20.10.13

«TRANS-DIZER»
BALANÇO DAS V JORNADAS LLANSOLIANAS

A Sala da Nau, no Palácio Valenças em Sintra, está pronta para receber os participantes e o público. Os primeiros vêm desta vez dos mais diversos lugares – para além deste país em crise contínua e sem fim à vista, também de Espanha e França, da Alemanha, da Áustria e dos Estados Unidos; e os leitores de Llansol, já conhecidos e desconhecidos, foram este ano mais do que nunca. A grande feira do livro llansoliano, que organizámos pela primeira vez com todas as edições disponíveis, de e sobre Llansol, com a preciosa ajuda da Helena Alves e da Cândida Pargana, esperava por todos. Pequenos grupos conversam, travam conhecimento, preparam os trabalhos dos dois dias de Jornadas. É sábado de manhã, mas a sala enche-se, o ambiente aquece, o encontro pode começar.


Primeira mesa. Manhã de sábado.
Maria Etelvina Santos abre as Jornadas, dá as boas-vindas em nome do Espaço Llansol e apresenta os oradores, em especial a nossa convidada, Profª Ângela Lacerda Nobre, presença assídua desde as nossas primeiras Jornadas, em 2009, e leitora fiel de Llansol. A sua intervenção cruza várias disciplinas e vias possíveis de acesso a um texto como o de Llansol, centradas numa visão holística e numa filosofia prática de inspiração espinosiana, com duas referências maiores: Mikhail Bakhtin (o dialogismo e a heteroglossia) e Michel Henry (e a sua fenomenologia dos afectos).
Antes de Ângela Nobre, João Barrento introduziu o tema das Jornadas na sua tripla perspectiva, glosando amplamente a frase de Maria Gabriela Llansol «O espírito da tradução é o espírito do encontro». Do encontro e também do desencontro produtivo que gera uma terceira coisa – no diálogo com as figuras do seu próprio texto, com os poetas traduzidos e com as linguagens específicas das várias artes que têm transmutado o seu texto em outros idiomas estéticos. Nesta dialéctica de encontro-desencontro, todas as «traduções» e «trans-dicções» do e no texto de Llansol geram objectos a um tempo dependentes e autónomos, nessa zona intermédia e bi-polar a que ela chama o «entresser».
João Barrento lembrou ainda o élan actual de traduções de livros de M. G. Llansol para várias línguas, como bem testemunharam estas Jornadas. A tradução é um factor essencial de inserção de um autor num contexto de «literatura mundial», quase natural num caso como o de M. G. Llansol e dos seus livros, em nada «paroquiais» ou destinados a consumo local e leituras redutoras. Muito pelo contrário, trata-se de uma autora iminentemente universal. Também por isso faz sentido o nosso investimento dos últimos anos, a par da edição nacional, da manutenção da chama viva do seu texto e da divulgação do seu espólio, na expansão da «sobrevida» da sua Obra em outras línguas. E os tradutores, que umas vezes nós próprios incentivamos, e outras vêm ter connosco, são os actantes principais deste projecto. Estiveram nestas Jornadas, a nosso convite, seis tradutores para línguas diversas, o castelhano e o catalão, o francês, o alemão e, pela primeira vez, o inglês. Deste encontro (e já antes dele) nasceram novos projectos que irão tornar ainda mais conhecida e lida a Obra de Maria Gabriela Llansol nos próximos anos. Por exemplo, a primeira tradução para o catalão, a sair em breve, a edição alargada em língua espanhola para a América Latina, por uma interessante editora de Caracas, a Bid & Co (www.bidandco.net), que tem no seu catálogo autores tão especiais como Januchiro Tanizaki, Wislawa Szymborska, Tomas Tranströmer, Akhmatova, Duras ou Musil, e que irá levar Llansol à Venezuela, Argentina e Colômbia. Depois, a difusão, sob a forma original de um «Almanaque Llansol», desta escrita e deste universo, na Áustria e na Alemanha. E finalmente a primeira tradução e edição de um livro de M. G. Llansol nos Estados Unidos, O Livro das Comunidades, que sairá numa editora de Nova Iorque em cujo programa, raro e exigente, Llansol se insere perfeitamente (a Ugly Duckling Presse: www.uglyducklingpresse.org). E há ainda dois livros novos a sair em francês na editora Pagine d'Arte, o Inquérito às Quatro Confidências (já em Novembro) e Onde Vais, Drama-Poesia?, em 2014.
Eis todo um programa para o próximo futuro, que anuncia um novo ciclo e confirma o apelo universal deste Texto. Só por si, isto justifica o tema destas V Jornadas e a presença entre nós de alguns dos tradutores e legentes fiéis de Maria Gabriela Llansol.


A mesa de sábado à tarde – «'A cor e a grafia do A de Rimbaud' - Llansol traduz?» – constituiu um momento vivo de regresso a um sector da Obra de M. G. Llansol ainda muito pouco abordado e aprofundado: as suas «traduções», em particular as de poetas de língua francesa da Modernidade, de Baudelaire a Éluard e Apollinaire. O poeta Nuno Júdice, a Professora Paula Mendes Coelho e Érica Zíngano (doutoranda que investiga este tema no Espaço Llansol) destacaram em especial a prática desviante, de excesso e assimiladora à escrita própria, das versões de Llansol, quer no que respeita à linguagem, quer no gesto único de trazer os próprios poetas traduzidos ao universo figural da sua escrita, como lemos numa anotação de um papel avulso: «Traduzindo – os autores já se tornaram figuras, e eu traduzo como se eles fossem figuras» (Avulso nº 469r).


