3.3.25

 A «MESTRA IGNORANTE»

ou: As dobras do não-saber


Da nossa sessão de sábado, 1 de Março, deixamos aqui o breve resumo da intervenção de João Barrento e algumas imagens das peças expostas. Foram ainda lidos fragmentos de Llansol sobre a figura da sua «Mestra ignorante», a Maria Adélia de Um Beijo Dado Mais Tarde, a partir do Caderno feito para esta sessão.



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A «Mestra ignorante»

ou: As dobras do não-saber

 

Este tema leva-nos para um novo espaço na Obra de Maria Gabriela Llansol, que ela própria designou de «a ordem figural do quotidiano», depois de tratarmos um outro que com ele tem afinidades, o da «Restante Vida» (vd. caderno «Os restos e a restante vida», de 2024). De facto, também as figuras do quotidiano, particularmente a partir de um livro como Um Beijo Dado Mais Tarde (1990) vêm todas dessa esfera de uma «Restante Vida», que neste caso não é a das margens da História (que as duas primeiras trilogias, ou Lisboaleipzig, exploram), mas a dos «restos actuantes», através da busca de outras formas de sageza e de vida, com figuras do dia a dia e para lá dos saberes instituídos. A figura que aqui designamos de «Mestra ignorante« (na senda do filósofo Jacques Rancière e do seu livro Le maître ignorant, de 1987), a da criada Maria Amélia das casas da avó paterna e dos pais (e que no livro assume os nomes de Maria Adélia ou Mélito), é colocada por Maria Gabriela Llansol no centro desse livro, que poderia ter sido um romance autobiográfico, mas é de facto o registo, em diferido, de uma «signografia» dos seus anos de formação desde a mais tenra infância, à sombra dessa figura da sua segunda (ou talvez primeira?) mãe, que frequentemente evoca nos seus cadernos de escrita desde os anos da Bélgica. É ela – juntamente com uma outra, a da «Mestra de leitura» representada pela estátua de Sant'Ana ensinando Myriam a ler – a responsável pela formação da figura (essa mais explicitamente autobiográfica, confundindo-se muitas vezes com a da narradora que diz «Eu») de Témia, «a rapariga que temia a impostura da língua» e do mundo, impostura mais claramente associada ao fausto da casa e seus objectos, à figura do Pai, detentora de um saber mais livresco, e à fachada da casa – Témia preferia habitar as traseiras, ou os espaços da sua «Mestra», a cozinha ou o quarto. De facto, o saber, o conhecimento que emana de Maria Adélia – que é «um pedaço de Natureza», como diria Goethe, e por isso a pura «não-impostura» – é neste aspecto diferente do da estátua de leitura (que configura «uma ideia»), e aproxima-se mais dos objectos que lhe servem muitas vezes de referência, com a sua «verdade móvel» (Maria Gabriela iria transformá-los,  na sua escrita,  em «objectos nómadas», susceptíveis de adquirir diferentes significações na sua relação com as diversas figuras e seus contextos).

A figura da «Mestra ignorante» é, assim, o centro de um «romance de formação» muito particular, em que nos é narrada, não tanto «a história de uma família ambiciosa e fechada, vinda da Beira para um andar mítico na cidade...», como é sugerido no segundo capítulo do livro, mas antes a história de uma origem. Não a biológica, mas uma outra, escolhida e reconhecida como determinante ao longo de toda uma vida e uma Obra: «Eu crio-me sentada à beira da minha origem...» (Um Beijo Dado Mais Tarde); «Eu nasci no decorrer da leitura silenciosa de um poema...» ou «Eu nasci na sequência de um ritmo» (Onde Vais, Drama-poesia?). Esta ideia é claramente de inspiração nietzschiana, em textos como Ecce Homo. Como se chega a ser o que se é, ou a segunda das Considerações intempestivas, onde essa noção de origem tem a ver com «aquela força e crescer a partir de si próprio, de transformar e assimilar coisas passadas e que nos são estranhas».

Os textos reunidos no caderno sobre «A Mestra ignorante» dão conta dos modos de ensinar e de saber dessa mestra singular que representa claramente uma alternativa às vias de formação e aos saberes tradicionais e convencionais, como também acontecerá nas Escolas que Llansol e Augusto Joaquim criam no exílio da Bélgica. Também aí, nas práticas pedagógicas à margem da escola oficial, se parte do princípio de que há outras vias para o conhecimento, não racional, mas intuitivo, não erudito ou científico, mas prático e simplesmente humano. Não se trata de rejeitar o saber e a aprendizagem, mas de dar o seu lugar a modos de conhecimento não conceptuais, abstractos ou sistemáticos. A intuição é aqui tão importante como o saber científico, é uma forma particular de sageza, mas não necessariamente de saber.

Na sua interacção com Témia, a Mestra mergulha assim nas suas próprias origens, num mundo elementar da intuição e do vivo, que se foi perdendo e que ela procura despertar na mente e no corpo da sua «menina», com frases lapidares, narrativas e olhares, jogos e brincadeiras – e que esta interioriza. Na grande entrevista «O espaço edénico», de 1995,  Maria Gabriela  lembra a  importância da  «Mestra ignorante» para encontrar «as imagens fundadoras da sua realidade», «a criança que nascera para a escrita». É ela que lhe ensina a procurar os «existentes-não-reais», realidades que estão aí, ainda que se não vejam, sem lições de sábios, mas descobrindo sinais: uma estátua que fala, uma jarra que é mais do que isso, o «corpo-barco» de Maria Adélia que a levava nessas viagens da imaginação, que se iriam revelar decisivas para a sua escrita (a Mestra torna-se assim, como lemos em Um Beijo Dado Mais Tarde, uma «futurível mãe»). 

Maria Gabriela Llansol aprendeu – melhor, apreendeu intuitivamente – a lição da «Mestra ignorante», e nunca mais abandonará essa «Nuvem do não-saber» (título de um tratado medieval anónimo sobre estas questões onde o «acto de ver» ou a «inteligência natural» têm lugar de destaque, como em Llansol), ideia que foi mais amplamente desenvolvida a partir do livro de Jacques Rancière e do seu «mestre ignorante», o revolucionário francês Joseph Jacotot, e regressando a fontes como o Sócrates da Apologia ou do Fédon, os mestres orientais do Tao (o caminho seguido a partir da origem escolhida), místicos como Mestre Eckhart ou Ibn 'Arabi, o Spinoza do Tratado da Reforma do Entendimento, ou também traçando paralelos com autores portugueses como Gonçalo M. Tavares (o do Atlas do Corpo e da Imaginação) e poetas como Fernando Echevarría ou Casimiro de Brito.



Também Maria Gabriela Llansol cultivou o «improvável» («Tudo o que se prova morre na incerteza»), que Augusto Joaquim definiu um dia como algo que «não tem prova, mas abre ao gosto», e apreendeu as lições da sua «Mestra ignorante», para nunca mais abandonar a sua nuvem de um saber-outro, sempre presente no céu da sua vida e da sua escrita, um saber sem forma, que assenta na consciência da mutação permanente das coisas.

Foi a lição da Mestra que lhe permitiu escrever um dia num dos seus cadernos:

«Há todo-um-saber na Enciclopédia [ou na inteligência artificial, diríamos hoje!]______ mas eu saberei infinitamente mais!» (Caderno 1.26, p. 161, em 31 de Julho de 1987). É o seu «sonho de nomadismo [por mundos-outros] e de contemplação do movimento nas coisas leves e simples», como lemos ainda nesse livro-chave para este nosso tema, Um Beijo Dado Mais Tarde.

J.B. 

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                            «... eu crio-me sentada à beira da minha origem...»

 



A HERANÇA DA «MESTRA»



27 de Abril de 1994

Recebo a herança da Maria Amélia – o seu amor por nós, em fotografias e numa carta.

(Caderno 1.40, p. 12)