9.12.24

 COMUNIDADES, FULGURAÇÕES E... «O ABSURDO»

Deixamos aqui o resumo da última sessão pública, centrada no livro que documenta o Colóquio evocativo dos sessenta anos do primeiro livro de Maria Gabriela Llansol, Os Pregos na Erva, organizado por um dos Centros da Faculdade de Letras de Lisboa, o CLEPUL. Com dois momentos distintos. No primeiro, a Profª Teresa Cadete apresentou o livro (Edições Colibri, 2024), comentando as múltiplas perspectivas de abordagem do Texto de Llansol que este volume documenta. Num segundo momento, e a propósito desse primeiro livro de contos, João Barrento revelou e comentou um texto ainda desconhecido do espólio, que constitui a versão original, em forma de «teatro radiofónico»,  de um dos contos de Os Pregos na Erva (versão lida no final da sessão por Diogo Dória, Anita Ribeiro e Eva Dória).


Da apresentação de Teresa Cadete destacamos:

==== Com prefácio de Patrícia Soares Martins e Golgona Anghel, este volume reúne as versões escritas de textos apresentados num colóquio realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e dedicado à obra de Maria Gabriela Llansol (doravante MG).
A mesma obra é assumida como enigma aberto. Daí que ao longo dos treze textos que compõem o livro (catorze com o prefácio), o leitor se depare com numerosas formulações que podem equivaler a interrogações e hipóteses, por assim dizer enquanto portas abertas ao sentido e aos sentidos, portas suscitadas por uma obra que inibe toda a escrita sobre ela, mas convida à leitura e à escrita com elaLogo na primeira página do prefácio, surge o que pode ser lido como dúvida acerca de uma alegada “paralisia de acção” (p. 7), manifestada na obra de MG desde o estranhamento causado no meio literário dos anos 1960 pelo livro de contos Os Pregos na Erva. Mas será “paralisia” a recusa de linearidade narrativa, recusa talvez como prenúncio de uma fragmentação que se veio depois acentuando ao longo da sua obra e que poderá (deverá? terá de?) ser lida como rejeição da invasividade de todos os paradigmas de progresso? E as questões não ficam por aqui: será a “sobreimpressão” llansoliana uma forma de “auto-referencialidade” (8), como afirmam as autoras, ou antes – e de certo modo em sentido inverso - de abertura a um leque de horizontes? Haverá uma “ausência de referências culturais” (9) ou estarão estas apenas encriptadas? Terá a leitura de “construir o sentido de imagem em imagem” (9)? Penso que pelo menos esta última questão poderá ser respondida afirmativamente sem hesitações. 
Em “’O poder absoluto  de estar só’. Paradoxos criativos nas comunidades llansolianas”, João Barrento realça o sentido político da oposição llansoliana entre os poderes do Livro e o poder dos Príncipes, o que permite entender as motivações subjacentes a comunidades sem hierarquia mas com coordenação (15). Essa “dialéctica de uma incompletude completa”, composta por figuras que bem conhecem e amorosamente cultivam o “mistério da solidão” (16), segue um traçar a que poderíamos chamar antropológico de uma cultura que rejeita o tribalismo comunitário, fazendo-o porventura numa dupla herança judaico-cristã e clássica promotora da individuação, nunca nomeada mas sempre presente. A História incumprida fantasmagoriza-se na escrita de MG e talvez possamos ler as suas formas de fulgorização, ucronia, inconforto (18), em constante vibração e metamorfose (19) como nostalgia de algo que parece não querer ver-se cumprido, apenas registado em escrita. Os textos de MG remetem-nos assim para uma herança de singularidade, culturalmente acentuada desde o dealbar da Idade Moderna e que talvez não tenha sido seguida como merece na acutilância crítica deixada entrever por aquela “comunidade visionária, discreta, itinerante” (21), com que MG desafia o leitor a seguir os seus fios. 
Com “Llansol: uma poética da experiência sensível”, Maria Etelvina Santos chama a atenção para os caminhos da escrita abertos pela experiência do exílio (24), como vias  de acesso a numerosas espécies. Podemos assim ler o desfazer da cápsula do antropocentrismo enquanto substituição do “sempre-drama”, preso nas alturas do olhar humano, por um difuso “drama-poesia”, enquanto “sistema conceptual metafórico” uma vez que cada conceito teria um “percurso nómada e transformável” (25). Tal des-hierarquização é radical mas não isenta de compromisso, nomeadamente no seu “contrato com o Vivo” (28), que retoma os caminhos de leitura numa “gramática do sensível” (29), presente também no minucioso trabalho com o arquivo de MG e na preservação de um espólio de mais de 30 000 páginas (29). 
