OS DIAS DE NOVEMBRO
Nos oitenta anos de Maria Gabriela Llansol
Hoje «faria anos de viva...»,
como a avó Maria, também nascida em Novembro. Quase nunca escreveu nos
cadernos no dia do seu nascimento para a vida, 24 desse mês. A não ser para os
livros que iam nascendo, nascendo de si à distância de si. Mas no ano dos
cinquenta anos, 1981, o caderno 1.11 dá-nos a ler, em «fins de Novembro», esta
passagem que seria acolhida, com variantes, em Um Falcão no Punho:
A minha vida modificou-se, e o meu texto também. Creio que vou passar a
escrever sem esmorecimento, do ponto de vista de Herbais. Há um segundo, um
terceiro, um quarto, um quinto mundo, que poderá traduzir o mundo luzente, o
mundo fulgurante, o mundo desconhecido, o mundo tenaz, o mundo tonitroante. Mas
agora parece-me que deslizo para dentro do mundo mais simples, aquele em que eu
própria me vejo como figura nesta época e, no entanto, como figurante. O tempo
é o actual e a realidade não tem espessura, foi abandonada pelas cenas fulgor
que eram o seu volume; esta é a vida quotidiana dos deuses, de quem falo com
conhecimento de causa, sem já ter qualquer razão para abandoná-los. Ainda bem
que ninguém me chama, me louva, corresponde ao desejo primário com que eu teria
vivido, identificando-me a um pássaro de plumas. Neste aquário de silêncio, eu,
tecido de peixe vermelho, sigo a corrente que me propõe mudar de quotidiano.
Morte, desolação dos homens, compaixão, parece-me que vejo continuamente a
parte padecente do mundo, e um fio de alegria distante... (Caderno 1.11, pp. 233-234, Novembro de 1981).
Herbais, anos 80 |
Neste ano em que se assinalam os seus oitenta anos recolhemos, como dádiva do dia para quem nos
leia, uma outra página, mais tardia, de um dos dossiers dactiloscritos. Nela se concentra o que de essencial há na
escrita e no pensamento de M. G. Llansol: o fulgor da Ideia, a serenidade da sensualidade
e o esbater das fronteiras entre o sensível e o inteligível:
Se eu tivesse uma única
expressão, com sentido perfeito, para dizer a H., dir-lhe-ia: traz-me apenas o pó dourado de tudo o que se concebe; e se eu tivesse apenas uma outra, sem
precedentes, para dizer a A., dir-lhe-ia: a sensualidade a que aspiramos
tem a sua parte de contemplação e de repouso;
e se eu estivesse face ao homem, terceiro e último elo, e o mais forte,
dir-lhe-ia: a sensibilidade não se pensa, embora faça parte do pensamento. (Dossier dactiloscrito nº 8, p. 812,
1988?).
E deixamos algumas imagens e sons que Llansol gostaria de ver e ouvir, uma vez mais: