24.5.20

Maria Velho da Costa

«DUAS MULHERES QUE A NOITE ASSOMBRAM»

Maria Velho da Costa deixou-nos ontem, no dia em que Eduardo Lourenço fez noventa e sete anos. São dois astros particularmente luminosos na galáxia da escrita portuguesa contemporânea. Maria Gabriela Llansol «encontrou-se», por mais de uma vez, com ambos, sem nunca propriamente lhes ter falado pessoalmente. Com Eduardo Lourenço houve troca de correspondência, com Maria Velho da costa apenas a possibilidade de um encontro que não parece ter acontecido, em 14 de Maio de 1993 (anotado na Agenda nº 32, p. 24).


Com Maria Velho da Costa, a relação in absentia, apenas através de livros ou referências mútuas, data já dos anos da Bélgica. Llansol anota, em cadernos de 1977:
«A Teresa [Joaquim] escreve e diz que a Maria Velho da Costa me considera, e à Agustina, as duas melhores escritoras portuguesas... [...] Vejo escrever-se antecipadamente o meu encontro com a Maria Velho da Costa. Somos dois femininos-criadores face a face» (22 de Julho de 1977).
E de novo, em 30 de Setembro desse ano: «Hoje, a Teresa falou-me de Maria Velho da Costa. É uma possível béguine, uma dessas mulheres que se apagam, ou...»
Llansol referirá ainda a autora de Casas Pardas e Myra nesse seu livro-balanço que é O Senhor de Herbais, ao comentar algumas ideias de poemas de Manuel Gusmão em Teatros do Tempo, em particular a íntima articulação entre estética e ética, ou «o som e o sentido» – tema e prática comum também a ambas as autoras. Depois, dar-se-á, da parte de Maria Velho da Costa, mais um passo em direcção a Llansol, com o encontro implícito entre dois cães, o Jade de Amar um Cão e o Rambo de Myra.
Mas será ainda Manuel Gusmão a juntar estas «duas mulheres que a noite assombram», que conheceu bem, ao aproximá-las na intervenção que fez nas nossas penúltimas Jornadas Llansolianas, em 2018. E partiu de um longo poema seu, que depois foi desdobrando num comentário que também as aproximava de uma terceira, a beguina Hadewijch, juntando-as nas margens de rios que atravessam obras das duas autoras, Contos do Mal Errante e Missa in Albis. Deixamos aqui, como homenagem a estas duas mulheres-de-escrita pela voz de Gusmão, o início do seu poema de 2018:

São duas mulheres
que a noite assombram.
Uma que foi para a Flandres e veio de lá;
onde escutou longamente a fonte que repetia as vozes do rio
que assedia Münster*. Essas vozes cintilavam
nessa fonte que se chamava Hadewijch
(o que daria três mulheres nesta história).

A outra, alguém que veio do Alentejo,
antes ou depois dess'outra
traduziu as vozes desse rio 
para as margens de um outro
que corre mais perto de si ou de nós.
E assim escreveu «À beira-Ebro,
ou no rio que assedia Münster»**. 

A que veio da Flandres escrevia
À vista de um pinheiro solitário
enquanto conversava com Prunus Triloba
sobre o modo como emendava as figuras
vindouras. 

A segunda irmã descreve uma araucária
com o virtuosismo que pode ter ido buscar
à Magnólia da Luiza***. Mas o esplendor da linguagem
guarda-o para quando fulgoriza
Elvira descascando uma cebola***.
[...]  
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* O rio Aa, presente, tal como Hadewijch, em Contos do Mal Errante
** Citação do final de Missa in Albis, de Maria Velho da Costa
*** «A magnólia» é um poema de Luiza Neto Jorge
**** Alusão a uma cena de Casas Pardas.