25.7.07

LLANSOL E O GRANDE PRÉMIO
DE ROMANCE E NOVELA DA APE


No passado dia 7 de Julho foi entregue a Maria Gabriela Llansol (representada por João Barrento) o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, atribuído ao livro Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004.


Na ocasião, a Espaço Llansol organizou na Fundação Calouste Gulbenkian uma exposição e venda dos livros da autora e das suas próprias edições:



O porta-voz do Júri – constituído por Ana Mafalda Leite, Cristina Robalo Cordeiro (que votou em Cemitério de Pianos, de José Luís Peixoto), Fernando Pinto do Amaral (que votou em A Ronda da Noite, de Agustina Bessa-Luís), Luís Mourão (porta-voz do Júri, que também se tem pronunciado sobre o livro aqui) e Silvina Rodrigues Lopes – leu na cerimónia de entrega o seguinte texto:

Parei longos meses na fotografia que antecede o primeiro capítulo de Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004. É uma cena fulgor aberta no sorriso de Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim. Um sorriso andando, alheio à pose. Uma imagem que é já texto, não porque seja parte de qualquer álbum de memórias mas porque convoca o trajecto sem repouso de uma obra absolutamente singular. Nos enredos desse andamento, os posfácios de Augusto Joaquim tornaram mais clara uma espécie de dupla vertente da escrita de Llansol. Primeiro, a recolha e transfiguração de uma experiência do comum, mas em que o vivido comparece sem os traços vulgares dos decalques realistas. Não se pretende um real reconhecível na sua legibilidade imediata, a falsidade de um conhecimento de apropriação, mas o encontro do diverso ou da diferença que cada ser ou situação comporta, aquilo que o vivo tem como potência de sentido e que é a tarefa e a aventura de existirmos. As exigências colocadas por esta aventura inscrevem-se numa demanda filosófica que parte do quadro emancipatório da modernidade mas que recusa a entropia eco-sociocultural da modernidade tardia. Daí uma segunda vertente, que convoca para um mesmo plano de imanência, e como forças que o intensificam e fazem devir, nomes da convulsão e da abertura da história, nomes como Müntzer, Bach, João da Cruz, Pessoa, mas também a ervilha, a árvore, o cão, qualquer um, qualquer coisa, o movimento de qualquer um e qualquer coisa em cada momento de permanência do universo. Nos longos meses em que me demorei junto dessa fotografia, duas frases me atiraram para a leitura. Pertencem a um livro anterior, Inquérito às Quatro Confidências, e a sua força deriva da sua extrema exigência. "Escrevo sem romantismo, sem drama e sem consolação" (p. 69). Como pode sustentar-se uma escrita assim quando tem de enfrentar-se com o que este curso de silêncio virá a chamar de “a maior experiência de dor de uma mulher resistente” (p. 25)? E como pode uma tal experiência de dor deixar intacto esse outro pensamento de Inquérito às Quatro Confidências segundo o qual "o homem não dispõe de corpo para imaginar o universo, os fins últimos e as razões primeiras, mas (…) está aqui, // caminhando no há que há" (p. 60)? Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004 é um romance que, perante si mesmo, se coloca numa postura particularmente exigente face à responsabilidade de um percurso anterior de descoberta. É como que um teste involuntário, mas em todo o caso um teste, e radical, acerca das possibilidades de a escrita poder de facto colher “o que da dor advém como beleza” (p. 186). Ou se quisermos colocar as coisas num outro plano, é um teste acerca das possibilidades de a escrita poder continuar a ser vida fazendo-se mesmo “em certas circunstâncias de terrível abandono ao irremediável” (p. 55). O que desde logo se torna evidente ao lermos este Curso é que ele é a longa resposta a um golpe, a uma dor enunciada de formas diversas mas remetendo todas para um mesmo acontecimento, que é de ordem pessoal mas também textual: trata-se agora de “compor um texto sem a tua presença ao lado” (p. 16). Mas pessoa singular e texto convergem de forma não menos evidente na responsabilidade e autoridade de uma bio-grafia. Como sempre, aliás, na obra de Llansol, e sempre, também, segundo o mesmo princípio: “falo indirectamente do que seria menos inteligível se falasse directamente” (p. 23). Sem qualquer pathos sentimental ou pretensão de transcendência, Amigo e Amiga cria a vida pós-dor. Há um longo confronto com aquilo que nos processos de luto, e na própria existência humana enquanto luto, Deleuze chamou os “afectos tristes”. Mas a dimensão narcísica do sentimento da ofensa e da revolta sem projecto de devir cedem aos ensinamentos do Curso, à construção das “imagens curativas”, que não são cristalizações de um processo defensivo mas energia que permite “permanecer no inseguro” (p. 14), que é outra forma de dizer o “caminhar no há que há”. As múltiplas figuras deste Curso, algumas vindas de romances anteriores, constroem a aliança entre o que perdura, o que muda subitamente de sentido e o que emerge para a restante vida. A todas acolhe o silêncio, aquilo que preserva o texto e o existir da banalidade sufocante, aquilo que reconduz a ética da literatura — ou de qualquer outra tarefa — ao seu lugar de invenção de uma realidade que se mede apenas pela capacidade de devirmos dentro dela aquilo que de nós próprios desconhecíamos. O que também se pode dizer de um outro modo: “Que este seja o jardim que a ausência permite” (p. 177). Agora estou parado há longos dias sobre o livro fechado. Começo a perceber que há alguma coisa que devia começar a ser dita, mas não tenho ainda as palavras. Qualquer coisa que começasse a dizer que Amigo e Amiga é um romance de amor tal como o amor pode ser vivido por humanos que escrevem e lêem a vida assim. Segundo um curso de silêncio que, de alguma forma, permitiu toda a obra anterior de Llansol. Mas não tenho ainda as palavras. Não tenho.


© Maria Inês Almeida

Maria Gabriela LLansol enviou o seguinte texto de agradecimento, que foi lido por João Barrento:

© Maria Inês Almeida

Queria falar-vos a partir do livro Amigo e Amiga, hoje aqui festejado. Queria contar-vos, com todo o afecto, que logo a seguir a este escrevi outro livro, ainda inédito, a que dei o nome Os Cantores de Leitura. Fala da entoação da leitura, do seu canto e da aprendizagem de ler e escrever como música. Entre o ler e o cantar o lido fica um espaço, algo enigmático, de meditação. Sei que tenho um dom – o humilde dom de escrever.
Ao saber que eu tinha recebido o vosso prémio – o que muito me regozija –, um dos cantores voltou-se para mim dentro do livro e interrogou-me:
– Porquê um prémio? Uma recompensa não é resposta para um dom.
– Porque eu sou humana e os humanos tendem para a prática de actos visíveis. Eles são visíveis. Eu sou visível.
Ele insistiu:
– “A Rosa é sem Porquê.”

A todos os amigos, a todos os companheiros: a minha ausência foi forçada e causa-me uma grande pena.
Por isso, vou transcrever dois fragmentos de Os Cantores de Leitura que, neste momento, me ligarão estreitamente a vós. De mim, ficará bem presente o seu eco.


A ética de bolso

____________________ as cenas fluem sem dono servidas à mesa, em pratos simples, fundos _______ de barro, ou estanho. Quem está sentado à mesa é um rosto ausente, vários. E eu verifico que, pela primeira vez, entro naquele livro tão fácil de trazer junto à pele e ao vestuário. Atravessei uma ponte, de algumas páginas que eu queria ordenar sequencialmente segundo um projecto, mas,
mal eu atravessei, essa ponte caiu à água,


e eu encontrei-me naquela vasta sala de refeições pensando que antes de comer ia dormir,

chegar devagarinho

à minha colher,

ao meu garfo,
à minha faca de lâmina que corta.

Mas de faca não preciso pois deixei de comer animais e aqui anda-se a ver se é possível restituir à sua imagem de vida os
existentes não reais. É esse o conteúdo da leitura feita em voz alta. Quem lê está apoiado na secção do tronco de uma arbúscula que o eleva do chão, dando proeminência às folhas volvidas de leitura. Evoca trechos do pequeno volume de bolso chegado à pele, principalmente os referentes à servidão da sensibilidade humana,

e eu pergunto, sem obter resposta,

a quem está sentado no topo da mesa:

– Quem autorizou esses ramos frementes de inspiração a serem mortos?


Agora, os outros animais cobertos por um murmúrio de resposta intitulam-se, no novo espaço abobadado aberto _______ os
existentes. Comovo-me a olhar seus rostos – e procuro o meu,
ainda com os olhos do meu corpo. Há uma campainha que toca atravessando a espessura das paredes,
e o luar, reunido à inspiração dos idiomas

aureola teus pés.

