26.5.19

«PORQUE HÁ UM CONTRATO...»
O Vivo e a tecitura do mundo


Tivemos ontem no Espaço Llansol uma sessão viva sobre o Vivo. Com a participação da Profª Teresa Cadete (jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa), escritora e até há muito pouco tempo Presidente do PEN Clube Português, com uma permanente intervenção em áreas como as do Comité dos Direitos Humanos, dos Escritores para a Paz, da luta contra o Acordo/Aborto Ortográfico... Apresentámos mais um caderno de textos de Maria Gabriela Llansol sobre o tema, e pudemos ver uma dupla exposição: de livros, cadernos manuscritos, documentos da biblioteca e do espólio de Llansol, e de painéis com fotografias legendadas que mostravam alguns dos «Vivos» que acompanharam a Maria Gabriela ao longo da vida – do gato Fanfan da infância à Melissa de Sintra e aos muitos gatos dos anos da Bélgica e de Colares, de Prunus Triloba ao pinhal de Colares e ao Grande Maior da Volta do Duche e ao cão Jade...





O ponto de partida foi o titulo que Teresa Cadete encontrou para a sua exposição: «Presos no tecido do mundo», que implica desde logo uma visão holística, de interdependência e cooperação entre todos os agentes do Vivo:

Porque há um contrato... um «acordo de criação»... É o homem que tarda no cumprimento 
da sua parte do acordo.
Aliás, todo o movimento do texto e das figuras de desenrola numa respiração ampla, marcada
por uma sístole e por uma diástole. A sístole é aguda e está a cargo do Homem, que tem por
incumbência perscrutar. A diástole compreende os graves, que estão en contacto com as
fontes de alegria. Sempre se pediu que a alegria fosse profunda, como o amor. Os graves
estão a cargo dos animais e da terra. (M. G. L., entrevista «O espaço edénico»)


Abordaram-se em seguida algumas questões subjacentes aos textos de M. G. Llansol que incluímos no caderno Llansol: O Contrato com o Vivo, para os amplificar com considerações sobre o estado actual dessa antiga dialéctica tensional entre os contratos – o social (de Rousseau) e o natural (de Michel Serres) – e sobre a relação entre os universais antropológicos da espécie humana e os direitos de todas as outras «entidades» do Vivo. Teresa Cadete proporcionou-nos uma perspectiva informada e crítica sobre essa grande construção a que Llansol sempre chamou o seu «projecto do Humano»:

A ideia de que tudo o que não é humano tem, tal como o humano, necessidade
de redenção, é vital para a nossa continuação aqui, ou noutro lugar.
(M. G. L., Onde Vais, Drama-Poesia?)

As propostas de leitura do Vivo com recurso a teorias sistémicas de teor holístico revelaram-se, sem surpresa, muito próximas do pensamento sobre o Vivo e o Humano que encontramos nos textos de Llansol. Os três tópicos evocados por Teresa Cadete – os elos da cadeia do Ser, a ciclicidade regeneradora da natureza (contrária aos ciclos industriais e à fatídica ideologia do «crescimento» que nos dominam) e o princípio da cooperação (e não destruição) para manter o equilíbrio da vida no globo – encontraram naturalmente as suas correspondências em M. G. Llansol:

A grande e profunda tristeza dos humanos (e também das outras espécies) vem-lhes de 
terem perdido o anel. Esta realidade tem especial incidência em nós, porque só nós
podemos decidir deixar o outro ao abandono. Coisa que um bicho, uma planta, o cume
de uma montanha, o curso de um rio nunca fazem...
Não reprimas o desejo profundo de beleza, mas nomeia as relações que nascem entre os 
seres e as coisas, entre o vivo e o inerte. A beleza está ligada ao inesperado, ao novo; odeia 
o monótono, o fixo pelo fixo, e seguro por medo; impele o movimento e, sobretudo, inscreve 
no vivo um princípio de bondade... («O espaço edénico»)


Convocámos, na discussão animada que se seguiu, muitos nomes, livros, ideias (Rousseau e Adam Smith, Spinoza, Goethe e Schiller, Luc Ferry e Michel Serres, Emanuele Coccia e José Tolentino Mendonça...), para concluirmos que não há no «projecto do Humano» de Llansol propriamente uma utopia – pelo menos no sentido clássico do termo –, mas antes a afirmação de um «princípio esperança» (como o de Ernst Bloch e da sua «utopia concreta») e a construção livre e des-hierarquizada, evolutiva e convergente, de uma ucronia que convoca para o seu texto toda a pluralidade do Ser, segundo um duplo princípio «sensualético» de bondade e de beleza:

A folha erótica
A folha erótica não é de um caderno, de um livro_______ é de uma árvore. Tem um grito 
cantante, de animal, depositado nas nervuras. Não sei a que ramo vegetal de vida pertence. 
É como eu...
Se o erótico for sempre a manifestação de um instinto genésico, isto é, corresponder 
sempre a um instinto criativo feliz________ se o orgasmo for a última pedrada na folha 
resplandecente
que não se magoa,
mas voa,
se, voando, deixar a mesma folha que era no ramo_______
se o luar libidinal for o último azul do verde da folha erótica,
então ficarão arrumadas as palavras
que pronunciaram como a felicidade tinha sentido e era o único espaço de procriação...
(Caderno 1.51, 16 de Julho de 1998)