MARIA GABRIELA LLANSOL
Como uma pedra-pássaro que voa
Como uma pedra-pássaro que voa
1.
Dificilmente encontraremos palavras mais adequadas para falar de Llansol do que as escolhidas por Augusto Joaquim. Falava do texto, ao compará-lo a «uma pedra-pássaro que voa»; mas o mesmo poderia dizer de Maria Gabriela, esse «ser indómito e realista, sem traço de presunção no carácter e na escrita», como também testemunhava.
Era uma «rocha frágil», como diz João Barrento a propósito dessa mulher que se via com um raio de sol preso à borda da saia, como ela própria sugere no seu último livro Os Cantores de Leitura.
Caracterizam-na palavras como força, rectidão, persistência, dádiva. Era tudo menos vulgar. Nunca vi um ser mais livre nem mais necessitado de amor. Era improvável, no sentido em que Augusto Joaquim definia o seu texto — sem prova, mas abrindo ao gosto. Lembro-me da firmeza do seu andar, do modo determinado com que segurava o saco onde punha livros e cadernos, uma agenda grande, uma garrafa de água, óculos, lápis, canetas de usar e deitar fora. Era sólida. Tinha peso e era leve. Às vezes, parecia trazer o saco muito pesado e entregava-o a um de nós, assim que nos aproximavamos. Mas também me lembro de a ver andar muito ligeira, apenas com uma pequena mochila azul às costas. Nesses dias, quase saltitava. Tinha consigo tudo o que precisava para o passeio. Seria capaz de dançar. Caminhava à nossa frente, e parecia a mais leve, a mais nova, a mais decidida, a mais voluntariosa.
De uma inteligência arguta e instinto quase animal, podia ser repentina e brusca, quando o sofrimento, sem avisar, batia forte (lembro-me de a ver assim, no dia em que soubemos que o Augusto estava gravemente doente); mas também de uma inteligência sensível, serena e comedida, quando uma dor já anunciada, entrava porta dentro (como no dia da morte do Augusto, em que permaneceu, sem lágrimas, de pé firme, ao seu lado, durante toda a noite). O «inesperado» que ela valorizava era o que provocava o maravilhamento, não o repentino ou o imprevisto que a fazia alterar planos ou encontros marcados. Detestava não estar preparada para qualquer acontecimento.
Também nunca desmarcava um encontro ou o alterava para mais tarde, nem gostava que o fizéssemos — se éramos vários, como nos encontros do nosso grupo de estudos (o «GELL»), quem não podia, não vinha, e o encontro fazia-se com quem estava; encontrávamo-la quase sempre já na rua, à nossa espera — penso que saía de casa antes da hora marcada porque gostava de antecipar, visualizando, o dia a passar na companhia de outros, e de saborear sozinha o encontro (embora já o tivesse preparado cuidadosamente na véspera, anotando num caderno o que era preciso não esquecer); sentava-se num degrau do pequeno monumento do Largo, junto à Câmara Velha, em Sintra, a dois passos da sua casa, com um caderno nos joelhos, a escrever. Por isso, era para aí que dirigíamos o olhar, quando chegávamos, pois era quase certo que já lá estava. Não como quem espera, mas esperando-nos. Hoje tenho muita pena de nunca ter registado, em imagem, um desses momentos, mas era algo que não estava nos nossos hábitos — a Maria Gabriela não gostava que lhe tirassem fotografias, e todos respeitávamos isso com muita naturalidade. A excepção era, todos os anos, em Junho ou Julho, o piquenique que fazíamos na «Clareira de Parasceve», na Serra de Sintra, onde passávamos o dia rodeados de cestos de verga e toalhas coloridas abertas no chão. Era sempre um dia precioso para a Maria Gabriela, e gostava que o planeássemos com o mesmo cuidado com que preparávamos os textos a apresentar nos encontros de trabalho. Era um dia igualmente importante e sempre muito alegre. Despreocupado e cheio de ensinamentos, que cada um percebia, ao chegar a casa, ter recolhido sem saber como.