És tu quem chega, o novo conviva, de quem nem sequer simulámos a espera. Substituiu quem lê, com lentos grunhidos de animal perdido em tempo de matança e ninguém se surpreende com aquela perda de sentido da voz que se tornou apenas um som plangente e mal articulado; no entanto, os suínos não uivam, são os lobos que uivam,


mas este, elevado pela sensibilidade dos cantores às palavras,

de
suíno para os sons graves de porco,
que acompanham a refeição,
tenta ler,

e nenhum olhar pestaneja,

pelo contrário,
fica-se emocionado da cabeça aos pés.

Eu própria procuro ler no grunhido contínuo, e acho este animal um princípio de beleza singular. Apalpo, no interior do pequeno livro que trago no bolso, uma intuição escrita:

“a Alma esforça-se, tanto quanto pode, por imaginar as coisas exteriores que aumentam ou facilitam a potência de agir do Corpo.”

Medito, diz-me o coração, que
coisas exteriores pode ser o texto.
Acolho, por o pressentir há muito, que


“toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser.”

Ela repousa no mesmo silêncio em que as imagens são criadas.

E há um cânone que se esvaece.

É na realidade crua que estou entrando e subo, sem comer,

para o leito de aplicação que me pertence,

onde ainda não se deitou ninguém,


no cimo das escadas,

e no vão de outra escada que sobe ainda mais, enrolada ao tronco do sonho
que é duro, que é tenaz, que está erguido.

***

O caminho do sol

E sentados em torno desse berço, cada um com todo o sol nas mãos, fazemos circular a verdade da nossa história, a que chamais o mito.
Não houve antepassado. Houve, sim, a vontade nascente de um corpo vivo ao qual desejamos um reino sem fim. Na nossa linhagem, não transmitimos nem riqueza, nem a memória de feitos heróicos, transmitimos apenas a pergunta sobre o nosso
filomenón. O primeiro de nós foi de um sítio longínquo a outro. Escolhera o material definitivo que levaria consigo – trastes e haveres. Deixou para trás uma planta de água – uma filomenón –, composta, em quantidades iguais, de verde e de bálsamo curativo da dor das distâncias.
Voltou ao ponto de origem, onde a deixara, com a vontade firme de a transplantar. Leva-a agora sobre os joelhos, na companhia de homens e mulheres emigrantes (“Ei-los que partem.”). Um vasinho de barro que nem chega a oito centímetros de diâmetro, e doze de altura. Contém terra estrangeira, e três folhas _____ uma planta da nossa natureza. Quando chegar, recolhê-la-á na Casa da saudação, junto à sombra de uma janela quase fechada para que o seu encontro com o sol, a ocorrer, seja intencional e definitivo. Encontro que nos vai surpreender agora aqui, reunidos em torno deste berço, olhando como o sol se vai aproximando dela – a veio procurar na penumbra para que venham a confundir-se um com o outro, numa só pergunta:
“Qual o poder do corpo de afectos?”
“Oxalá essa união”, reza Hölderlin, que Gratuita ama, “seja a imagem dos deuses reflectida na relva, e todos nós à imagem dessa imagem.”

***

Não deploremos...

Para a leitura subir na aragem,

eu,

Idílio,

simplifiquei a minha caligrafia. Quem escreve muito bem à mão, conhece a electricidade das palavras, o seu poder temporal e espiritual acima de qualquer livro. Este calor abranda as dores e as excitações nervosas e eu pressenti que este Angelikos acalmaria a inteligência e o afecto _______
seria o sol mandado de todos nós.


Como o outro, era depravador de imagens feitas ___ e qualquer coisa mais. Quando guardo memórias dentro desta Casa, deveis compreender que há qualquer coisa mais

que faz mais história da história
da nossa vida quotidiana deixada

no vazio que ficou aqui depois da nossa
partida simulada. Foi apenas um espaço

dispensável que nos deixou. Não deploramos
sobre o corpo dela – a caligrafia.


Sobe na aragem a leitura, a acuidade e o sentido do arabesco.

Todas as anotações terminam em guirlandas
e parecem sempre jovens.

*

Quando dissermos sol, diremos Lós, porque a sua
contraluz é fria, e não há suor na sua fronte;

quando vislumbramos o textuador desta Casa, e do nosso corpo,

a luz salta sempre noutro lugar,

na borda das camas,

nas mesas onde trabalhamos,

nas toalhas,


mesmo sob a porta, entre o chão e a descida para o jardim.

É uma verdade que nos serena, sabermos que somos variações da luz. Sabermos que esta frase é uma imagem não sendo um metáfora, e que o nosso tempo corre entre uma e outra, por ignorância nossa.

Há, de facto, aqui um novo habitante.


Maria Gabriela Llansol
Sintra, Junho de 2007