Os livros novos.
Três livros, três vozes diferentes para os apresentar. O terceiro dos «Livros de Horas», os diários inéditos de Maria Gabriela Llansol com o título Numerosas Linhas, foi ampla e entusiasticamente comentado por Paula Morão (da Faculdade de Letras de Lisboa), leitora e crítica de Llansol desde os anos da primeira trilogia; Paula Cristina Costa (da Universidade Nova de Lisboa) passou em revista os contributos das Jornadas de 2012, reunidos no livro Pessoa e Bach na Casa de Llansol (sétimo volume da colecção «Rio da Escrita», da editora Mariposa Azual); e Ilse Pollack, respondendo a algumas perguntas da moderadora Helena Vieira, esclareceu a ideia, o nascimento progressivo e a concretização dessa original publicação em língua alemã com o título Territorium der Randständigen. Ein Llansol-Almanach ['Nós Herdámos as Margens'. Um almanaque Llansol] o primeiro almanaque com textos extraídos de dezassete livros de M. G. Llansol e muitas fotografias, desenhos, páginas manuscritas, saídas em grande parte do espólio.


O filme A Mulher dos Cinco Elefantes foi visionado apenas em parte, por falta de tempo para o apresentar na íntegra e discutir. Passará para uma das próximas sessões da «Letra E» do Espaço Llansol, já em Novembro.


A manhã de domingo, subordinada ao lema llansoliano «Uma só língua tem falta de palavras», foi um tempo animado a várias vozes e idiomas, com os depoimentos dos seis tradutores presentes sobre o que significa traduzir Llansol para as respectivas línguas: o castelhano e o catalão (Mario Grande e Mercedes Cuesta), o francês (Cristina Isabel de Melo), o alemão (Markus Sahr e Ilse Pollack) e o inglês (Audrey Young). E em seguida discutiram-se, a partir de um texto inédito de M. G. Llansol, as dificuldades, mas também as descobertas, o prazer, as grandezas e misérias desta arte das passagens que é a tradução. Sempre com o entusiasmo de quem lê e traduz Llansol não apenas por dever de ofício, mas sobretudo por prazer e (já) vício...


Da arte da tradução passámos aos «Fios sinestésisos» das diversas artes da «trans-dicção» do texto de Llansol para outras práticas: o desenho, a pintura, a colagem (com Ilda David' e Pedro Proença), a música (com João Madureira), o cinema (com Daniel Ribeiro Duarte). Tivémos este ano oportunidade de ver duas séries de trabalhos de Pedro Proença a partir da Obra de Maria Gabriela Llansol (uma de colagens, outra de desenhos) e de ouvir Ilda David' falar sobre o seu convívio com a Maria Gabriela e o trabalho em curso, uma série de imagens que acompanharão a nova edição de Lisboaleipzig, prevista para 2014, na Assírio & Alvim; vimos alguns planos de filmes do Daniel, que, tal como João Madureira para a música, clarificou os caminhos que levam de um ou mais textos de Llansol às linguagens do cinema ou dos sons.


«Les petits dessins font du plaisir aux lettres» (Caderno 1.01, 85):
A finalizar a série de intervenções da tarde, João Barrento explorou, pela palavra e pela imagem, um terreno ainda virgem dos cadernos de M. G. Llansol: o das passagens múltiplas e surpreendentes entre texto e desenho, caligrafia e figuração, nesses manuscritos, mostrando muitos exemplos que configuram uma possível tipologia dos desenhos de Llansol, que, curiosamente, por mais de uma vez insiste em que não sabe desenhar (mas sabe «qual é a carne da cor e da imagem»). Essa tipologia, que os muitos desenhos vistos evidenciam, vai do petit dessin, apontamento, remate, vinheta, ao desenho proliferante, de página inteira, do desenho que traduz um pensamento («Diminutivos do meu pensamento...», escreve Llansol) às séries de várias páginas nascidas em situações de espera e atenção distraída (reuniões, discussões, encontros), das pequenas narrativas ilustradas aos desenhos irónicos e paródicos, das figurações «construtivistas» ao desenho gestual expressionista e à linha pura.


A tarde encerrou-se com a leitura de poemas traduzidos/transcriados por Maria Gabriela Llansol, escolhidos da Obra de poetas modernos de língua francesa, de Baudelaire e Rimbaud a Verlaine e Rilke, de Pierre Louÿs a Apollinaire e Éluard. Num espectro que deixou ouvir versões mais tradicionais e consensuais e chegou a recriações pessoais e transmutações paródicas de poemas clássicos destes autores, trazendo-os até à mais gritante actualidade. As vozes alternantes da leitura foram as do actor Luís Lucas e da escritora Hélia Correia.


E a noite correu, na «Letra E» do Espaço Llansol, ao sabor da «Ascensão de dez gostos à boca», com o buffet de encerramento nascido do engenho e da arte da Helena Vieira, que nos deliciou com a ementa que se pode ver. O ambiente era de festa, o espírito era o do verdadeiro encontro e da troca, da tradução de afectos em iguarias e vice-versa, como naquela outra festa que Llansol celebra em Um Beijo Dado Mais Tarde, de onde a Maria Etelvina leu passagens como estas:
... Foi um jantar rigoroso, em que o paladar trocava o amor com os alimentos, em que os convivas, abrindo-se ao prazer da boca e do olhar, rememoraram e tornaram presentes as pessoas, nos acontecimentos de ouro de suas vidas (...)
Eu via, no desenrolar dessa ceia, a manifestação dos bens da terra. O conhecimento que traz abundância, a ponto de tornar generosos os homens. O prazer do Amante e a alegria de viver não podiam faltar a um tal festim.
E, na realidade, assim foi...

Para confirmar tudo isto, veja aqui o filme destas Jornadas: