SINTRA DISTINGUE MARIA GABRIELA LLANSOL
No acto de assinatura do protocolo entre o Espaço LLansol e a Câmara Municipal de Sintra, realizado ontem (dia em que esta Associação assinala dois anos de existência), foi atribuída a Maria Gabriela Llansol, a título póstumo, a Medalha Municipal (1º grau, ouro), entregue ao presidente da Direcção pelo Vereador da Cultura, Dr. Luís Patrício.
A decisão, tomada já em reunião camarária de 9 de Abril passado, constituiu uma agradável surpresa para todos os presentes. Na ocasião, o presidente da Direcção do Espaço LLansol agradeceu o apoio concedido pelo município de Sintra, e evocou, através de dois excertos dos Cadernos inéditos, Maria Gabriela Llansol, a sua ligação à casa onde agora trabalhamos e ao espaço envolvente, e o seu desejo de que este Lugar não cristalizasse sob a forma de um «museu», mas se «audaciasse» em pensamento:
Este momento, a que o Sr. Presidente Fernando Seara em boa hora quis dar um cunho simbólico, é hora de agradecimento e de evocação. De agradecimento ao Presidente e à Vereação desta Câmara, que souberam compreender a importância da manutenção em Sintra, e na casa que foi a última de Maria Gabriela Llansol, do imenso legado que a escritora nos deixou. E souberam compreendê-la com uma hoje cada vez mais rara consciência dos valores culturais e com uma intuição que Llansol – pouco dada a namoros com os poderes, como sabemos – certamente teria apreciado e sabido reconhecer.
Quando se conhece a Obra e o modo de estar no mundo e de o amplificar de uma escritora tão singular e tão comum como Maria Gabriela Llansol, percebe-se melhor como tudo nela convergia para um centro e para uma periferia (próxima desse centro), focos vitais da sua vida e da sua escrita nos últimos anos, e como o seu olhar e a sua palavra conferiam dimensões universais a esse microuniverso: o centro é esta casa de Sintra, onde agora continuaremos a manter viva, a habitar e a divulgar a sua Obra; a periferia é a envolvência mais próxima, particularmente este Largo da Câmara Velha (onde por nós esperava quando o grupo se reunia em Colares, naquela que baptizou de «Casa da Saudação», sentada ali fora nos degraus da coluna com a esfera armilar, a olhar o Parque da Liberdade e o Castelo dos Mouros, ou inventando sabe-se lá que viagens para o seu texto, sempre de caderno no regaço); e essa periferia do mundo prolongava-se depois pela Volta do Duche, a serpentina verde debruada de grandes árvores por onde tantas vezes ia à Vila Velha, e que lhe oferecia matéria de escrita, de que adiante darei testemunho.
Casa e árvores são, desde os primeiros livros, dois motivos centrais na Obra de Llansol, e duas referências maiores, quer dos livros, quer dos cadernos inéditos, que continuou a escrever desde que, em finais de 1984, se fixou no concelho de Sintra. É deles que, pela voz da escritora, vos quero dar neste momento um breve testemunho, com fragmentos retirados dos cadernos do espólio referentes aos primeiros meses na vila de Sintra, com ligação directa a esta casa da antiga Estalagem da Raposa, que o Município generosamente nos permite manter como lugar de tratamento da herança de Llansol, e à Volta do Duche, que viu nascer, a partir de uma das suas árvores mais majestosas – a que a Maria Gabriela chamou o Grande Maior – um livro-chave do seu percurso, Parasceve. Puzzles e ironias, aquele em que definitivamente se opera a viragem da grande História humana ou da pequena história familiar para o que ela designava de «ordem figural do quotidiano» de uma «geração sem nome».
Nessa ordem, que é afinal a do dia-a-dia de cada um de nós, viveu também ela, entre «casas de escrita» – em Lisboa, Lovaina, Jodoigne, Herbais, Colares, Sintra – cujo futuro, que é este nosso presente, Llansol não desejava que fosse a de mero museu, e aquilo a que chama num dos Cadernos os «Estudos Gerais das Árvores», uma das escolas da grande comunidade dos Vivos com que dialogava e que colocava à altura da do humano.