Se marcava encontro com uma só pessoa, para passear e conversar, e gostava muito de o fazer, sabíamos que a sua desilusão seria grande em caso de impedimento, mas não voltava para casa, esquecendo as horas que seriam do encontro, antes as transformava noutro acontecimento, usufruindo do lugar escolhido e do tempo disponível. Ainda há dias, ao passar por um dos Cadernos inéditos, pude confirmar isso numa anotação do dia 29 de Janeiro de 1995. Dizia assim:
«Tenho sempre um encontro aos domingos de manhã. Esse encontro não foi possível realizar hoje,
fiquei igualmente feliz com a fonte, o verde geral das árvores, o caminho».
Era uma «rocha frágil», como diz João Barrento a propósito dessa mulher que se via com um raio de sol preso à borda da saia, como ela própria sugere no seu último livro Os Cantores de Leitura.
Caracterizam-na palavras como força, rectidão, persistência, dádiva. Era tudo menos vulgar. Nunca vi um ser mais livre nem mais necessitado de amor. Era improvável, no sentido em que Augusto Joaquim definia o seu texto — sem prova, mas abrindo ao gosto. Lembro-me da firmeza do seu andar, do modo determinado com que segurava o saco onde punha livros e cadernos, uma agenda grande, uma garrafa de água, óculos, lápis, canetas de usar e deitar fora. Era sólida. Tinha peso e era leve. Às vezes, parecia trazer o saco muito pesado e entregava-o a um de nós, assim que nos aproximavamos. Mas também me lembro de a ver andar muito ligeira, apenas com uma pequena mochila azul às costas. Nesses dias, quase saltitava. Tinha consigo tudo o que precisava para o passeio. Seria capaz de dançar. Caminhava à nossa frente, e parecia a mais leve, a mais nova, a mais decidida, a mais voluntariosa.
De uma inteligência arguta e instinto quase animal, podia ser repentina e brusca, quando o sofrimento, sem avisar, batia forte (lembro-me de a ver assim, no dia em que soubemos que o Augusto estava gravemente doente); mas também de uma inteligência sensível, serena e comedida, quando uma dor já anunciada, entrava porta dentro (como no dia da morte do Augusto, em que permaneceu, sem lágrimas, de pé firme, ao seu lado, durante toda a noite). O «inesperado» que ela valorizava era o que provocava o maravilhamento, não o repentino ou o imprevisto que a fazia alterar planos ou encontros marcados. Detestava não estar preparada para qualquer acontecimento.
Também nunca desmarcava um encontro ou o alterava para mais tarde, nem gostava que o fizéssemos — se éramos vários, como nos encontros do nosso grupo de estudos (o «GELL»), quem não podia, não vinha, e o encontro fazia-se com quem estava; encontrávamo-la quase sempre já na rua, à nossa espera — penso que saía de casa antes da hora marcada porque gostava de antecipar, visualizando, o dia a passar na companhia de outros, e de saborear sozinha o encontro (embora já o tivesse preparado cuidadosamente na véspera, anotando num caderno o que era preciso não esquecer); sentava-se num degrau do pequeno monumento do Largo, junto à Câmara Velha, em Sintra, a dois passos da sua casa, com um caderno nos joelhos, a escrever. Por isso, era para aí que dirigíamos o olhar, quando chegávamos, pois era quase certo que já lá estava. Não como quem espera, mas esperando-nos. Hoje tenho muita pena de nunca ter registado, em imagem, um desses momentos, mas era algo que não estava nos nossos hábitos — a Maria Gabriela não gostava que lhe tirassem fotografias, e todos respeitávamos isso com muita naturalidade. A excepção era, todos os anos, em Junho ou Julho, o piquenique que fazíamos na «Clareira de Parasceve», na Serra de Sintra, onde passávamos o dia rodeados de cestos de verga e toalhas coloridas abertas no chão. Era sempre um dia precioso para a Maria Gabriela, e gostava que o planeássemos com o mesmo cuidado com que preparávamos os textos a apresentar nos encontros de trabalho. Era um dia igualmente importante e sempre muito alegre. Despreocupado e cheio de ensinamentos, que cada um percebia, ao chegar a casa, ter recolhido sem saber como.
Se marcava encontro com uma só pessoa, para passear e conversar, e gostava muito de o fazer, sabíamos que a sua desilusão seria grande em caso de impedimento, mas não voltava para casa, esquecendo as horas que seriam do encontro, antes as transformava noutro acontecimento, usufruindo do lugar escolhido e do tempo disponível. Ainda há dias, ao passar por um dos Cadernos inéditos, pude confirmar isso numa anotação do dia 29 de Janeiro de 1995. Dizia assim:
«Tenho sempre um encontro aos domingos de manhã. Esse encontro não foi possível realizar hoje,
fiquei igualmente feliz com a fonte, o verde geral das árvores, o caminho».
2.
Acordava muito cedo, ainda de madrugada, entre as cinco e as seis da manhã, e escrevia durante uma ou duas horas, por vezes mais. Depois, voltava a deitar-se, dormia mais um pouco, mas nunca se levantava tarde. Gostava de ir para a rua usufruir da manhã, de comprar o jornal e alguns alimentos básicos, de preferência biológicos, de andar a pé se o tempo permitia, encontrar-se com alguém, se combinado, ou apanhar o comboio e ir a Lisboa — antes de adoecer, ia pelo menos uma vez por semana —, gostava muito de passear pelas ruas de Campo de Ourique, onde vivera, passar no Jardim da Parada, sentar-se debaixo de uma árvore, escrever. Por vezes ia ao cinema, encontrava-se com uma amiga, ia ver uma exposição. Mas escrevia sempre, em todos os caminhos, nos cadernos que levava sempre consigo. Regressava a casa ao final da tarde, de comboio, e não se importava de ir e vir sozinha.
Como dizia o Augusto, do que ela precisava era de «matéria figural» para transformar, embora ultimamente já não fosse assim. Não conseguiu lidar com a única coisa que nunca conhecera — a doença — e que surgiu como ela não gostava que nada acontecesse, de modo imprevisto e repentino.
Quando a fragilidade se começou a acentuar cada vez mais, passou a precisar de falar todos os dias ao telefone com alguém amigo, antes de se deitar, para poder dormir com alguma tranquilidade. Hábitos que, durante a vida de Augusto Joaquim, não se faziam sentir, já que ele estava sempre ali, «do outro lado do corredor».
Como dizia o Augusto, do que ela precisava era de «matéria figural» para transformar, embora ultimamente já não fosse assim. Não conseguiu lidar com a única coisa que nunca conhecera — a doença — e que surgiu como ela não gostava que nada acontecesse, de modo imprevisto e repentino.
Quando a fragilidade se começou a acentuar cada vez mais, passou a precisar de falar todos os dias ao telefone com alguém amigo, antes de se deitar, para poder dormir com alguma tranquilidade. Hábitos que, durante a vida de Augusto Joaquim, não se faziam sentir, já que ele estava sempre ali, «do outro lado do corredor».
3.
4.
5.
Se, por vezes, era impossível não reparar na Maria Gabriela quando passava na rua, pelo modo singular como combinava as cores e tecidos do seu vestuário, o que resultava numa sobriedade rara, ousada e nunca triste, ou pelo olhar longo e atento que levantava para as árvores, noutros momentos também podia passar despercebida, quase igual a toda a gente. De personalidade forte e determinada, seria incapaz de correr atrás de modas, mas não lhe era indiferente o modo como se penteava
— «eu hei-de envelhecer de cabelo branco e puxado para cima» — ou o vestuário que escolhia de modo diferente consoante ficava em casa ou ia para a rua (ela própria conta que, nos tempos da Bélgica, era quando ficava em casa a trabalhar /escrever, que escolhia com mais cuidado o que vestir, decidindo de véspera o que ia usar). Gostava de olhar os vestidos, pendurados no vão da janela, prontos para o corpo que os ia vestir no dia seguinte. Não sei o que acontecia no seu pensamento enquanto os olhava, mas imagino-o desdobrando-se em imagens, orientando-se para aquilo a que poderíamos chamar um pensamento imagético.
4.
Atenciosa com quem lhe dirigia a palavra, de trato simples com os mais simples, era, no entanto, intransigente com os que consideram plantas e animais como seres inferiores. Deixou-nos a certeza de ser absolutamente urgente rever o conceito de «humano».
5.
Recolhida no silêncio da sua casa, mas também disponível para o leitor desconhecido que lhe telefonava, ou escrevia, dizendo que gostaria de a conhecer (sei de alguns que chegaram até ela desse modo). Se estava na presença de alguém que tinha dificuldade em expressar o que sentia, era, nesses momentos, de uma generosidade surpreendente, emprestando as suas palavras a quem precisava delas.
De uma grande dádiva quando sentia que era amada; felina quando percebia que a abordavam com uma qualquer forma de interesse ou vulgaridade. Do mesmo modo, era de uma amizade profunda com os amigos, mas largava-os se a feriam nas suas convicções mais profundas ou se, mesmo inadvertidamente, tentavam afastá-la dos seus propósitos. O que, às vezes, podia parecer injusto, era um modo de preservar a sua força, não a deixando diminuir, para poder continuar no sentido da justeza, tal como escolhera. Como o seu mestre Spinoza (era assim que gostava de pronunciar o nome do filósofo, por isso usava a grafia francesa), fugia rapidamente do que pudesse diminuir a sua vontade de agir, invadindo-a de um sentimento de tristeza. Era a alegria que sempre procurava, porque sabia que era o júbilo que queria pôr na escrita e que era com ele que queria escrever. Do mesmo modo, deixava que se fossem afastando os que, por algum motivo pessoal, sentiam a sua presença como castradora — fazia-os perceber que deviam escolher o seu próprio caminho. Mas, quando isso acontecia, era como se ela própria não estivesse à espera, e sofria com esse afastamento. Era essa a sua maneira de pôr em prática a liberdade de consciência, que tanto prezava. Nessas situações, raramente voltava atrás, mas não por rigidez ou teimosia, antes por convicção — não era obstinada, pois sabia ouvir a opinião dos outros e, não raras vezes, mudava a sua. Só era intransigente com a falta de amor. Por isso, era capaz de ter amigos muito diferentes, desde que o afecto fosse uma constante nas suas vidas. Não fazia qualquer distinção entre eles, no sentido de valorizar mais uns do que outros; mas sabíamos que as conversas que, individualmente, tinha com cada um, eram bem diferentes — confidências, leituras, passeios, sabiam escolher os seus companheiros e interlocutores. E alguns ficaram para sempre.
De uma grande dádiva quando sentia que era amada; felina quando percebia que a abordavam com uma qualquer forma de interesse ou vulgaridade. Do mesmo modo, era de uma amizade profunda com os amigos, mas largava-os se a feriam nas suas convicções mais profundas ou se, mesmo inadvertidamente, tentavam afastá-la dos seus propósitos. O que, às vezes, podia parecer injusto, era um modo de preservar a sua força, não a deixando diminuir, para poder continuar no sentido da justeza, tal como escolhera. Como o seu mestre Spinoza (era assim que gostava de pronunciar o nome do filósofo, por isso usava a grafia francesa), fugia rapidamente do que pudesse diminuir a sua vontade de agir, invadindo-a de um sentimento de tristeza. Era a alegria que sempre procurava, porque sabia que era o júbilo que queria pôr na escrita e que era com ele que queria escrever. Do mesmo modo, deixava que se fossem afastando os que, por algum motivo pessoal, sentiam a sua presença como castradora — fazia-os perceber que deviam escolher o seu próprio caminho. Mas, quando isso acontecia, era como se ela própria não estivesse à espera, e sofria com esse afastamento. Era essa a sua maneira de pôr em prática a liberdade de consciência, que tanto prezava. Nessas situações, raramente voltava atrás, mas não por rigidez ou teimosia, antes por convicção — não era obstinada, pois sabia ouvir a opinião dos outros e, não raras vezes, mudava a sua. Só era intransigente com a falta de amor. Por isso, era capaz de ter amigos muito diferentes, desde que o afecto fosse uma constante nas suas vidas. Não fazia qualquer distinção entre eles, no sentido de valorizar mais uns do que outros; mas sabíamos que as conversas que, individualmente, tinha com cada um, eram bem diferentes — confidências, leituras, passeios, sabiam escolher os seus companheiros e interlocutores. E alguns ficaram para sempre.
