5.12.07


A VIBRAÇÃO DO SILÊNCIO

Sobre filmes de Vera Mantero e Miguel Gonçalves Mendes
feitos a partir da Obra de M. G. Llansol
e apresentados em 3 e 4 de Novembro no



Take 1

O Texto e o Corpo

Dois nomes lêem o Texto llansoliano, em momentos diversos de um só acto de leitura: a descoberta dos lugares a filmar e a sua montagem num filme que os dá a ver. Por «Lugar» queremos dizer, dentro do espírito do Texto de Maria Gabriela Llansol, uma imagem-que-vai-adiante, ou seja, algo que atrai e prende o nosso olhar/corpo, que acontece sem espaço nem tempo, mas tem corpo de Acontecer e assim nos enleva, sem nada prometer («________ o texto é sem promessa e sem garantia», lê-se em
Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 188).


Do ponto de vista de quem vê o filme projectado na tela, a descoberta dos lugares, que faz surgir a matéria do filme, é uma experiência de leitura conjunta, próxima do espírito llansoliano — ler em Llansol é um acto de partilha entre vozes e olhares diferentes, quase nunca consonantes, mas permeáveis. Já a fase da montagem do filme parece quebrar este acto de permuta, deixando surgir dois filmes que marcam sobretudo a distância entre as personalidades de Mantero e Gonçalves Mendes. E no momento em que os dois filmes são projectados e mostram uma mesma matéria, ora ao serviço de um narcisismo um pouco mais desregrado (Vera Mantero), ora ao serviço de um olhar mais documental documental (Miguel Gonçalves Mendes), estamos perante duas leituras de costas voltadas entre si. Ver dois filmes montados a partir de uma matéria fílmica comum ter-nos-ia dado uma experiência insólita e única de como os olhares de um só acto de leitura se cruzam, ainda dentro do espírito de permuta e partilha a que convida o Texto de Maria Gabriela Llansol.

O olhar narcísico de Vera Mantero perturba, ao pretender «encenar» o Texto, recriando a figura da «mulher que não queria ter filhos de seu ventre» (O Livro das Comunidades, p. 11), mas com isso a fazer-se «centro de cena», impondo à Voz textual a sua própria voz — um narcisismo análogo ao que se viu na encenação recente, por André E. Teodósio, da ópera Metanoite, baseada no texto de Llansol, com libreto de João Barrento e música de João Madureira. O olhar documental de Miguel Gonçalves Mendes aproxima-se do Texto de forma mais contida, guardando uma distância que o deixa respirar no seu mistério e expressividade imensos, sem contudo se deixar enlevar pelo seu Lugar – ou seja, o que sobressai é o exercício de montagem e de manipulação de uma matéria fílmica belíssima, particularmente quando já a conhecemos do filme anterior, assinado por Mantero.

Ainda assim, a matéria dos filmes tem uma força expressiva e uma beleza tais, que nos convidam a abrir o olhar às imagens e a ponderá-las nesta abertura — como as ilustrações de Ilda David nos livros de Llansol nos convidam a fazer. Na redescoberta dos lugares do Texto llansoliano em algumas destas imagens, dá vontade de as deixar pairar, como, afinal, paira o Texto llansoliano, sem antes nem depois, mas sempre-adiante, fugazes e intensas.

A paisagem de vento, as árvores, a folhagem, a casa, o interior da casa, os corpos em movimento, os gestos da escrita e da leitura, o corpo a correr, o corpo disperso por corpos-outros, o fogo e a água: estes são alguns dos elementos dos filmes que se associam ao Texto de Maria Gabriela Llansol como uma sua ilustração mimética. Este mimetismo do Texto é o que dá às imagens dos filmes a sua força expressiva, e nesse sentido elas são felizes, concretizam as dobras do Texto, a sua pluralidade de vozes e de corpos movendo-se e relacionando-se, sem querer saber para-onde. Alguns momentos são especialmente fortes e belos no dar-corpo de imagem visual ao Texto e à Imagem de que este é capaz: as crianças a escrever «em fúria»; a corrida no bosque; os corpos pendurados na árvore; a mão-que-escreve; o fogo sobre as águas correndo…