Para Amândio Reis, Os Pregos na Erva teriam por assim dizer uma espécie de efeito de ricochete, na medida em que essa prosa poderia ter sido entendida como irreal no seu tempo, porém como “demasiado realista” (41) à luz da obra posterior. 
Em “Uma dança sem par”, Golgona Anghel explora uma escrita desregulada, tanto face ao que se lhe aproxima como ao que dela se dissocia, deixando entrever como o mundo é “matéria de puras passagens” (51). Tudo isto resultaria em formas de “coreografia de signos e sentidos” (53), por assim dizer em constante tensão (des)orbitante, devido à pluralidade de estratégias de organização e disposição da matéria textual por MG. 
Com efeito, MG incita a pensar para além dos registos do provável. É o que faz Francisco Fino em “Diálogos (Im)prováveis entre Maria Gabriela Llansol e Daniel Faria”, imaginando os fios através dos quais ambos os autores poderiam comunicar na vasta “geografia dos mundos” (72). Se para Daniel Faria “cada um é um lugar para os outros” (65), MG parece ecoar os apelos do poeta em Ardente Texto Joshua (p. 73), mesmo quando afirma que “a dor e o medo não vêm de estarmos sós mas de não haver texto”. 
Em “Tempo histórico e tempo pessoal: uma grandiosa condensação”, António Guerreiro resgata os escritores tidos por “imperdoáveis”. Estes, mantendo-se “estranhos ao contexto” (75), acolhem no tempo da vida o tempo do mundo, para logo dele se libertarem no espaço. Daí que os seus textos instituam “uma regra de simultaneidade” (76). Serão por isso os textos de MG isentos de historicidade? Para António Guerreiro, tal historicidade surge através de “constelações” (76), o que permite elevar a História a uma “potência ficcional” (76). Mas é a ficção que permite à História fulgorizar-se como soma de acontecimentos e actores, sem o espartilho da cronologia (77). Por esse motivo, os livros de MG são para A. Guerreiro “metonímias da História” (78) que vivem em permanente condição de expatriamento (78). Para os ler, talvez seja necessário seguir a indicação benjaminiana de “escovar a História a contrapêlo” (79) e criar aquilo a que Hans Blumenberg chamou de “campos originários” (Urfelder), para onde convergem experiência, nomeação, predicação e teoria (H. Blumenberg, Lebenszeit und Weltzeit, Frankfurt am Main: Suhrkamp 1986, p. 12). 
Esse tempo pessoal adquire uma vida inusitada, porque pouco conhecida, no texto “Enigma e saber – uma pedagogia do indeterminado” de Rita Anuar, que se debruça sobre a criação e a prática de uma escola em Lovaina, a partir de 1975 como Cooperativa de Produção e Ensino.  Nela, MG teve um papel pioneiro, com Augusto Joaquim. Aí onde “o jogo estava aberto a todas as possibilidades” (82), o saber era “vivido e experimentado, não sendo adquirido” (83). Nela predominavam actividades que para além de ler, escrever e contar ensinavam a habitar o mundo (83), uma vez que tão pouco se descuravam os afectos, esses “lugares mais humildes do que o poder” (84). Seria aliás num jogo de repetição, porém de modo livre e fora do tempo, que o impulso vital reencontraria o princípio do prazer para avançar (85). O exercício da cópia surge assim não como uma imposição enfadonha mas como uma forma de “abertura e conhecimento dinâmico”, deixando espaços em aberto (87). Desse modo, “a conversão de uma letra em imagem passa pelo artesanato implicado nas mãos do que escreve, e [pela] letra tornada artefacto, qualquer coisa única e irrepetível”, ou seja, “experimentada” (89) – com intersecções entre desenho e escrita (91) e com isso estimulando “sem restrição” o exercício da escrita e da leitura (92). Daí resultaria “um mapa experimentado a céu aberto, sem fronteiras” (92) e por aí se atingiria “um saber” contendo em si “uma centelha de ‘não imaginado’”, para assim conviver com o enigma (93). 
Com uma misteriosa relação especular com o texto anterior, as considerações de Maria Brás Ferreira concentram-se nos primórdios da escrita de MG: “Apontamentos para uma sementeira – das redacções escolares de Gabi”. A autora destaca três termos julgados fundamentais, de certo modo como grelha de leitura: o móbil agitador da vida psicológica, a devolução de emoções, ideias e factos e um trabalho constante (95). Daí resulta uma tendência de exteriorização, corporizada na questão “Quem me chama?” em lugar do solipsista “Quem sou?”, como lemos em Um Falcão no Punho (96). As redacções analisadas concentram-se assim sobre um “rosto de infância” aberto às metamorfoses entre figuras, e aberto também a momentos que deixam entrever a sua irreversibilidade, com a subsequente permeabilidade a todos os riscos, sendo porventura o risco maior a “impostura da língua” (104). A metamorfose prolonga assim todos os começos, inclusive o da escrita, que também evidencia a sua mudança de pele, com que “o texto se vai fazendo e refazendo” (105). 
Em “Comunidades llansolianas”, Simone Zanon Moschen recorda um estado que perdura, quase cinquenta anos depois de Finita: “Por enquanto estamos soltos mas ainda não livres. As instituições, as categorias, os poderes, o saber e a ignorância epidémicos continuam a mediatizar as relações entre as pessoas; não há qualquer sinal de criação de ecossistemas” (texto de 26.8.1975: Finita, Edições Rolim 1987, p. 52-3). Como já tínhamos visto anteriormente com João Barrento, o impulso da comunidade llansoliana implica não submissão, mas travessia voluntária, “do sucessivo ao simultâneo” (114). Por assim dizer, são comunidades que se tecem na textualidade, articulando na mesma “uma colecção de lugares dispostos num espaço textual que abdica do centro ou de hierarquias definidas” (119). Nelas pode o vivo pulsar “sua força sexual” (121). 
Sem pretender “explicar Llansol” (123), Silvina Rodrigues Lopes revela saber que tal se trataria de qualquer modo de uma missão impossível. Através do seu texto “O gesto pensativo”, entendemos a leitura como “um instante de um passeio em que se pensa com outros respondendo por si” (123). As suas reflexões são suscitadas por um livrinho a que nem sempre se dá atenção, O Raio Sobre o Lápis, com uma primeira edição em 1991 (no âmbito da Europália) e uma segunda de 2004 . Escreve Silvina Rodrigues Lopes, sempre interrogando-se: “Pode dizer-se que há um drama dito, redito e não dito, que é a impossibilidade de viver ingenuamente num mundo que se deseja cheio de deuses, mas cuja ausência Hölderlin viu ser sem remédio” (126). Trata-se por isso de uma confissão? Não sabemos ao certo. Continua Silvina Rodrigues Lopes: “Escrever em eco é escrever sobre (no sentido de vir depois e sobrepor-se) a ruína do gesto de escrever” (127). Assim como os desenhos de Julião Sarmento, que também podem ser lidos como fulgor ou como ofuscação (131), toda a leitura principia por ser “leitura do mundo” (134). A proposta de Silvina Rodriques Lopes vem acrescentar, à leitura e escrita com MG, possibilidades de leitura em torno da mesma. Assim, “aquilo que está em causa é o testemunho de uma ligação única aos outros habitantes do mundo e às coisas observadas, que, como tal, se não inclui em nenhuma generalidade, é isso que é feito na escrita de Llansol e faz com que cada livro seu seja não finito” (138). Uma incitação, portanto, à cultura de uma dúvida jubilosa. 
Na secção “Outros Contributos”, temos neste livro dois textos e um poema. 
Em “Llansol: uma poética do fulgor”, Elisabete Marques recorda a feliz expressão acerca da força da “escrita orgânica”, como a escrita do ”mundo vivo e vivificado”, como exercício de procura de fulguração, vibração e intensidade (145). Isto porque segundo esta autora, existe uma compreensão (partilhada por MG e seus legentes) de que “o mundo que nos rodeia é fundamentalmente heterogéneo, desconhecido, inapropriável” (146), porém abordável se for evocada a relação aristoteliana entre “alma, vitalidade e transmutação” (148). 
Fernando Guerreiro concentra-se na “Imagem de um texto”, em torno da capa de Ardente Texto Joshua (1998). Esse quadro, “A infância” de Jean-Baptiste Greuze, abre uma tensão entre imagem e textualidade, que porventura teria um ponto culminante na cena do “garoto do Porto” do texto de MG, garoto esse cuja marginalidade o torna indiferente às debilidades de uma classe capaz não só de satisfazer, mas igualmente de vomitar, os seus desejos materiais (Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d’Água 1998, pp 39-44). O texto de MG teria assim uma dimensão “transmorfa e meta-orgânica”, espalhando-se num “sentido-rizoma de ‘vegetalização’” (153), por aí dissolvente, a par da narrativa sequencial, também  de toda a visão antropocêntrica. 
Do poema de Regina Guimarães (“Haters Will hate dizem que ao que dizem”), incluído no final do volume, transcrevemos as linhas seguintes: “sabendo umas poucas migalhas do que tu sabias / umas quantas que guardavas para todos e não só / para ti / semeei-as no caminho para aqui / sempre que um certo dali para um incerto aqui / me desnudou de todos os lugares / excepto os de vontade e vocação” (158). 
Em conclusão: sendo este livro um lugar para habitar, um companheiro na leitura sempre inquieta de MG, é a ela que gostaria de dar a palavra final no seu último livro publicado em vida: “A escriturária anotou que os cantores de leitura eram também caçadores de leituras implacáveis” (Os Cantores de Leitura, Lisboa: Assírio & Alvim 2007, p. 270). =====


