NOVO ANO, NOVA CASA
Esta página faz hoje um ano, exactamente no momento em que, ao cabo de quatro meses de trabalhos de toda a ordem, concluímos a remodelação da nova sede do Espaço Llansol em Sintra, que manteremos com o generoso apoio da Câmara Municipal.
Por enquanto, esta página continuará a ser a nossa janela para o mundo, meio de informação sobre todas as nossas actividades e iniciativas, e espaço de publicação, quer de textos inéditos de Maria Gabriela Llansol, quer de contributos que iluminem o seu universo.
Para assinalar a data e fazer a festa, abrimo-vos as portas da nova/nossa/vossa casa, e convidamo-vos a entrar.
Por enquanto, esta página continuará a ser a nossa janela para o mundo, meio de informação sobre todas as nossas actividades e iniciativas, e espaço de publicação, quer de textos inéditos de Maria Gabriela Llansol, quer de contributos que iluminem o seu universo.
Para assinalar a data e fazer a festa, abrimo-vos as portas da nova/nossa/vossa casa, e convidamo-vos a entrar.
Esta casa, como as outras que acolheram Maria Gabriela Llansol desde pequena – na Rua Domingos Sequeira em Lisboa, em Alpedrinha, em Lovaina, em Jodoigne, em Herbais, em Colares – foi sobretudo uma casa de escrita. Agora passará a ser o lugar que tornará a escrita, os documentos, as imagens e os objectos que nos foram legados coisa viva e disponível, num processo que já começou e se prolongará por alguns anos. O espírito que nos anima é aquele que a Maria Gabriela deixou expresso em muitas páginas dos seus livros, e também dos Cadernos inéditos que estamos a tratar. Páginas como estas:
Mas uma casa sem ninguém é como um terreno sem cultura.
(Contos do Mal Errante)
— Podeis utilizar esta casa — disse a Ibn’ Arabi — como mundo aberto. Eu sentia-a em vias de dirigir-se para os seus fins, ou de retroceder às suas origens.
... quando tudo por mim for abandonando (penso na morte), haverá objectos que, em outras casas que os herdarem, chamarão alguém a seu destino.
(Finita)
Esta casa, nos meus olhos que recolhem o último detalhe com a consciência do primeiro momento mais além, fez-se sempre de uma totalidade, e muitíssimas parcelas; a totalidade era a luz, caminho envolvente quando eu descansava aqui; essa luz tinha uma individualidade física tão doce que eu não sentia nenhuma distância entre mim e o que a escrita louvava...
(O Raio sobre o Lápis)
Na casa enorme,
O simultâneo cria sempre mais espaço...
(O Começo de um Livro é Precioso)
Esta moradia de leitura foi edificada sobre a Casa da Saudação. Os tempos sucedem-se aos tempos, o tempo alimenta-se dos tempos...
(Os Cantores de Leitura)
Estou bem onde escrevi; estou melhor onde hei-de escrever; o presente é este movimento que se dirige para duas portas opostas e as abre, de escuro a claro, para o mesmo lugar onde já se acende a centelha que ondulará, finalmente, à mais ligeira aragem.
(Caderno 22, Praia Grande, 29 Julho 1986)
________ abri a porta da casa de escrever, e entrei nela; estava vazia; abri a porta da casa de escrever que estava dentro da casa de escrever – estava vazia; passeei-me à entrada da casa de escrever que havia nessa segunda casa, e senti que o meu objectivo era ficar – ficar muito para além da terra cujas ondas de beleza ressoam ainda na praia aos meus ouvidos.
A casa grande, enorme, que conteria os perdidos – os objectos, cenas da minha vida –, os encontrados e as transformações, sendo uma casa real, seria estática – um Museu. Sendo um pensamento, encontraremos um lugar para viver. A única condição é o pensamento poder «audaciar-se», exprimir-se em obra que fique em toda a parte _______
(Caderno 43, 1995)
Destes excertos quero reter hoje o último, neste momento em que a Casa está pronta para acolher a preparação de tudo o que possa gerar movimento em torno do texto, o trabalho no espólio e todos aqueles que se interessam ou venham a interessar-se pela Obra de Llansol, a passada e a futura. Este Espaço nunca será um museu, apesar de termos mantido viva numa parte dele a atmosfera de vida e de escrita de Maria Gabriela Llansol. Esta Casa quer, acima de tudo, continuar a ser um pensamento, um projecto vivo, «audaciar-se» em novos voos a partir do Texto de Llansol.
Como o daquele pássaro jovem que, há dias, quando nos ocupávamos dos retoques finais, me surpreendeu, dentro da casa, com o seu voo rasante e aparentemente sem norte. Mas nesse momento, sem que ele o soubesse, achei que o seu norte (que acabou por reencontrar, no ar de onde viera) era a nossa bússola. Eram 10 horas da manhã, e por isso o baptizei de «Falcão matutino». Constatei, ao tê-lo por algum tempo no punho, que não era falcão, muito menos o falcão peregrino que povoa alguns textos de Maria Gabriela Llansol, nomeadamente Lisboaleipzig, associado à Figura de Aossê/Pessoa. Ainda assim, mantenho o nome, e deixo aqui o registo desse incidente prodigioso e do seu rasto, agora que o Falcão que nos veio anunciar a continuidade do espírito da mutação já voa novamente, livre, nos céus de Sintra:
O «Falcão matutino» no punho
«Foi como uma seta despedida sobre a minha cabeça – a «consciência azul» da sala em devir –, para parar na ilusória transparência da janela. Deixou-se cair e ficou no chão, atrás do pote de porcelana azul e branco, à espera da minha mão, os olhos ainda semicerrados, ou abertos de medo e súplica, o antracite das penas brilhando, as garras casadas com a carne dos meus dedos, sem querer separar-se. Acolheu-o um punho que nunca conhecera falcão, e que subitamente passou a ser, por instantes, poiso e casa desta ave vinda não se sabe de que ovo, iluminando a sala para nela deixar o sinal, a certeza de que este lugar será de pensamento e criação e mutação. E voltou a partir para o azul de onde viera.
Que destino me ligava, nos ligava, a esta aparição acidental, marcada para o encontro inesperado? Que poderes a trouxeram, ave jovem em crescimento, a este lugar em transformação, a esta Casa crescendo?
Não há sentido para os sinais. O seu Há é apenas o do caminho que mostram.»
Dois dias antes dera num dos Cadernos do espólio com uma série de dezasseis cartas a Ana sobre «O sonho de ler ou de estar voando»:
Que destino me ligava, nos ligava, a esta aparição acidental, marcada para o encontro inesperado? Que poderes a trouxeram, ave jovem em crescimento, a este lugar em transformação, a esta Casa crescendo?
Não há sentido para os sinais. O seu Há é apenas o do caminho que mostram.»
Dois dias antes dera num dos Cadernos do espólio com uma série de dezasseis cartas a Ana sobre «O sonho de ler ou de estar voando»:
1ª carta
Se o azul pertence ao céu, pertencia também à consciência azul de que ia voltar a ver voar a ave: escreveu-me Ana no instante em que se fechou no sonho de ler, ou de estar voando.
[...]
8ª carta
lerás quem é «a consciência azul».
9ª carta
Leste que a consciência azul é o falcão peregrino
10ª carta
… a prumo na tua mão. Que treme, por ser [uma] outra ave, que hei-de lançar no seu voo.
[...]
(Caderno 28, 1988)
J. B.
DOS LEGENTES
O TEMPO SOB A FORMA DE LUGAR
— São 365 dias, Gabriela, mas tu ensinaste-nos o tempo da simultaneidade.
Não posso ter a veleidade de imaginar o texto que a Maria Gabriela faria sair hoje do seu punho, para incluirmos aqui neste espaço, como marca da passagem destes dias ou ano, ou mesmo se acharia relevante registar esse acontecimento. Talvez nos dissesse que o importante era continuarmos a nossa presença aqui ou noutro lugar, desde que mantivessemos o diálogo e o fizessemos crescer e irradiar, com prudência mas decididamente. Sem concessões, mas como dádiva. Como troca verdadeira. Face ao tempo cronológico, penso que teria o desejo de evocar de novo o tempo da simultaneidade, o que permitiu o encontro de Bach e Aossê, o da aliança dos semelhantes, o que emerge de todo o contrato de mútua não-anulação. Provavelmente (quase adivinho o seu ar sereno de mulher de muitos anos, como já gostava de se ver), diria que o mais importante é que há muito, muito ainda para fazer até que à liberdade de consciência se venha juntar o dom poético, e que para isso não podemos pensar só no tempo de uma vida.
