BORDAR (COM) LLANSOL
João Barrento, com D. Joaquina Oliveira e Lúcia NunesA tarde do passado sábado começou – depois da contemplação dos bordados do Grupo por quem ia entrando – com a projecção de um video em que eles eram mostrados numa sequência que permitia acompanhar as frases de Llansol que continham e inegrá-los num «encontro inesperado do diverso»: textos e desenhos, bordados e música.
Pode ver-se já esse video clicando no link: https://vimeo.com/980449763
A sesão decorreu em três momentos.
I - Lúcia Nunes, coordenadora do «Grupo de Tricô e croché» de Campo de Ourique, começou por fazer (com D. Joaquina Oliveira), a apresentação do trabalho das bordadoras, o espírito da «comunidade sem regra» que as une, e que nasceu há poucos anos na associação do bairro «Padaria do Povo». É um grupo que reune aprendizes e mestras do bordado, dos 7 aos 100 anos, e com um espectro de interesses que vai muito além dos fios bordados que as unem (tal como Llansol, partindo da escrita, ia muito para além dela): da vida quotidiana à entreajuda e à própria política, no sentido mais amplo do termo.
II - Num segundo momento, João Barrento ensaiou uma introdução ao pensamento de Llansol a partir das frases bordadas, fornecendo assim uma entrada nesse mundo a quem ainda não está familiarizado com ele, como era o caso de muitas das bordadoras e dos amigos e familiares que as acompanhavam. Deixamos aqui o resumo desses comentários.
A exposição dos trabalhos do Grupo1. Começamos por um primeiro núcleo de textos que dão uma entrada, ainda dispersa, nesse universo e na visão do mundo de Llansol, a partir de interrogações sobre a finalidade de existir – e o não-sentido do mundo:
«Nada ainda modificou o mundo».
As respostas a esta constatação assentam todas num «Sim, mas...».
Porque:
a) Toda a mudança é sempre provisória («Todo o mundo é feito de mudança») – e acontece sobre um fundo humano indefinível, sempre igual nas suas variações, mas sempre surpreendente. O mundo não é (o que está aí – onde?): «Nada é, tudo está sendo» e «Existe o mundo e a Restante Vida». E ainda: «Tudo o que é existe em dobra»: há sempre o outro lado, que tanto pode ser o da capacidade intuitiva de ver para além da superfície das coisas como o da existência nas margens.
b) Por isso Llansol conclui: «Não sei dizer o que é um ser humano».
E no entanto, não se desiste da busca: «Ando à procura de um final feliz» e sei que existe «A misteriosa glória de viver»! E nisto não há, nem pessimismo existencial, nem utopias idealistas! É simplesmente a busca do diferente, do que sabemos existir, mas não está à vista.
c) Esta consciência de que há um «sentido de possibilidade(s)» para lá do «sentido de realidade» (a realidade do mundo dos poderes, da opressão, da exclusão, do «gregário»= social nas suas piores manifestações e manipulações) — essa consciência de que há mais mundos leva-nos a frases como: «Nós herdámos as margens», podemos ser habitantes de uma outra vontade de agir, dar vida aos «restos actuantes» que constituem o cerne de uma possível Restante Vida.
Escolhendo as margens, sabemos que andamos «Em busca da troca verdadeira» (diferente do valor de troca mercantil que é a lei máxima do «mundo»), na senda de um «pensamento verdadeiro», que Llansol aprende com o filósofo Spinoza e a sua Ética.
Sabemos então que tudo é vão e tudo vale a pena (a velha máxima do memento mori e do carpe diem), que «Somos ventos e sementes, trajectos e fragmentos» (esta frase, presente num caderno de pano de uma das bordadoras, a Teresa Nunes, é todo um tratado!): ventos que vêm da História e nos moldam ou condicionam; sementes de outros futuros possíveis, trajectos que escolhemos como nosso destino (é a filosofia do amor fati [amor do destino] de Nietzsche, toda uma arte de viver) e meros fragmentos de um Todo inapreensível, de uma outra ideia de mundo, esse «desconhecido que nos acompanha». Aí sabemos que a diversidade do mundo nos leva à descoberta do «belo [que] é o encontro inesperado do diverso» (como hoje, nestes trabalhos que se cruzam com textos e desenhos de Llansol). Então talvez habitemos um «quarto musical e sem janelas» – que no entanto (talvez porque é musical) nos oferece a vista da paisagem (como Llansol a entende), que é aquilo que o olhar livre vê, muito diferente dos territórios = aquilo que o olho dos poderes cobiça e toma por seu (a verdadeira essência do «mundo» humano naquilo que ele tem de pior – e que hoje está novamente à vista em todo o mundo!).
Quem toma consciência destes modos alternativos de estar no mundo (melhor, fora dele) e escreve, como é o caso aqui, sabe que «Escrever é o duplo de viver» – mas não o simples espelho cego da minha biografia! A existência (o «viver») pode ser muito mais ampla. Se seguirmos por estes caminhos, parece dizer-nos Maria Gabriela Llansol, seremos mais sábios do que com tudo o que nos queiram vender todos os influencers deste mundo e do outro (aí, de facto, nunca sabemos bem onde e com quem estamos, sabemos apenas que estamos a ser manipulados!).
Seguindo pela Restante Vida, «um mais saber [um saber-outro] há-de subir à voz», e saberemos que a obsessão com o egocentrismo nos escraviza, e que o saber escutar o outro, ler o seu rosto, nos liberta: «Quem sou? é pergunta de escravo»; «Quem me chama? é pergunta de homem livre».
2. Um segundo núcleo de frases, mais directamente ligado ao tema de hoje, é o da ligação e interacção entre escrita (e leitura) – bordado – desenho: a base dos trabalhos aqui apresentados.
Por estes caminhos de ligações não perigosas mas cheias de surpresas, «ler [ou bordar] é nunca chegar ao fim de um livro», ou de uma meada, é um novelo sem fim... Da escrita ao bordado não há barreiras, traduz-se uma linguagem noutra («Da escrita ao bordado, traduzindo...», diz a frase de Llansol).
Com esta convivência entre bordado, leitura, escrita e desenho, «O tecido tem luz própria», a «Bordadora de texto» (Llansol e todas as mulheres deste Grupo de Campo de Ourique) «escreve os bordados»...
Sobre esta matéria pode ler-se muito mais no Caderno A Bordadora de Texto, que vem de uma sessão anterior, e que agora reimprimimos.
III - Finalmente, algumas das bordadoras do Grupo fizeram uma Leitura de fragmentos de Maria Gabriela Llansol sobre as ligações entre bordado, escrita, desenho e vida, incluídos no desdobrável que os que vieram puderam levar consigo, em que figuram também os bordados expostos e os nomes das mulheres autoras desses trabalhos.