Permitam-me então que, neste espírito, vos leia dois pequenos excertos dos seus Cadernos, indelevelmente ligados a esta casa e a esta terra, e escritos poucos meses depois da mudança para a Estalagem da Raposa, onde no dia 3 de Março se despediu de nós. E peço-vos, caro Dr. Luís Patrício, amigos, que os entendam como sinal de gratidão, por interposta voz, da própria escritora cuja Obra a vossa decisão ajuda a perpetuar com o gesto de assinatura deste protocolo.
29 Janeiro 1995
A estante das árvores olha para mim. Estou sentada na Volta do Duche, próximo do monumento a Gregório Rafael Silva d'Almeida _____ foi o Amigo Maior e mais desinteressado dos pobres — diz o livro em que uma mulher ensina a ler.
Procuro não ver os automóveis — somente a estante das árvores, que coincide com o bosque dos livros. Que deleitosa serenidade em ser mais velha, e poder tratar com bondade e disciplina as emoções [!].
Tenho sempre um encontro aos domingos de manhã. Esse encontro não foi possível realizar hoje,
fiquei igualmente feliz com a fonte, o verde geral das árvores, o caminho.
Fui aos Estudos Gerais das Árvores, e encontrei o todo resplandecente em cada uma delas,
nem lhes propus que mudassem de lugar
porque elas não quereriam. Preferem que o pensamento venha a elas — o pensamento filosófico — nesse instante ——— porque é esse o olhar com que as olho. Transmito-lhes o que penso, o que sei, o que li, ofereço-lhes a minha Casa — a minha casa de Sintra muito se parece com a de Herbais.
Uma única diferença [:]
não é a memória, o corte vertical no tempo, que a faz resplender _______ ela já resplende aqui _____ será um lugar para ser habitado para sempre pela alegria que sinto hoje _____ a alegria do mundo
com que me introduzi neste texto.
(do Caderno 41, 1995)
arrumo bem a estante do meu quarto________ e recebo a energia dos livros que estão nela__________
Gostaria de ter uma casa imensa_______ para expor meus pensamentos e objectos_______ o meu olhar sobre a realidade que se transforma: este é o meu quarto de Sintra, o meu quarto velado à luz da vela ________ e hoje arrumei melhor a estante dos livros_______ e parti dela.
Olho e volto a olhar, consigo um olhar novo – o sentido dos livros vivos desperta em mim a partir da estante. Trabalhasse eu mil horas por dia, e reteria sempre mais trabalho _______ deve ser de haver múltiplos seres em mim com o desejo de continuar-me e acabar-me...
________ abri a porta da casa de escrever, e entrei nela; estava vazia; abri a porta da casa de escrever que estava dentro da casa de escrever – estava vazia; passeei-me à entrada da casa de escrever que havia nessa segunda casa, e senti que o meu objectivo era ficar – ficar muito para além da terra cujas ondas de beleza ressoam ainda na praia aos meus ouvidos. As casas estavam gastas por nascerem sempre umas dentro das outras como crianças surdas. A Casa da Saudação estava mais além, na fímbria do bosque, fora deste jogo exemplar de casas dentro de casas, olhos dentro de olhos olhando sempre para o mesmo lugar desabitado.
[...]
A casa grande, enorme, que conteria os perdidos – os objectos, cenas da minha vida –, os encontrados e as transformações, sendo uma casa real, seria estática – um Museu. Sendo um pensamento, encontraremos um lugar para viver. A única condição é o pensamento poder «audaciar-se», exprimir-se em obra que fique em toda a parte _______
(Do Caderno 43, 1995)
Também nós faremos tudo o que pudermos e soubermos para corresponder a este apelo e ao generoso apoio da C. M. de Sintra, através das actividades que desenvolveremos no concelho com vista a manter vivo o nome de Maria Gabriela Llansol e o espírito da sua Obra.
Muito obrigado, Dr. Luís Patrício.
Obrigado a quantos nos quiseram acompanhar neste dia simbólico em que se completam exactamente dois anos sobre o registo de baptismo do Espaço Llansol. E agora convidamos todos os que o desejem a visitar a nossa «casa de escrita» e de trabalho, aqui mesmo ao lado.
A decisão, tomada já em reunião camarária de 9 de Abril passado, constituiu uma agradável surpresa para todos os presentes. Na ocasião, o presidente da Direcção do Espaço LLansol agradeceu o apoio concedido pelo município de Sintra, e evocou, através de dois excertos dos Cadernos inéditos, Maria Gabriela Llansol, a sua ligação à casa onde agora trabalhamos e ao espaço envolvente, e o seu desejo de que este Lugar não cristalizasse sob a forma de um «museu», mas se «audaciasse» em pensamento:
A CASA DA ESCRITA E A ESTANTE DAS ÁRVORES
Este momento, a que o Sr. Presidente Fernando Seara em boa hora quis dar um cunho simbólico, é hora de agradecimento e de evocação. De agradecimento ao Presidente e à Vereação desta Câmara, que souberam compreender a importância da manutenção em Sintra, e na casa que foi a última de Maria Gabriela Llansol, do imenso legado que a escritora nos deixou. E souberam compreendê-la com uma hoje cada vez mais rara consciência dos valores culturais e com uma intuição que Llansol – pouco dada a namoros com os poderes, como sabemos – certamente teria apreciado e sabido reconhecer.
Quando se conhece a Obra e o modo de estar no mundo e de o amplificar de uma escritora tão singular e tão comum como Maria Gabriela Llansol, percebe-se melhor como tudo nela convergia para um centro e para uma periferia (próxima desse centro), focos vitais da sua vida e da sua escrita nos últimos anos, e como o seu olhar e a sua palavra conferiam dimensões universais a esse microuniverso: o centro é esta casa de Sintra, onde agora continuaremos a manter viva, a habitar e a divulgar a sua Obra; a periferia é a envolvência mais próxima, particularmente este Largo da Câmara Velha (onde por nós esperava quando o grupo se reunia em Colares, naquela que baptizou de «Casa da Saudação», sentada ali fora nos degraus da coluna com a esfera armilar, a olhar o Parque da Liberdade e o Castelo dos Mouros, ou inventando sabe-se lá que viagens para o seu texto, sempre de caderno no regaço); e essa periferia do mundo prolongava-se depois pela Volta do Duche, a serpentina verde debruada de grandes árvores por onde tantas vezes ia à Vila Velha, e que lhe oferecia matéria de escrita, de que adiante darei testemunho.
Casa e árvores são, desde os primeiros livros, dois motivos centrais na Obra de Llansol, e duas referências maiores, quer dos livros, quer dos cadernos inéditos, que continuou a escrever desde que, em finais de 1984, se fixou no concelho de Sintra. É deles que, pela voz da escritora, vos quero dar neste momento um breve testemunho, com fragmentos retirados dos cadernos do espólio referentes aos primeiros meses na vila de Sintra, com ligação directa a esta casa da antiga Estalagem da Raposa, que o Município generosamente nos permite manter como lugar de tratamento da herança de Llansol, e à Volta do Duche, que viu nascer, a partir de uma das suas árvores mais majestosas – a que a Maria Gabriela chamou o Grande Maior – um livro-chave do seu percurso, Parasceve. Puzzles e ironias, aquele em que definitivamente se opera a viragem da grande História humana ou da pequena história familiar para o que ela designava de «ordem figural do quotidiano» de uma «geração sem nome».
Nessa ordem, que é afinal a do dia-a-dia de cada um de nós, viveu também ela, entre «casas de escrita» – em Lisboa, Lovaina, Jodoigne, Herbais, Colares, Sintra – cujo futuro, que é este nosso presente, Llansol não desejava que fosse a de mero museu, e aquilo a que chama num dos Cadernos os «Estudos Gerais das Árvores», uma das escolas da grande comunidade dos Vivos com que dialogava e que colocava à altura da do humano.
