8.4.18

«UM LIVRO ACONTECE-ME...»
PATRÍCIA PORTELA NO ESPAÇO LLANSOL

No ciclo «Llansol: A Luz de Ler» tivemos o privilégio de receber no sábado no Espaço Llansol a escritora Patrícia Portela – que a si mesma se vê, de preferência e à semelhança de Llansol, como «escrevente» (no tempo progressivo e activo do verbo e do gesto de escrever), alguém a quem os livros (que neste caso já são muitos) «acontecem» e vão «fermentando» até desabrocharem, mas sem nunca serem flores para a eternidade.
Patrícia Portela é uma criadora de múltiplas vocações – o desenho, a performance, a cenografia, o teatro, a escrita infantil e tantas outras, mais ou menos narrativas ou inclassificáveis. Vive em Antuérpia – o lugar das beguinas nómadas, Eleanora e Margarida, e da «casa do livro» que é a tipografia de Plantin-Moretus em Na Casa de Julho e Agosto –, mas tem vivido e trabalhado em permanente itinerância, os seus textos são também «lugares que viajam» e se movem entre géneros, formas, registos, num espaço de «liberdade livre», infixo e sem fim, como o dos livros de Llansol.
Das suas ligações a esses livros nos falou Patrícia Portela, desde o dia em que, com catorze anos, um tio-leitor e subvertor de cânones lhe pôs na mão um primeiro livro da nossa escrevente. A semente haveria de dar frutos, desviando-a de outras dependências mais acomodadas, num percurso artístico e de escrita em que a criação de mundos paralelos, a capacidade de «tornar a ausência presente», a construção de um «projecto do humano» próprio ou a transformação em escrita de uma «ordem figural do quotidiano» são desde há muito oferecidas por Patrícia Portela aos seus leitores e espectadores.
É o que acontece com o seu último livro, Dias Úteis, do qual nos leu o primeiro capítulo («Segunda-feira»), que funciona – com o «Prefácio fora de Jogo» e a «Didascália» que o antecedem – como um (muito llansoliano) conjunto de «instruções de leitura» para esta e toda a outra sua escrita, lembrando ao leitor que só vale a pena ler se for para «fazer a diferença», que as palavras são para trabalhar como coisa plástica, transversalmente aos sentidos estabelecidos, e que um livro é sempre uma construção desconcertante nascida de uma imaginação não fantasiosa, mas realmente imaginante e criadora – e que assim, diz também Llansol evocando um dos seus «mestres», Ibn 'Arabî, verdadeiramente «faz conhecer».
Como pendant à leitura de Patrícia Portela, ouvimos também algumas páginas de uma agenda de Maria Gabriela Llansol (de 1989) pelas quais se tornaram ainda mais evidentes alguns paralelos entre as duas autoras: a importância dos «livros dos dias» que ambas escrevem, dias que são «preciosos, não são para apagar-se»; os ritmos e os registos de escrita, com ou sem «verbetes filosóficos» inspiradores, e a sua capacidade de ampliar, fazer vibrar e dar a ver, para além da superfície, os pequenos ou grandes incidentes dos dias, para chegar a interpretações da vida e leituras do mundo e da condição humana com muitos pontos de contacto entre duas agentes da desestabilização do pensamento acomodado, de hábitos cristalizados, de «evidências» nada óbvias.
Deixamos aqui – com a sugestão de leitura paralela com os Dias Úteis, ou O Banquete, de Patrícia Portela (Editorial Caminho, 2017 e 2012) – as seis páginas da Agenda 25 de Maria Gabriela Llansol lidas nesta sessão de «A Luz de Ler»:

8.15 [oito e um quarto]: O Augusto levanta-se e eu angustio-me, porque a manhã ainda não abriu.
11 : Mantenho a chama, dando de comer aos animais.
12 : Se alguém ainda não me telefonou, penso na serenidade.
14 : A tarde eleva-se, eu olho o exterior que neste momento não faz parte de mim própria.
16 : Estive deitada. Trabalhei um pouco na casa, com uma rapidez que me confrange o estômago.
19 : Quem me acompanha, chega.
20 : A noite tem um dos seus maiores jardins aqui.
A minha afinidade com as agendas é grande. Esta é um belo livro dos dias. Os dias são preciosos, não são para apagar-se. Se cada dia fosse um livro, o dia deveria ter uma energia durável. Há dias reflecti sobre o tempo, com uma certa raridade de imagens.  O tempo é belo, estamos sempre envolvidos por ele, e um dos maiores dons que me foi dado é a participação mental na elasticidade física do tempo.
A unidade dos dias foi uma centelha. Jade chega e geme, porque as suas percepções rareiam. Sento-me a escrever com a sensação de não ter mudado de texto.
Há aqui uma sonoridade que não me surpreende.
Atravesso o pinhal com o Augusto para irmos à Senda. Os problemas económicos  inquietam-me destrutivamente.
Regozijo-me sempre quando a noite principia.
Marco esta hora.
Leio Eckhart quando quero estimular o meu próprio pensamento.
Adormeço, o que é raro de manhã, e sonho com a serpente ser.
Transmito o sonho ao Augusto, e alegramo-nos os dois. Passeio rápido através do pinhal, seguindo o Augusto. Anoto o sonho no meu caderno de apontamentos.
Alegro-me com a ideia de que possuo uma agenda, um lugar para guardar a energia dos dias e brincar a escrever no momento filosófico que atravesso. [...]
Horas de doença que se prolonga há uns três dias. Todos os actos que tenho de fazer se prolongam como se nunca mais acabassem.
O ponto fulcral não foi a doença súbita do Jade, doença de velhice que o desorientou, o separou dos quatro sentidos da casa.
Eu tive da L., das pessoas da casa, das conversações filosóficas, muitas provas de amizade, ou seja, de afecto, que é uma palavra que implica um elo. Sinto-me desmunida, levada pelas vagas da cosmogonia que, por vezes, são altas ondas chocantes (chocam-me a mim, não chocam, por exemplo, o A.).
LL optou pela vida e poupa as forças para o esforço enorme que agora lhe traz a vida quotidiana. Está a liquidar o passado, a sua carga é muito grande. No meio de todas estas referências nefastas, materiais, eu procuro discernir o espaço da visão. Aproxima-se uma ida à Bélgica.
Um escritor como eu não tem trabalho. Passa a vida a fiar os seus nadas; uma luz entrou por debaixo da porta e agora, crescendo, concentra toda a minha atenção. Tenho medo do crescimento da luz, que a luz cresça e me leve, e me faça mal. Bonjour – o cão consolador da ausência de Jade – desapareceu. Faço mal em acordar, os sentidos, as sensações adormecidas: todo o meu espaço se torna um plangente tempo de ausência. Começou na ausência de Jade – e cresceu_______ É um tempo bom de muito sofrimento.
A disciplina a que me submeto é extremamente repressiva. O meu companheiro caiu no silêncio, que marca o seu trabalho interior e exterior. Tenho sede de consolação______   e no entanto são-me dados abundantemente os bens da terra. [...]