Mas encontramos nos filmes também a expressão de uma angústia (mais presente no filme de Vera Mantero do que no de Miguel Gonçalves Mendes) que é inexistente no Texto llansoliano. Esta angústia exprime-se nas imagens de animais mortos, violentados, quando o corpo se enrola sobre si mesmo ou se movimenta por espasmos, quando o olhar e a voz parecem buscar o que não têm. O semblante llansoliano, se é sem-expressão, é por estar sem posse, é por não se impor, mas não por estar em carência. Esta expressão da angústia está longe da Obra de Llansol e do seu convite à libertação jubilosa de tudo o que tolhe e oprime.

O difícil exercício de um fazer-com (no lugar do fazer-sobre), encontra-se na matéria de que são feitos ambos os filmes, mercê de um acto conjunto de leitura dos textos de Maria Gabriela Llansol. Algumas das imagens geradas desse acto são ímpares, respiram beleza e dão a ver o texto improvável de Maria Gabriela Llansol. Essa dádiva é preciosa.

Cristiana Vasconcelos Rodrigues


Take 2


1.

Uma mulher, uma casa, crianças que ela não quer ensinar, mas deixar que cresçam, mostrando-lhes o mundo: o que está aí e o que parece não estar aí, porque só existe na dobra.
Todos existem e aprendem a viver numa dupla «província pedagógica»: vivem a casa – na escrita / na cópia, na leitura, no jogo – e percorrem o mundo, derramam-se nele – na terra e nas árvores, no vento e na água, nos animais e nas plantas... Descobrem o corpo, semeiam futuro (num eterno retorno do mútuo), entram em consonância com a vibração do mundo, o que os envolve e o que trazem em si.
A mulher é presença-pivot, mais do que guiar emite sinais, é corpo de experiência que interage com o corpo-de-natureza das crianças (que em certos planos é também o seu), disponível, maleável, generoso, aberto – à escrita/cópia num frenesi por vezes excessivo, à sementeira, à fusão com os troncos das árvores ou as folhas do chão, aos ritmos, à música, ao apelo da terra.
Esta primeira experiência feita sobre a matéria do texto de Llansol por Vera Mantero é nervosa e vibrátil, investe mais no movimento do que na concentração, e afecta com isso a pele das cenas e da sua transição, e a beleza estética do conjunto, que no entanto emerge repetidas vezes em vários planos de grande beleza, mas menos serenidade.

2.

Um homem nu, ao piano (evocando o começo de
O Jogo da Liberdade da Alma e passagens de Amigo e Amiga) ou em espaços abertos mais ou menos imponderáveis, segue o rasto de uma mulher que segue o rasto de um homem desaparecido: «aquelesser». O que ele/ela buscam é reconstituir a sombra de uma presença-ausência, de uma ausência presente que partiu. Para um mundo que, desconhecido, se sabe que é aquele «para onde irei». A busca tem uma finalidade, que abre para dois sentidos possíveis e complementares, consoante se ouve da boca dos adultos ou das crianças: «quero saber mais do mundo para onde irei...» A única maneira de o saber, insuficiente, incerta, tacteante, e que por isso justifica a busca, é seguir o rasto – os traços de carácter e de acção de «aquelesser», la trace, o rosto e a assinatura – deixado nas coisas por esse ser que partiu. Na experiência de Miguel Gonçalves Mendes, a ambiência resulta mais nostálgica, o ritmo respira uma maior serenidade. A linha de desenvolvimento é mais clara, menos dispersa: é a da decepação da memória da morte pelo júbilo e pelo fulgor.
E do júbilo e do fulgor de uma beleza por vezes cortante das imagens e das sequências vivem estas duas experiências, até hoje ímpares, realizadas em sobreimpressão com o texto de Maria Gabriela Llansol.

João Barrento


(As fotos são de Margarida Ribeiro e vêm da rodagem dos filmes,
que os autores intitularam «Curso de Silêncio».
A sequência completa pode ser vista aqui.
Alguns fotogramas dos filmes aqui.)