos de uma ópera de 2007, construída a partir do conceito llansoliano de «Metanoite», com música do compositor João Madureira e libretto de João Barrento.

Faremos uma leitura encenada de partes dessa ópera, com os actores Diogo Dória, Anita Ribeiro e Eva Dória (e algumas falas e música em gravação), e João Barrento apresentará o conceito e situará a ópera no seu contexto.



 LLANSOL EM ITALIANO

O blog de poesia italiano Bottega Portosepolto acaba de publicar alguns fragmentos de Maria Gabriela Llansol, em tradução de Fabrizio Boscaglia, professor da Universidade Lusófona de Lisboa e co-organizador do nosso colóquio sobre a figura de Ibn 'Arabî em 2016.

Occaso: voci poetiche dal Portogallo (XXVI) – Maria Gabriela Llansol

Autore/a cura di:

Os textos traduzidos podem ler-se aqui:

https://bottegaportosepolto.it/2025/03/20/occaso-voci-poetiche-dal-portogallo-xxvi-maria-gabriela-llansol/