17.5.11

«PIRANHA»: A GRANDE RAZÃO

Sobre o bailarino e performer brasileiro Wagner Schwartz (actualmente a viver e trabalhar em Paris), escrevi um dia, depois de uma memorável intervenção sua num colóquio llansoliano no Convento da Arrábida (2003), que «um texto se faz gesto e corpo desatando-lhe os nós». Wagner Schwartz (que, à letra, significa «o desafiador do negro», como eu lembrava nesse texto de 2003) regressou, de novo com uma performance a solo, a sós com o prodígio do seu corpo, intitulada «Piranha - Dramaturgia da migração», em 14 de Maio, no 13º Festival da Fábrica (de Movimentos), que decorreu no Teatro Helena Sá e Costa e no Balleteatro Auditório, no Porto.
Estão traçadas as coordenadas de mais uma performance colocada, tal como a anterior, sob o signo de uma epígrafe de Maria Gabriela Llansol, desta vez também de Finita: «Trabalhar a dura matéria, move a língua; viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente sós».


No novo espectáculo de Wagner Schwartz, em que «Piranha é a metáfora de um corpo em reclusão» (lemos no programa), o absolutamente só é o corpo exposto (sob um foco de luz intensa), corpo ex-posto, posto fora-de-si, corpo ex-cesso, corpo ex-tático. Presença energética e vibrátil progressivamente in-suportável, porque é prova viva da intuição de Spinoza (e, depois, também de Llansol) de que «ninguém sabe o que pode um corpo». De facto assim é. Pude constatá-lo, cheio de espanto diante do im-provável, e do medo de que aquele corpo fracassasse.
Tudo se passa num espaço de tempo de tal intensidade que parece estar fora do tempo, apesar da clara progressão no processo de tensão e busca de libertação que sustentam o espasmo contínuo do corpo sitiado. Assim o visionou também Llansol, em situação-limite, em Amigo e Amiga:
«... fragmentos que principiam a pulsar em todos os lados do meu corpo. Sucede-se uma excitação incomunicável»; e «a matéria transforma-se em energia». E, como ainda escreve Llansol, o corpo assim enclausurado no quadrado de luz (negra) que lhe é concedido, transforma-se no «emissor de um estranho de beleza».
O corpo de Wagner nesta performance é levado a zonas impensáveis (porque não alcançáveis pelo pensamento), zonas de risco, de grito, de êxtase, de revolta – e de todos os seus reversos de beleza, ali, diante dos nossos olhos incrédulos, no «desenho íntegro» daquele «corpo-risco» (como diz ainda Llansol num outro livro).


O que vemos é a materialização, num corpo absolutamente só, da violência de todos os processos de mutação, de deslocamento, de migração, forçada ou não, consciente ou não. Estamos na pura, dura, mas também bela, «escarpa da mutação», com tudo o que ela pode conter: «o medo, o frio, o transporte, o corpo dilacerado, a ideia e o sentimento súbitos, as mãos dadas e desavindas______ e todos os seus reversos» (Ardente Texto Joshua).
É este, parece-me, o tema de Piranha, de Wagner Schwartz, numa actuação fulgurante e terrível (porque, sabemos, «todo o Anjo é terrível», e o sublime participa desse terror) do seu «corpo cantante» em que um espírito se faz corpo no corpo, num corpo pleno, pura imanência com alma (a alma, lemos em Spinoza, é a ideia – indissociável – do corpo).
Mas, para chegarmos ainda mais próximo da experiência in-descritível deste espectáculo (anunciado por um breve video, só de palavras feito, como que anunciando, por contraste absoluto, a pura imagem vibrante do corpo, que se segue), para aí chegarmos desafiando os limites da palavra para vislumbrar os abismos da «fenda do desejo» (Artaud), talvez seja necessário recorrer a alguém que, como Friedrich Nietzsche, a quem Llansol chama «homem do livro» e «mestre das imagens e da eternidade» (e do saber do corpo), no Zaratustra, fala do corpo como «a grande razão». No seu transe, em trânsito para regiões a que o entendimento nunca chegará, o corpo-mente-alma de Wagner Schwartz sabe disso, conhece, sem recurso às pequenas razões, a grande razão do seu corpo que, como diz Nietzsche, se supera ao «não dizer Eu, mas fazer Eu».
Piranha é isto: um corpo assediado, bombardeado, metralhado, pelos ruídos digitais ininterruptos que traduzem a violência de uma contemporaneidade insensível, amorfa, sempre-igual e desconhecedora da grande e subtil razão do corpo e da terra e do Eu que a si mesmo se faz – desconhecendo-se. De um corpo em processo de fazer Eu que, sem nada para dizer, tudo diz: mostra-se, expõe-se, transcende-se. Faz-se corpo só, absolutamente só.

João Barrento