Regressamos aos anos de Os Pregos na Erva, que a habitual exposição sobre o tema documentou com diversas peças do espólio, a partir de algumas das observações de João Barrento, que enquadram os contos desse primeiro livro, em particular um deles – «A pedra que não caiu», o único publicado num jornal de referência, A Capital –, com a sua génese num esboço dramático de M. G. Llansol que poderia ser visto como um ensaio de escrita de «teatro do absurdo».



1. Depois da apresentação do livro, e para relembrar a motivação original do Colóquio de há dois anos, completaremos a sessão com uma evocação desse primeiro livro, bastante mais esquecido do que todos os que se seguiram ao «livro-fonte», como Lansol a certa altura designará O Livro das Comunidades 

Há, no livro que foi apresentado, duas intervenções que recuam explicitamente até esses anos de Os Pregos na Erva, e mesmo aos primórdios absolutos da escrita, então ainda mais convencionalmente «ficcional», de Maria Gabriela: o de Amândio Reis, que se ocupa especificamente de Os Pregos na Erva, que refere como «um livro que tem sido pouco lido e ainda menos discutido criticamente» (p. 34). Esta intervenção destaca a originalidade dos primeiros contos, do ponto de vista genológico (o que é ou não é um «conto»), da recepção crítica e da sua inserção num tempo histórico e social, que nos permite falar já de «comunidade» a propósito destes contos: a comunidade, ainda désoeuvrée (i. é, não estruturada), mas inavouable (inevitável e inconfessável) nesses tempos, que é a das figuras dominantes: pobres, sem voz, das margens, desajustadas do mundo. E há ainda, recuando até à «cena primitiva» da escrita da «Gabi», o texto de Maria Brás Ferreira sobre as primeiras redacções escolares, de que já falámos aqui com a autora, ao comentar esses primeiros ensaios de escrita narrativa. Algumas dessas primeiras redacções – que de facto já são «contos» – figuram num dos nossos últimos livros (M. G. Llansol, «O Timbre da Estrela». Contos juvenis, 1942-1957), onde reunimos redacções e contos anteriores a Os Pregos na Erva, em que já se anunciam muitos dos «pregos» espalhados pelos poderes sobre a «erva« do acto libertador da escrita e de possíveis vidas-outras.

