O LUGAR DE UM LEGADO
O espólio literário e documental de Maria Gabriela Llansol foi ontem oficialmente doado à Biblioteca Nacional de Portugal. Mas continuará disponível em formato digital no Espaço Llansol, para quem deseje consultá-lo, em particular investigadores.
Na cerimónia de ontem João Barrento e Maria Etelvina Santos fizeram duas intervenções em que reconstituem todo um caminho feito com Maria Gabriela e depois dela. E Hélia Correia, impossibilitada de estar presente, enviou-nos um postal com a sua mensagem. Deixamos aqui os textos destas intervenções, na sequência em que foram lidos, num dia e numa ocasião de grande significado para a preservação da memória de Maria Gabriela Llansol.
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O ESPÍRITO DA OBRA
Este dia é aquele em que, há 94 anos, Maria Gabriela Llansol nasceu para o mundo, e que, graças a este acto, lhe permitirá permanecer nele para além da morte. Por isso o escolhemos para a doação do seu espólio à Biblioteca Nacional, o que lhe garantirá a duração (durée, diria Bergson) para além do tempo. Não para a imortalidade, mas para uma forma particular de eternidade que a Maria Gabriela conhece do seu filósofo, Spinoza, que lhe diz, através da sua edição francesa, e com Deleuze: «Nous sentons et expérimentons que nous sommes éternels» — isto é, libertos do tempo, porque deixámos rasto. Maria Gabriela Llansol di-lo numa única frase de um dos seus dossiers dactiloscritos: «A duração é a quantidade indefinida da existência».
Consciente desta possibilidade de prolongar a existência, já doente e no hospital, Maria Gabriela deixou sobre a máquina de escrever, no final do ano de 2006, dois papéis, simples folhas A5, que seriam decisivos para o futuro de todo o seu espólio. Um deles, que lemos como uma doação pré-notarial, é dirigido a alguns dos amigos mais próximos do Grupo de Estudos da sua Obra que se constituira seis anos antes, e em que deixou escrito:
«O que há nesta casa fica sob a protecção de João Barrento e Etelvina Santos, que lhe darão seu destino – o mais conveniente. Nas suas decisões contarão com o apoio de Hélia Correia. Quero dizer que os dois dispõem da propriedade e da orientação desses bens – a que acharem melhor segundo o espírito da Obra. Melissa fica entregue à Hélia. – (12-12-2006)».
O outro papel, que leio como uma introdução ao anterior, dá numa frase a sua relação afectiva com todo esse «património», e diz simplesmente:
«Carta:
O património
Tenho por ele um sentimento idêntico ao que se dá às crianças – ondulações de suavidade».
O que fizemos até hoje foi tratar esse «património» com o mesmo afecto e dedicação, o melhor que pudemos e soubemos, com todos os cuidados para a sua preservação – e «febrilmente», como nossa «Causa Amante», com aquela «febre de arquivo» de que fala Derrida (depois de ter reconhecido, hélas, que muitas vezes predomina, não a febre, mas o «mal de arquivo» – quando esse arquivo é apenas um depósito morto).
Não foi isso o que aconteceu com todo o espólio – literário, documental, pessoal, material – de Llansol, que acolhemos todos estes anos numa casa viva, e não num arquivo morto, como ela própria desejava quando escreve:
«A casa, sendo uma casa real, seria estática – um Museu. Sendo um pensamento, encontraremos um lugar para viver. A única condição é o pensamento poder audaciar-se, exprimir-se em Obra que fique em toda a parte» (Outubro 1995).
O nosso trabalho foi, de facto, como já escrevi no livro que documenta todo o espólio, algo assim como «um laboratório de possibilidades (que temos explorado dos mais diversos modos, com vista à sua divulgação e visibilidade), um campo aberto onde cada peça funciona como uma mónada susceptível de ser integrada em constelações diversas» – é, afinal, também o modo de funcionamento do próprio Texto de M. G. Llansol.
Mas tudo remonta aos cinco ou seis anos (2001-2006) de encontros do Grupo de Estudos Llansolianos, que se ocupou, em discussões regulares e Encontros Internacionais, da Obra de Llansol, tentando encontrar, como ela dirá, «a chave sob a maçã» (e eu acrescento: da árvore do conhecimento do seu Texto e do «Espaço Edénico sem Éden» que é o jardim onde ele nasce e floresce). Foi o começo de uma ligação mais íntima do Grupo à Autora e à sua Obra, que talvez explique a nossa presença aqui, neste acto de preservação da sua memória. Foi a hora do nascimento da «Comunidade que veio» e tornou possível tudo o que aconteceu até hoje com este legado, e que a própria Autora descreve assim no final do livro-balanço da sua Obra, O Senhor de Herbais:
«AS COMUNIDADES
Este livro é o confronto de materiais antigos, centrados sobre o tempo que vivi em Herbais, e um encontro de estudos que, durante várias sessões, se debruçou sobre O Livro das Comunidades. Apesar de participar com o meu silêncio, para não interferir na formulação da reflexão, fui sentindo o apelo outrora fortíssimo que me levara a escrever o livro fonte da minha escrita e do meu lugar no mundo. Seja qual for o meu destino, aí selei um contrato com o vivo, e dei o passo irreversível que tanto hesitei
em dar para um texto capaz de conferir uma expressão actual a gritos humanos e não humanos, abafados pelo «assim é» da história, do mundo, do poder de espezinhar.
Quantas vezes, sentada na minha cadeira a ouvir as discussões, dificuldades e dúvidas, senti finalmente que outros, a seu modo, entravam por uma porta não muito diferente daquela por onde eu entrara. Senti que se procurava a chave sob a maçã,
o mistério não é o medo que tolhe os passos, mas a servidão que trazemos acorrentada às mãos e nos impede de tactear a chave sob a impotência e o júbilo de viver,
senti-me estranhamente bem, sem o peso de carregar sozinha uma escrita que fez de mim um ser com aura, permitindo-me reatar o meu caminho para o humano, de ser alguém de único entre únicos também, únicos não querendo significar especiais nem revelados, mas tão-só responsáveis pelo dado indiscutível de que cada um é irrepetível,
quer goste quer não
a perseverança dos outros deu-me coragem
vi que não era uma singularidade vã.»
Gostaria de terminar evocando aquela casa de Sintra onde tudo ficou, quando a ela regressei, dois dias depois da grande viagem da Maria Gabriela, e em que tive uma espécie de visão de todo o seu mundo, real e figural, que deixei na Introdução ao meu primeiro livro de «ensaios llansolianos», saído ainda nesse ano de 2008:
A consciência, envolta em cálice,
de que o dia nasce...
Há dois dias que sou atravessado, dia e noite, por uma catadupa de imagens, de ideias, de afectos que me deixam num estado às vezes quase febril, outras vezes letárgico, outras ainda numa disposição quase visionária – a que sou pouco atreito – que me enche de desejos e convicções em relação ao futuro que espera o legado, a memória, o que fica do Texto de Llansol.
Voltei hoje a Sintra, pela primeira vez depois da noite do fim. Do comboio, vejo quintais com laranjeiras, limoeiros, nespereiras, sinais de vidas simples e límpidas, e logo a seguir, dominando a paisagem, grandes massas de betão, matéria inerte que sustenta o mundo inerte. E lembrei-me do universo desde sempre mais próximo de Llansol: um mundo de vivos e intensos, de energia e vibração contagiosas, sem distinção entre vivos-vivos e vivos tornados vivos pela força da escrita, como os objectos e o próprio texto.
Na noite anterior imaginara a casa vazia, a guardiã que ficou (a gata Melissa) deambulando por ela a chamar as Figuras para um festim de luto e alegria, para uma orgia grave e jubilosa: o menino-Literatura, a boneca preta do relógio, a Senhora decepada, o homem da bigorna, Témia em equilíbrio instável na sua cadeira, Sant’Ana e Myriam, o carneiro e o cão-lobo, a «jovem vestindo o seu jardim», a máquina de escrever, o candeeiro de abat-jour redondo sobre a secretária, todas as figuras que se agitam no armário que lhes coube como casa – Musil e Teresa de Ávila, Rilke e Bach, Teresa de Lisieux e Nietzsche à vista através do vidro –, e as Figuras maiores, os dois grandes companheiros filosóficos e espirituais, abertos em cima da pequeníssima mesa redonda ao lado do lugar de trabalho: Spinoza e João da Cruz.
O terreiro deste grande festim eram as muitas páginas, abertas e estendidas no chão, de todos os livros, d’ O Livro das Comunidades a Os Cantores de Leitura. Era a festa do Texto, sensualética, libidinal, vibrante, orgiástica, de mística e carne, de matéria e espírito, do corpo e da escrita e de todos os arcanos do mundo, sem excepção e sem exclusões. Era a festa da despedida e da esperança, da recusa da «experiência abusiva da morte» e da convicção de que haverá Parasceve, ressuscitação.
Foi então que verdadeiramente compreendi o que este Texto tem para dizer – num único lampejo, como aquele que julguei ver no rosto da Maria Gabriela poucas horas antes da passagem definitiva para a outra margem, o da revisitação de uma vida num instante. E percebi também melhor o sentido daquela frase de Spinoza sobre a qual tantas vezes tinha reflectido, e que a lição de Deleuze me ensinara a entender, mas não a viver em experiência: «Sentimos e experimentamos que somos eternos.»
João Barrento
7 de Março de 2008
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A irradiação de cada página continuará a transtornar quem se avizinha, e o ar em redor receberá o corpo da palavra, ousado e amante.
E, na desolação do nosso mundo, Prunus Triloba, tantas vezes abatido, de novo levantado sob a luz – o poderoso dom que de ti jorra – manter-se-á o mensageiro do teu júbilo.
Esperas sempre por mim no nosso banco sob a secreta árvore do Parque de Sintra. Esperas sempre por todos no bairro original. Esperas sempre pelo Jade e pelos gatos na solidão de Herbais. Esperas pelos romeiros que hão-de vir à tua nova casa.
Nasces mais uma vez, nasces-me sempre. Aquilo que nos liga – ninguém sabe.
Beijo da tua
Emily» [Hélia]
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DÁ-ME UM LUGAR
eu deslumbro-me quando o tempo se suspende,
e me permite parar a contemplar o espaço sem tempo.
Maria Gabriela Llansol
I.
Michel de Montaigne relata numa carta o momento em que Étienne de La Boétie se despede dele, fazendo-lhe um pedido meio enigmático: «Dá-me um lugar», é a última frase que repete ao seu grande amigo.
Sempre me impressionou este pedido, por ser uma frase poética na sua essência: reveladora do que não diz, oferece ao leitor um mundo de possibilidades, ficando com ele para sempre. Hoje sei que a Maria Gabriela me fez o mesmo pedido, embora não o expressando desse modo. Corria o ano de 2007. Depois de termos lido e passado, de Maio a Setembro, a versão final de Os Cantores de Leitura, terminando assim um trabalho que, pela companhia, aliviava a sua dor de estar só, uma manhã, na casa de Sintra, a Maria Gabriela pediu-me para abrir os armários das estantes do corredor e tirar tudo o que lá estava dentro. Disse-me: São os cadernos onde sempre escrevi, donde saíram os meus livros. Podemos começar a lê-los, a copiar o que não foi publicado. Vamos dar-lhes um lugar. Pode ser aquele armário que agora está cheio de copos. Fica a ser ‘o armário dos cadernos’. Começaremos a ler as duas o caderno nº 1 e vais passando o que não entrou em livro. Temos aí muito trabalho a fazer. Já tinha pensado num título para o novo livro que viesse a escrever: Livro de Horas. Pode ser esse o título para o que sair do primeiro caderno. Podemos começar no próximo dia. E começámos. Ao reler estas e muitas outras anotações de trabalho, de leitura e reescrita dos textos, apontadas por mim em dois pequenos cadernos, capa de papel kraft, verifico que as suas datas se situam entre Maio de 2007 e Fevereiro de 2008. Seria este o último mês das minhas idas a Sintra tendo a companhia da Maria Gabriela. No final desse mês de Fevereiro, a leitura em voz alta das 370 páginas do caderno nº 1 chegava providencialmente ao fim. A última página fora lida à minha única ouvinte.
Escassos dez dias nos separavam do dia 3 de Março de 2008. Leio uma das minhas últimas anotações: A Melissa passa entre nós e diz qualquer coisa, tão resignada quanto eu. Continuaremos, sabe-se lá até quando, nesta casa de Sintra. Nós e o Texto. Depois, será ele a indicar-nos o caminho.
Há um corredor de claridade que persiste nos meus olhos quando evoco esse momento inesquecível da revelação dos cadernos de escrita e a visão do rio que eles constituíam, espalhados no chão do corredor na casa de Sintra, quando saíram dos armários das estantes. Corredor de claridade que me parece ser a dobra daquele outro que a Maria Gabriela refere, o da casa dos pais, quando escreve «_______ eu nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema». Era o dia 24 de Novembro. Ambos falam do nascimento da escrita e do ser que a viveu. Gosto de sentir que os dois se fundem no corredor de claridade da casa Espaço Llansol, também em Campo de Ourique, por onde se entra continuamente na leitura, por ser a casa onde acolhemos todos os que, connosco, vêm ler e pensar o texto llansoliano. Mas outros corredores se abrem a partir de hoje: os desta Casa-mãe que preserva a memória e que, a partir de agora, será a guardiã do espólio de Maria Gabriela Llansol, o seu Lugar.
A noção de Lugar sempre foi importante para a Maria Gabriela, que o definia como um Encontro primordial. Ainda que aconteça num determinado espaço, ultrapassa-o geográfica e temporalmente. Foi a partir do Lugar llansoliano que entendi melhor o pedido lançado a Montaigne: «Dá-me um lugar». Há um espaço físico, material, onde se cuida e se preserva a memória. Mas há também o lugar imaterial, o do testemunho, onde as figuras nascem para a sua sobrevida. Este é o lugar do encontro que depende de nós. «Não fiques a recordar; se a amas, trá-la de volta», escreve a Maria Gabriela, num diálogo com Jade, em Onde Vais, Drama-Poesia? Parece-me ser este o outro sentido da frase de La Boétie.
II.
Nas últimas páginas do Diário 3, Inquérito às Quatro Confidências, Maria Gabriela Llansol enuncia um pequeno diálogo com Vergílio Ferreira:
O mundo existe e o Vergílio morreu, mas
mais uma palavra me pede a escrita.
— Gabriela!
— Sim!
— Ver-nos-emos face a face, daqui a milhões de anos.
— Sim!
— Faça a sua parte! Sem medo, sem medo, sem medo.
Em momentos de desânimo, sempre me lembrei destas palavras. Sabia que também eu teria de fazer a minha parte, e sem medo. Como cada um de nós. «O caminho caminha», como escreveu a Maria Gabriela, e essa parte que me coube em sorte chega hoje aqui. Essa, porque a outra, a do lugar da toalha de leitura continuará o seu percurso em mim, é como um respirar, é o que com humildade sinto que posso ir fazendo – trazer os outros ao Texto. Para isso, guardo sempre comigo esta frase da Maria Gabriela: «Sejamos singulares e totalmente desprovidos de importância».
Agradeço a todos os que, com a sua força inabalável e uma amizade incondicional, me ajudaram a fazer este caminho e tornaram mais leve esta causa amante, sem esquecer a densidade e a beleza da sua raiz. Só podemos antever a direcção do gesto pela firmeza com que seguramos o lápis. Nunca saberemos o que pode um corp’ a screver nem a linhagem que ele dará à escrita.
Lançar uma semente à terra e passar testemunho desenham o mesmo gesto de desprendimento. Creio que a despossessão é uma das formas do conhecimento amativo, aquele que a Maria Gabriela atribuía a Luís Comuns, o poeta.
III.
Na última parte do livro Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004, sentada junto à grande árvore do Jardim da Parada em Campo de Ourique, depois da morte de Augusto Joaquim, o ausente presente na copa da árvore, Maria Gabriela estabelece com ele um diálogo, apaziguando o processo do seu luto.
São essas palavras que aqui evoco, desejando, a partir de hoje, ouvir a sua dobra na voz da Maria Gabriela, para que também eu, sempre que olhe as árvores da Biblioteca Nacional, me sinta igualmente apaziguada:
«Ouço-o escrever, na folha de leitura permeável ao vento:
Esta árvore é um metrosideros.
Eu estou bem.»
Biblioteca Nacional, 24 de Novembro de 2025
Maria Etelvina Santos



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