6.
Acreditava, incondicionalmente, na força das palavras e na capacidade que elas têm de fazer repensar o mundo e de o orientar para uma forma esteticamente mais bela; mas não viveu criando utopias, conhecia bem o chão que pisava e sabia que o poder e a ambição encontram sempre maneira de corromper os mais puros. Quis apenas mostrar um modo de viver melhor; para cada um a sua escolha, mas sempre no sentido de fazer crescer, ainda que individualmente, a nossa capacidade de nos deslumbrarmos com a beleza das cores e das formas — a isso chamava santidade, e queria apenas dizer que era algo de muito luminoso e capaz de alegria. Exercitava na vida e na escrita essa prática, não como qualquer forma de misticismo, mas como uma prática quotidiana da atenção. Atenção a todos os pormenores, para transformar o mais ínfimo sinal de desolação num possível objecto estético: por isso os cacos de um vaso que se partia se transformavam, antes de ir para o lixo, no «pregueamento dos cacos» — e depois de juntar as palavras que o diziam e faziam ver desse modo, aquele incidente ganhava a capacidade de se metamorfosear de tristeza em alegria. É por isso que ainda continuo a achar estranho que alguns lhe chamem hermética, mística ou inacessível. Não sei do que andam à procura nos seus livros, que tanto lhes turva os olhos e não os deixa ver o mais simples.
7.
Penso que a Maria Gabriela, como pessoa e como escritora, seguiu os ensinamentos de Maria Amélia (a criada jovem, analfabeta mas sábia, que foi como que uma segunda mãe), o de ir à procura daquilo em que se acredita – a outra lição da Maria Amélia terá sido o Amor, incondicionalmente, sem ressentimentos, como dádiva –, um ensinamento que ela repetia pondo-o em prática: «Menina, não diga que não existe, procure onde está». Llansol agiu sempre desse modo, indo à procura, por isso foi capaz de repensar a noção de «invisível», que era para ela, não uma parte do visível, a oculta, que se procura desocultar, mas a sua dobra, um outro modo que também existe e cuja condição não é a de «ser visível» (o que é diferente de «ser invisível», sendo que este tem um carácter negativo que não existe se o virmos como «a dobra do visível»). São estes pensamentos que nos fazem ficar a olhar demoradamente o seu texto. Ao contrário, para quem procura ler rapidamente e clarificar tudo, encontrar informação escavando mais e mais, este texto não serve, porque ele não se constrói com informação mas com intensidades – mostra tudo, desde que se leia e veja intensamente; é só preciso olhar com atenção, ir «à procura», em busca (como fez Proust), sem pressas, movimentando-se no texto, em vez de (passe a expressão) o esburacar. Mas é isso que é difícil, saber prescindir do supérfluo, mudar de olhar, fazer um melhor uso do nosso tempo.
Alguns não perdoam que ela tenha tido a persistência de lutar contra «os mesmos lugares à mesa», o status quo do romance dito realista. E falam de «seita» em relação aos que a lêem. Dizem não saber o que é isso de ser «legente» (que ela preferia a «leitor»), porque nunca pensaram que, com certos textos, a melhor maneira de conjugar o verbo ler é usá-lo no gerúndio, sem cansaço de leitura. E isto é sério e grave, principalmente dentro das universidades. Mas não é por aí que quero continuar.
Alguns não perdoam que ela tenha tido a persistência de lutar contra «os mesmos lugares à mesa», o status quo do romance dito realista. E falam de «seita» em relação aos que a lêem. Dizem não saber o que é isso de ser «legente» (que ela preferia a «leitor»), porque nunca pensaram que, com certos textos, a melhor maneira de conjugar o verbo ler é usá-lo no gerúndio, sem cansaço de leitura. E isto é sério e grave, principalmente dentro das universidades. Mas não é por aí que quero continuar.
8.
Dou muita importância a uma frase, que aparece no começo de Parasceve, porque me parece ser a melhor maneira de anular a discórdia entre os que gostam e os que não gostam de Llansol (porque alguns não gostam logo à partida, mesmo antes de a lerem). O facto de Llansol incluir na sua obra alguns místicos por quem tem apreço, de fazer deles figuras, como tantas outras da sua obra (e isso ocorreu até mais nas primeiras trilogias), isso não significa que ela se veja como uma encarnação deles, como alguns gostam de insinuar; assim como o facto de gostar de acender uma vela (para iluminar o texto, como dizia, ou para ver nessa luz a presença dele, ou simplesmente porque gostava dessa forma de luz), não significa que se sentisse dentro de um templo ou em adoração a um qualquer deus. Muito teríamos, então, hoje, que dizer da «moda» das velas por tudo e por nada dentro das nossas casas, mercadoria que nos querem vender «porque se usa», que vai com l'air du temps, ainda que algumas surjam aos nossos olhos com formas inauditas, cheiros às vezes insuportáveis, cores que nunca saberemos como nomear. Será isso uma forma de misticismo na nossa sociedade de consumo? A frase a que me refiro atrás é a seguinte: «transpor para a consciência quotidiana o que, durante séculos, fora atribuído ao êxtase» – não encontro melhor para definição daquilo que esteve sempre no horizonte de Llansol e da sua escrita. Quem não quiser, que não veja. Foi sempre, e é, esse o seu fascínio, aquilo que afasta uns e agarra outros – a capacidade de falar do quotidiano, daquilo que todos conhecemos, de um modo desconhecido. Com ela, com a sua obra, não há meio termo, ou se ama ou se detesta, ou se fica, ou se foge (quase) para sempre. A escolha é nossa, claro.
9.
Mas, voltando à Maria Gabriela e ao seu modo de estar no mundo.
Há uma passagem no livro Um Beijo Dado Mais Tarde, que talvez seja das mais esclarecedoras relativamente ao modo como ela se via no mundo: diz-se [a Témia] que «uma lamparina de azeite nunca se apaga. É uma luz que realiza sempre a função da luz – extrair objectos iluminados dos objectos apagados». Associo sempre esta lamparina à importância da luz no seu texto e também a ela própria, talvez porque a Maria Gabriela me contou, uma vez, que se via, desde muito pequena, com uma candeia na mão, a abrir caminho na frente de outros. E isto acontecia como uma espécie de sonho recorrente (sonho que pode até ter acontecido). A importância que ela dava a este facto era enorme, mas não porque se sentisse superior aos outros; era, sim, com um grande sentido de responsabilidade que o recordava e que o aceitava como destinação. Se era isso que chamava por ela, o querer abrir caminho, era para isso que viveria e escreveria. E assim aconteceu. Não como missão, mas como um modo de vida igual a qualquer outro. Lastimava aqueles «a quem nada chama», que passam pela vida queimando os dias. Ao contrário, os que sentem um apelo e têm capacidade de decisão (qualidade que a Maria Gabriela muito apreciava), vão atrás do seu sonho, seguem o que consideram ser um «pensamento verdadeiro», acreditam nele incondicionalmente, definem-no como a sua «causa amante», agem com determinação, e vão em frente. Foi isso que ela fez. Com a imensa sorte de ter encontrado Augusto Joaquim, também ele de uma grande generosidade e determinado, se necessário, a abdicar da sua obra em favor da dela. E, infelizmente para ele e para todos nós, foi necessário abdicar. Salvou-se a dela. Os dois previram e aceitaram tudo, como um «ambo». Só não contaram com a decisão das Parcas, de o levar primeiro a ele, doze anos mais novo.
