20.9.08

MELISSA MODERNA – E DE SEMPRE

No exílio da Bélgica, em Jodoigne e Herbais, Maria Gabriela Llansol tinha muitos gatos.


Em Sintra, nos últimos anos, era só Melissa, a gata de pêlo macio e farto, branco-e-amarelo, olhar doce, que a Maria Gabriela sempre viu e tratou como ser inteligente e superior. Nunca se aproximou muito do comum dos mortais, quero dizer, daqueles que, a partir de um certo momento, visitavam a casa e acompanhavam a Maria Gabriela. O primeiro dia – melhor, noite – em que senti que Melissa me aceitou e falou foi na noite em que Augusto Joaquim nos morreu. Nos morreu é a expressão certa, porque o Augusto já era nosso havia algum tempo, e porque, literalmente, nos morreu ali, na cama nova que eu montara, serenamente, sem dramas – a mim, à Maria Gabriela, à Vina e à gata. Melissa, que até aí disparava como uma seta pelo corredor fora assim que entrávamos, para se refugiar na cozinha ou mesmo no telhado, nessa noite chegou-se, mansa, e deixou que lhe tocasse pela primeira vez.

(Se as quiser ver melhor, clique na imagem)

Mas só se tornaria verdadeiramente sociável na fase de doença da Maria Gabriela, e sobretudo nos meses que se seguiram à sua passagem, quando nos esgotávamos a desarrumar- arrumar-desarrumar a casa e nos espantávamos com a descoberta progressiva do espólio. Aí, Melissa rondava, olhava, falava, conversava mesmo, oferecia-se, exigia atenção. Que de todos recebia, até mais do que quando estava sozinha com a dona. Agora vive em feliz relação de facto com Emily Duncan, pequena dama arisca, vestida de preto-e-branco, e que já deve ter aprendido com a mais circunspecta Melissa alguma sabedoria de vida.
Um destes dias, Melissa e Emily D. receberam visitas, três de uma vez, no seu novo domicílio de Janas. Todos pequenos, todos curiosos, todos atenção.


E um deles, o Leonardo, de 3 anos, sem que ninguém lho pedisse, pediu lápis de cor e deixou no papel um redemoinho, formas dinâmicas e cores justas, o olhar de Melissa, o corpo-novelo de Melissa, o registo pictórico intuitivo e centrifugado de Melissa, a evocar a escrita das essências e o movimento do olhar que transforma imagens reais em figuras potenciadas e vibráteis nos textos de Llansol. Chamou-lhe simplesmente «Melissa», e o resultado foi este:


Uma Melissa «moderna» — estatuto que Llansol não reclamava para si, mas que um dia descobriu que se ajustava a Melissa, e fixou-o nesta «estância» de O Começo de Um Livro é Precioso (Assírio & Alvim, 2003):

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Os olhos que se lhe abrem de manhã saem

Rapidamente para o telhado e para os sons

Que, imagino, escuta pela abertura das pupilas.

Os extremos da rua, onde nunca foi, dizem-lhe,

Todavia, que alguém passa para ela, Melissa,

Não para mim, para ela, com o som cadenciado

Dos sinos actuais, já modernos. E tropeço.

Moderno é um termo que me intriga, que briga

Comigo, que não se torna compreensível,

Nem no limiar dos sinos. Tomo-o por uma

Abstracção indecisa, um prazo que trai um

Evento futuro sem, contudo, o espelhar. Em suma,

Pouco se distingue das extremidades da rua

Onde nunca foi. É uma palavra irresponsável,

Sem resposta para o antes, o decurso e o depois.

E, quando assim concluo, Melissa é moderna,

Actualiza, obriga-me a descer à rua inquirir

De visu o que, desde então, se alterou.


J.B.