É assim que penso hoje quando penso em ti, Maria Gabriela, e no teu Texto. Nos milhares de páginas que nos deixaste nas mãos, para tomar conta e trazer à luz — «até que as letras brilhem». É por isso que, pensando no tempo cronológico de um ano de blog, o vejo como um ínfimo, e sinto vontade de convidar os que nos lêem a revisitar esse outro tempo da simultaneidade, e a olhá-lo sobreimpresso no novo Lugar que temos vindo a construir, lugar para o qual já não terias corpo físico, mas que nos deixaste antever n' Os Cantores de Leitura — seja a casa última da Reconstituição ou a primeira do Pinhal, ou agora a sem-nome, será a Casa, e dela aqui deixo uma imagem de leitura.
É assim que penso hoje quando penso em ti, Maria Gabriela, e no teu Texto. Nos milhares de páginas que nos deixaste nas mãos, para tomar conta e trazer à luz — «até que as letras brilhem». É por isso que, pensando no tempo cronológico de um ano de blog, o vejo como um ínfimo, e sinto vontade de convidar os que nos lêem a revisitar esse outro tempo da simultaneidade, e a olhá-lo sobreimpresso no novo Lugar que temos vindo a construir, lugar para o qual já não terias corpo físico, mas que nos deixaste antever n' Os Cantores de Leitura — seja a casa última da Reconstituição ou a primeira do Pinhal, ou agora a sem-nome, será a Casa, e dela aqui deixo uma imagem de leitura.
Maria Etelvina Santos
No primeiro aniversário do blogue Espaço Llansol, eu gostaria de pegar num dos textos da Maria Gabriela que mais gosto me dá a ler, e que é O Jogo da Liberdade da Alma. Porque creio que este blogue tem conseguido, além de toda a informação e atenção que dá ao que vai surgindo e acontecendo à volta do nome e da Obra de Maria Gabriela Llansol, acarinhar o Texto llansoliano, tal como este foi sendo moldado e reflectido pela Maria Gabriela.
Neste livro, sob o signo de Spinoza, vemos a expressão do desejo de textualizar como tornar o amor infinito (p.9), para além (diria Nietzsche) das fronteiras do visível e perecível, e à medida que vamos lendo, vamos encontrando um pensamento que se tece sobre a relação entre escrita e música, norteada pela mútua afecção de que os corpos são capazes (Spinoza), na construção humilde e desprendida, da noção de texto infinito e amante:
Neste livro, sob o signo de Spinoza, vemos a expressão do desejo de textualizar como tornar o amor infinito (p.9), para além (diria Nietzsche) das fronteiras do visível e perecível, e à medida que vamos lendo, vamos encontrando um pensamento que se tece sobre a relação entre escrita e música, norteada pela mútua afecção de que os corpos são capazes (Spinoza), na construção humilde e desprendida, da noção de texto infinito e amante:
_____________ aprendi com a linguagem de Hallâj […]
que o invisível, quando se sensualiza, abre à linguagem caminhos que o narrativo obliterou com a tampa do piano, os muros baixos do real, as ténues paredes da vida
que, chegado a esse ponto, o por escrever tem uma visibilidade sem fim que, por isso, a nova linguagem é fácil, e se reproduz por si mesma, contendo em si o próprio princípio de existir
que é querer continuar a viver sem que o grau da vida degenere, […]
que o caderno não é o escrevente do texto
mas o lugar onde o texto aprende a materialidade do lugar por onde corre.
No entanto, o texto é livre, e anterior a si mesmo, e posterior a si mesmo_______
a substância narrando-se,
diria Spinoza.
(JLA, pp. 11-12)
Cristiana Vasconcelos Rodrigues