IMPRESSÕES SOBRE
EUROPA EM SOBREIMPRESSÃO
Na apresentação do livro Europa em Sobreimpressão. Llansol e as dobras da História, uma co-edição do Espaço Llansol e Asssírio & Alvim, que decorreu ontem na livraria Assírio & Alvim do Chiado, em Lisboa, o escritor, psiquiatra, antropólogo e perspicaz leitor de Maria Gabriela Llansol, António Vieira, fez uma análise circunstanciada deste livro, de que extraímos algumas passagens (clique nas imagens para aumentar):
O objecto livro
Algumas palavras sobre o método deste livro ousado: depois da introdução geral, seis capítulos divididos em subcapítulos, cada um da responsabilidade de um autor. Quando há uma personagem-chave que forma o eixo de um capítulo, incluem-se no fim textos expressivos dessa mesma personagem em tradução para português. Nas margens das páginas, abrem-se janelas cor de ocre que contêm excertos de Llansol, textos alusivos ou tutelares do que é discutido, oferecidos em contraponto ao texto central e trazendo-lhe referências. Depois do último capítulo aparecem ao leitor três páginas autobiográficas de Maria Gabriela. Ao longo das páginas do livro dispõem-se imagens respeitantes aos temas tratados, incluindo as belas fotografias obtidas (adverte-nos a nota prévia) por Maria Etelvina Santos, em sítios e objectos de Llansol. Por fim, numa bolsa sob a terceira capa, encontra-se um DVD com filmagens de Daniel Ribeiro Duarte sobre diversos trechos de locais por onde andou Maria Gabriela, e sobre personagens que informaram algumas das suas figuras principais (Hölderlin, Nietzsche, Spinoza, místicos e béguines).
Esta sobreimpressão da Europa é uma prodigiosa figura de retórica que concentra os itinerários de escrita de Llansol. Sítios, figuras, ideias e tempos múltiplos do mundo europeu (só Al Halladj é um cometa breve provindo da Ásia) projectam-se numa escrita que os confronta e assimila numa mesma substância, que é o texto torrencial por que se desenrola o pensamento da escritora, ou aquilo que do seu pensamento ela nos quer dar a ver. Porque «preciso que outros vejam o que eu escrevo» (p. 209). Surge-nos assim uma comédia humana (divina, em certos pontos!) cujas personagens transmigram de uns para outros livros – romances, diários, livros de poemas –, suscitando atitudes e olhares insurgentes perante o mundo. Ou seja, a imaginação inventiva da escritora cria mapas e planos onde o espaço, o tempo e a gravitação das ideias no Ocidente se reconfiguram e se oferecem à leitura, à reflexão. Nada, absolutamente nada, nesta Obra literária é unívoco. Não nos movimentamos por um espaço de Euclides, mas por espaços de Riemann imprevistos, que não coincidem com os hábitos dos nossos sentidos nem com a lógica da nossa memória histórica. Grandes constelações de figuras são traçadas, aspectos inéditos do perceber, intuir e sentir do mundo são propostos, uma vez olhados pelo olho de libélula da escritora, e logo projectados na magia da sua escrita, sistema óptico misterioso em que convergem e confluem mil imagens numa só visão, e se suscitam mil ideias, a partir do mesmo olhar intenso, impetuoso e móvel.
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É uma grande fortuna, para um escritor – sobretudo para alguém que escreve: «Prefiro ser aceite pela geração futura a ser completamente aceite pela geração presente» (p. 206) –, que alguém possa, depois da sua morte física, acolher a sua escrita, preservá-la, organizá-la, difundi-la e aprofundá-la como o fazem João Barrento e Etelvina Santos com a Obra de Maria Gabriela. Porque não a dão a dissecar anatomicamente (como numa autópsia exaustiva) a centenas de universitários que a reduzirão a centenas de teses pelo mundo fora, averiguando e reificando todos os seus conteúdos e sentidos até à náusea, numa espécie de arqueologia implacável decidida a tudo explicar sem nada compreender. Nada disso! Os dois, e o grupo que os acompanha, restituem uma Obra extensa e em parte desconhecida, e propõem-nos chaves possíveis para o seu entendimento.
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E, nas páginas finais, em cores sanguíneas, o leitor encontra duas fotos e alguns parágrafos da escrita de Maria Gabriela Llansol, como saídos do Hades para uma visita breve mas clarificadora, pela mão dos que, segundo as palavras oraculares da escritora, «se lembraram de não a deixar morrer» (p. 207). «Abro o dia novo com esta carta aberta, em que a minha própria humanidade me soa a humanidade posta à prova» (p. 209).