Permitam-me então que, neste espírito, vos leia dois pequenos excertos dos seus Cadernos, indelevelmente ligados a esta casa e a esta terra, e escritos poucos meses depois da mudança para a Estalagem da Raposa, onde no dia 3 de Março se despediu de nós. E peço-vos, caro Dr. Luís Patrício, amigos, que os entendam como sinal de gratidão, por interposta voz, da própria escritora cuja Obra a vossa decisão ajuda a perpetuar com o gesto de assinatura deste protocolo.
29 Janeiro 1995
A estante das árvores olha para mim. Estou sentada na Volta do Duche, próximo do monumento a Gregório Rafael Silva d'Almeida _____ foi o Amigo Maior e mais desinteressado dos pobres — diz o livro em que uma mulher ensina a ler.
Procuro não ver os automóveis — somente a estante das árvores, que coincide com o bosque dos livros. Que deleitosa serenidade em ser mais velha, e poder tratar com bondade e disciplina as emoções [!].
Tenho sempre um encontro aos domingos de manhã. Esse encontro não foi possível realizar hoje,
fiquei igualmente feliz com a fonte, o verde geral das árvores, o caminho.
Fui aos Estudos Gerais das Árvores, e encontrei o todo resplandecente em cada uma delas,
nem lhes propus que mudassem de lugar
porque elas não quereriam. Preferem que o pensamento venha a elas — o pensamento filosófico — nesse instante ——— porque é esse o olhar com que as olho. Transmito-lhes o que penso, o que sei, o que li, ofereço-lhes a minha Casa — a minha casa de Sintra muito se parece com a de Herbais.
Uma única diferença [:]
não é a memória, o corte vertical no tempo, que a faz resplender _______ ela já resplende aqui _____ será um lugar para ser habitado para sempre pela alegria que sinto hoje _____ a alegria do mundo
com que me introduzi neste texto.
(do Caderno 41, 1995)
arrumo bem a estante do meu quarto________ e recebo a energia dos livros que estão nela__________
Gostaria de ter uma casa imensa_______ para expor meus pensamentos e objectos_______ o meu olhar sobre a realidade que se transforma: este é o meu quarto de Sintra, o meu quarto velado à luz da vela ________ e hoje arrumei melhor a estante dos livros_______ e parti dela.
Olho e volto a olhar, consigo um olhar novo – o sentido dos livros vivos desperta em mim a partir da estante. Trabalhasse eu mil horas por dia, e reteria sempre mais trabalho _______ deve ser de haver múltiplos seres em mim com o desejo de continuar-me e acabar-me...
________ abri a porta da casa de escrever, e entrei nela; estava vazia; abri a porta da casa de escrever que estava dentro da casa de escrever – estava vazia; passeei-me à entrada da casa de escrever que havia nessa segunda casa, e senti que o meu objectivo era ficar – ficar muito para além da terra cujas ondas de beleza ressoam ainda na praia aos meus ouvidos. As casas estavam gastas por nascerem sempre umas dentro das outras como crianças surdas. A Casa da Saudação estava mais além, na fímbria do bosque, fora deste jogo exemplar de casas dentro de casas, olhos dentro de olhos olhando sempre para o mesmo lugar desabitado.
[...]
A casa grande, enorme, que conteria os perdidos – os objectos, cenas da minha vida –, os encontrados e as transformações, sendo uma casa real, seria estática – um Museu. Sendo um pensamento, encontraremos um lugar para viver. A única condição é o pensamento poder «audaciar-se», exprimir-se em obra que fique em toda a parte _______
(Do Caderno 43, 1995)
Também nós faremos tudo o que pudermos e soubermos para corresponder a este apelo e ao generoso apoio da C. M. de Sintra, através das actividades que desenvolveremos no concelho com vista a manter vivo o nome de Maria Gabriela Llansol e o espírito da sua Obra.
Muito obrigado, Dr. Luís Patrício.
Obrigado a quantos nos quiseram acompanhar neste dia simbólico em que se completam exactamente dois anos sobre o registo de baptismo do Espaço Llansol. E agora convidamos todos os que o desejem a visitar a nossa «casa de escrita» e de trabalho, aqui mesmo ao lado.