Há uma passagem no livro Um Beijo Dado Mais Tarde, que talvez seja das mais esclarecedoras relativamente ao modo como ela se via no mundo: diz-se [a Témia] que «uma lamparina de azeite nunca se apaga. É uma luz que realiza sempre a função da luz – extrair objectos iluminados dos objectos apagados». Associo sempre esta lamparina à importância da luz no seu texto e também a ela própria, talvez porque a Maria Gabriela me contou, uma vez, que se via, desde muito pequena, com uma candeia na mão, a abrir caminho na frente de outros. E isto acontecia como uma espécie de sonho recorrente (sonho que pode até ter acontecido). A importância que ela dava a este facto era enorme, mas não porque se sentisse superior aos outros; era, sim, com um grande sentido de responsabilidade que o recordava e que o aceitava como destinação. Se era isso que chamava por ela, o querer abrir caminho, era para isso que viveria e escreveria. E assim aconteceu. Não como missão, mas como um modo de vida igual a qualquer outro. Lastimava aqueles «a quem nada chama», que passam pela vida queimando os dias. Ao contrário, os que sentem um apelo e têm capacidade de decisão (qualidade que a Maria Gabriela muito apreciava), vão atrás do seu sonho, seguem o que consideram ser um «pensamento verdadeiro», acreditam nele incondicionalmente, definem-no como a sua «causa amante», agem com determinação, e vão em frente. Foi isso que ela fez. Com a imensa sorte de ter encontrado Augusto Joaquim, também ele de uma grande generosidade e determinado, se necessário, a abdicar da sua obra em favor da dela. E, infelizmente para ele e para todos nós, foi necessário abdicar. Salvou-se a dela. Os dois previram e aceitaram tudo, como um «ambo». Só não contaram com a decisão das Parcas, de o levar primeiro a ele, doze anos mais novo.
10.
Se me pedissem para escolher uma das suas figuras, para falar de Maria Gabriela Llansol, eu diria: o jardim triangular de Herbais. Esse, que o pensamento permite. São muitas as passagens, no seu texto, onde essa figura aparece. Aí confluem, e se põe em prática, a justiça e a desordem, o sossego e a inquietação, o húmus necessário para que a leitura faça crescer e o mundo avance.
Foi desse modo que a Maria Gabriela decidiu viver. Como deixou escrito em duas linhas de Lisboaleipzig1. O encontro inesperado do diverso:
«Post scriptum: Através de mim, os animais assumiram melhor a sua condição humana. Eu não fiz senão correr através do mundo, e assumi, como pude, a minha condição animal. Começou a vibrar um grande arco em que espalhei a justiça e a desordem __________»
Foi desse modo que a Maria Gabriela decidiu viver. Como deixou escrito em duas linhas de Lisboaleipzig1. O encontro inesperado do diverso:
«Post scriptum: Através de mim, os animais assumiram melhor a sua condição humana. Eu não fiz senão correr através do mundo, e assumi, como pude, a minha condição animal. Começou a vibrar um grande arco em que espalhei a justiça e a desordem __________»
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Estas anotações foram escritas ao sabor das horas, de modo não sistemático, como quem liga fios que a memória vai tecendo. Surgiram como resposta à vontade de reconstituir uma imagem de Maria Gabriela Llansol, do seu universo e da sua vida, solicitado pela realizadora Cláudia Tomaz, neste momento a preparar um filme que dará a ver aspectos desse universo e da escrita-vida de Llansol.
Que dizer mais, se quase tudo ficará por dizer? O melhor será mesmo continuar a ler Llansol – talvez «pouco, mas infinitamente» – porque, não sendo o seu texto autobiográfico, toda a sua vida está lá.