2.6.24

 OS TEMPOS DA GRAFONOLA

O sábado passado decorreu, no Espaço Llansol, entre os livros e a música da grafonola. Regressámos à infância de Llansol, em Alpedrinha e Campo de Ourique, e aos gostos musicais de uma média burguesia dos anos trinta. Primeiro, através da contextualização – social, familiar, cultural – da música gravada na intervenção da Profª Leonor Losa, de cujo livro Machinas Falantes. A música gravada em Portugal no início do século XX transcrevemos alguns momentos que abordam a matéria de que a autora nos falou:

«As formas de audição de som e música mediadas pela tecnologia de reprodução sonora descrevem uma das significativas transformações de hábitos e práticas sociais motivadas pela modernidade tecnológica, num período de acontecimentos políticos e sociais marcantes no contexto nacional e internacional. Estimulando a rápida circulação e o consumo massificado de conteúdos musicais, a gravação veio instituir novos modos de relação com repertórios e práticas musicais, aparentemente sob o signo exclusivo do entretenimento. (...)

Os processos sociais, políticos e económicos que o país atravessava encontraram ténue reflexo nos conteúdos da música gravada. Quando acontece, é sobretudo no repertório de teatro de revista – tradicionalmente crítico e consumindo a realidade política e social do país como fonte primordial dos conteúdos narrativos. (...) Na sua maioria, o repertório fonográfico situava-se num terreno neutro, sobretudo de carácter lúdico. (...) As empresas fonográficas com representação no país, num processo dialógico compreendendo o seu público, encontraram um terreno de exploração fonográfica fortemente apoiado em repertórios e práticas musicais de enraizamento mais ou menos urbano, de amplo reconhecimento local. A coexistência de diversos espaços comerciais dedicados à fonografia nas principais cidades portuguesas dava conta, como vimos, de que uma economia de mercado sustentável se havia formalizado no país. Contudo, esta existência conflitua com a inexistência praticamente total de elementos discursivos sustentando a emergência de um espaço de expressão social das práticas de escuta, consumo e produção de música gravada. Nas fontes da época, a música gravada não é contemplada, um fenómeno de invisibilidade que perdurará ao longo da história, desconhecendo-se as dinâmicas de produção de música gravada neste período.(...)

Contrariamente ao que as fontes da época sugerem, discos e gramofones parecem ter encontrado um terreno de existência e expressão gerador de novos modos de consumo de música e, sobretudo, recheado de sentidos sociais, no qual a circunscrição de categorias musicais genéricas constituiu um meio eficaz de mediar a criação de práticas sociais em torno da música gravada. (...). A análise destas categorias genéricas, mais do que um meio de aceder a diferentes formas de organização de géneros ou estilos musicais (por vezes sobrepostos entre diferentes categorias), permite-nos compreender as formas de organização da realidade subjectiva e empírica e, portanto, a génese da formação histórica de fronteiras discursivas de gosto, tantas vezes promovendo modos mais alargados de diferenciação social (de nacionalidade, classe, identidade regional, entre outras).»

João Barrento comentou depois o tema, e a importância da música na infância de Llansol, através das várias referências à grafonola, aos discos do «His Master's Voice» e à dança que eles suscitavam, que recolhemos no caderno que acompanhou esta sessão, que inclui também o catálogo descritivo dos 47 discos que ficaram no espólio, num leque que espelha os gostos da época, e em que sobressaem a música de dança, a música clássica e a opereta, a música popular espanhola, sem esquecer o fado e o teatro de revista. E destacou também o papel da música em geral na escrita de Llansol, através da leitura de registos dos seus cadernos pelos quais é possível compreender como música e escrita se encontram no registo polifónico da linguagem, na alternância melódica das vozes das figuras, ou no próprio texto em geral entendido como uma partitura. Em Llansol, a música e os músicos modulam e modelam o Texto, e os primeiros sons ouvidos na grafonola incitavam-na claramente à dança como forma de expressão: «um passo de dança foi a minha primeira curva de escrever, quando eu dançava, movia o corpo, e seguia por uma história que a mim mesma contava, por entre a música e os movimentos da dança.» 

Finalmente, com a ajuda do especialista em restauro das «máquinas falantes» de há um século, o Sr. António João Guerreiro, colaborador do Museu da Música Mecânica, ouvimos num belíssimo gramofone uma selecção representativa deste repertório das casas dos avós paternos em Alpedrinha, e dos pais na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa.

Deixamos aqui, no breve vídeo que se pode ver clicando no link, esse som tão característico das «máquinas falantes», com alguns poucos exemplos do que ouvimos (o «Fado do Algarve», o número de teatro de revista «O teu cantar», a marcha andaluza «La Giralda» e a peça do compositor francês André Hornez «Quand reviendra le jour» – do filme Destins –, composta a partir da «Serenade» de Schubert).

                                    https://vimeo.com/952891553?share=copy

E tivemos ainda, durante todo o dia, uma grande Feira do Livro (llansoliano e não só), em colaboração com a nossa editora, Mariposa Azual, onde foi possível adquirir a preços reduzidos todos os livros disponíveis de M. G. Llansol, os volumes da nossa colecção «Rio da escrita», cadernos temáticos feitos para as sessões públicas do Espaço Llansol, e muitos outros livros de autores portugueses, bem como traduções e obras próprias de João Barrento.