Nos cadernos e textos dactiloscritos hoje expostos Llansol explicita bem o sentido  dos «Pregos na Erva», ao responder a perguntas de uma jornalista sobre esses primeiros contos. Ficam aqui dois desses excertos dos cadernos manuscritos:




2) Pensei que faria então sentido evocar Os Pregos na Erva propriamente ditos, dando a conhecer materiais do espólio directamente ligados a esse primeiro livro meio esquecido: referências elucidativas nos cadernos e dossiers de escrita, ecos da imprensa da época (que foram bastantes, dos mais significativos jornais de Lisboa à imprensa de província: Jornal do Fundãodo Ribatejo...), de várias antologias com contos desse livro, cá e no Brasil, de traduções de alguns desses primeiros contos, etc.). Tudo isto esteve presente na habitual exposição sobre o tema:



E ainda o revelador, e desconhecido, original de um dos contos, «A pedra que não caiu». Acontece que esse original não é um conto, mas uma breve peça de «teatro radiofónico», de 1959, que, para além de revelar o conhecimento, e a prática de difusão, de uma forma então ainda muito em voga (desde os começos, nos anos vinte alemães!), o teatro radiofónico, me pareceu também interessante dar a conhecer, como eco, em Llansol, de uma tendência teatral que nos anos 50 começava a dar os primeiros passos: o chamado «teatro do absurdo». E o conto depois incluído em Os Pregos na Erva tem, nesta versão dramática, precisamente o título «O Absurdo». Lembro-me de, no mesmo ano de 1959, ter assistido a uma representação da peça que deverá ter sido a entrada do teatro do absurdo em Portugal: À Espera de Godot, de Samuel Beckett, com uma encenação histórica de «Ribeirinho» (Francisco Lopes Ribeiro) no Teatro da Trindade (por acaso, ou não, um teatro frequentado por Maria Gabriela: vd. Diário de 1959, 23 de Dezembro).

Penso que será uma revelação para todos, este breve texto teatral da Maria Gabriela, que depois não voltou a este género. Sabemos, no entanto, pelos primeiros diários destes anos (1959-1961), que ela lia e via também muito teatro – Lorca, Tenesse Williams, Arthur Miller, Sartre, Eugene O'Neill... –, embora não mencione Beckett ou Ionesco (provavelmente porque não estavam ainda muito presentes cá).

 

3. Ouviremos, a finalizar, a leitura deste caso de «teatro radiofónico».

Antes da leitura situarei um pouco melhor, para vossa orientação, o assunto deste ensaio dramático.

A peça expõe o absurdo da existência, agora não só, como nos contos, centrado em personagens isoladas (ou de «classe», em tempos de chumbo), mas com um sentido mais universal, «de qualquer um», da condição humana em geral, como em Beckett ou Ionesco. A indicação cénica que abre o texto é clara sobre isto: a acção situa-se «Em qualquer parte onde possa acontecer, num mundo pelo menos temporalmente próximo». O sentido da peça é já existencial, não social (isto é claro sobretudo na personagem Inês).

Trata-se de duas irmãs (na peça Inês e Joana, no conto Inês e Cristina) que herdam a casa e a quinta dos pais, e se sentem perdidas nas suas vidas, tal como a terceira personagem, o prisioneiro de guerra que se evade do Campo próximo.

O título posterior do conto – «A pedra que não caiu» – fica claro já nesta primeira versão: as pedras não «caem» propriamente, quem cai – no absurdo da existência sem horizontes – somos nós: vd. o final, e a insistência na «casa vazia», que afinal está cheia, contradição absurda como a de um Godot que não virá, ou da mulher, Winnie, enterrada até ao pescoço na sua própria casa, na peça Happy Days / Ah, les beaux jours / Dias Felizes, de Beckett.

Ouvimos a certa altura uma das mulheres dizer: «Tanto existir inerte!» – isto, numa quinta activa, em vésperas da vindima, e numa casa cheia de tudo. O estar ali (ou no Campo de Prisioneiros – de que guerra, perguntamo-nos, em 1959?) é o puro não-sentido de existir – ou a incapacidade de encontrar um sentido, sempre numa situação de espera, da existência como prisão, com medo da «coleira de arame farpado» que é tanto a do Campo de Prisioneiros como a da simbólica «casa vazia».

Inês coloca a certa altura a questão de fundo: «Por que vivemos nós nesta casa [aquela e a do mundo?], aqui e neste tempo?». 

Um tempo que é um eterno presente em que nada de novo acontece, como sugere. Mais tarde, haverá sempre outros ecos disto em M. G. Llansol: «Nada ainda modificou o mundo», «Concebe um mundo humano que aqui viva, nestas paragens onde não há raízes», etc. Mas também o propósito de superar essa condição do absurdo, porque «Existe o mundo e a Restante Vida». Mas para estas personagens não existe (ainda) «restante vida»...