24.2.09

DESENHOS A LER NA CAS'A 'SCREVER



É este o título da exposição da artista brasileira Maria José Vargas Boaventura, inaugurada na passada sexta-feira, 20 de Fevereiro, e que continuará até 20 de Março na Casa-Museu Ferreira de Castro, em Sintra (Rua Consiglieri Pedroso 34 - Casal de Santo António, Vila Velha, entre o Turismo e o Hotel Lawrence's). Na ocasião, a Profª Lúcia Castello Branco, da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, traçou, com o texto que se segue, a ponte entre o universo de escrita de M. G. Llansol e os trabalhos expostos:



É a casa que ensina a ler


Apesar de ele ter decidido não compreender ela
Persistia em explicar-lhe porque lia a Gabriela Llansol _____

«É a casa que ensina a ler (pausa) imagina um extraordinário
Atractivo para o amor (pausa) o livro fala (pausa)
Procura a página que te fala (pausa) sentam-se à mesa

Num estético convívio são da substância

Dos beijos e da boca (pausa) a sua liberdade

É tal que, se as folhas se partem, regressam por si sós

Ao ponto de partida e juntam-se esperando (pausa) são

Pombas somente ligadas por uma fita de vôo (pausa)

Não vês?» (continua)



Começo por esse fragmento de Maria Gabriela Llansol, em O Começo de um Livro é Precioso (Est. 35), não só para marcar aqui um novo começo (neste momento em que já nos preparamos para o dia 3 de Março, ocasião em que se completa um ano do desaparecimento de Maria Gabriela Llansol deste mundo), mas para celebrar uma certa casa.
Nessa casa, situada à Rua Alfredo Costa, n. 3, aqui em Sintra, onde Llansol viveu durante os últimos catorze anos, de 1994 a 2008, funciona hoje o Espaço Llansol, que abriga o espólio da escritora.
Essa casa, que não é exatamente uma biblioteca, nem tão pouco se reduz a um centro de estudos (embora abrigue também esses espaços e essas atividades) é, mais que tudo isso, uma casa onde vivem, ainda hoje, os vivos no meio do vivo: os objetos de Gabriela, que habitavam sua vida e habitam para sempre sua obra, as plantas vindas da Bélgica, onde a escritora viveu e escreveu durante vários anos. Essas plantas, vivas há mais de vinte anos, ainda crescem e florescem, na cozinha da casa, ao lado de paninhos pequenos, onde alguns objetos repousam, e panos maiores, as mantas e os chales que a aqueciam e que hoje nos aquecem, no inverno de Sintra, quando ali estamos a trabalhar. Nessa casa encontram-se sempre os amigos que ali já estavam, antes de sua morte – João Barrento e Maria Etelvina Santos – e, às vezes, outros, já velhos amigos, mas que ali nem sempre podiam estar, como eu, e outros, que ela ainda não conhecia, mas imaginava, como Maria José Boaventura. É também nessa casa que vão chegando, pouco a pouco, os alunos, como Carolina Fenatti, João Rocha, Izabela D´Urso – os mais pequenos --, que já começam a pôr a mão no pensamento, como ela certa vez escreveu, com projetos que incluem digitalização de cadernos, anotações, seleção de livros, organização de papéis.
Esse método, tão próximo do método llansoliano e examinado por Maria Etelvina Santos, em sua tese de doutorado sobre a autora (Como uma Pedra-pássaro que Voa: Llansol e o improvável da leitura. Lisboa: Mariposa Azual, 2008), é inspirado na própria escritora, que entendia a escrita como uma «anotação progressiva da própria vida» (Llansol citada por M. E. Santos, p. 21). Tal método, como bem observa Etelvina Santos, distingue-se da representação e entende a arte como figuração, como uma «extensão da realidade, como o corpo é a extensão da mente» (p. 21). Assim, já se pode dizer que essa arte praticada por Llansol, encontrando-se fora da representação, no mundo da figuração, não se encontra, de maneira alguma, fora da vida e da existência. Trata-se, ao contrário, como bem formulou a escritora, de uma existência-não-real, que visa não exatamente o real factual, mas a realidade do possível, onde as palavras «forçam a pujança a manifestar-se no vivo». (Llansol, «O Espaço Edénico», Na Casa de Julho e Agosto, 2ª ed., p. 157).


Como é possível ler, então, essa outra arte – a de Maria José Boaventura – composta às vezes de outra matéria e de outra substância – já que não se trata propriamente da literatura, mas da arte do desenho, da pintura, do recorte, da colagem, da aquarela –, quando esta se constrói justamente a partir daquela que nega a representação?
Em primeiro lugar, é preciso pensá-la, também, como uma arte fora da representação. E isso, creio, não será muito difícil para aqueles que já acompanham o trabalho de Maria José Boaventura, e mesmo para aqueles que hoje começam a conhecê-lo, aqui nesta casa. Porque haveria de ser justamente numa casa que abriga o espólio de um escritor, como esta, que os desenhos seriam dados a ler. Pois trata-se, como o nome da exposição já o indica, de uma leitura. Mas de uma leitura de anotações, de fragmentos, de sobreimpressões, como propunha Llansol e como Maria José, já há tempos, vem praticando. Pois «ler é nunca chegar ao final de um livro, respeitando-lhe a sequência coercitiva das palavras, e das frases», ler é uma «alma crescendo» (Llansol, Amar um Cão, s.p.).
Para nossa alma crescendo, Maria José Boaventura nos oferece pedaços de escrita sobreimpressos em cores que desenham penas, que ao mesmo tempo são folhas de árvores, que ao mesmo tempo são letras, traços, arabescos, silêncios, jardins abismáticos do pensamento. E tudo é água que escorre – aguadas, aquarelas –, fazendo-nos ler, no silêncio de uma confidência, as palavras de Llansol: «e penetro na minha cena de criança – eu água –, a olhar o texto que assimilo a um vulto repartido por livros, páginas, imagens,/ histórias orais,/ pupila inquieta que vê/ o sofrimento de ler em toda a parte. 'Ainda não sei ler e quero ler', lembro-me.» (Llansol, Inquérito às Quatro Confidências, p. 107).


O sofrimento de ler em toda a parte. Este poderia ser o outro nome desta exposição e desse trabalho que se realiza agora, naquela casa da rua Alfredo Costa em que tudo escreve. Mas esta casa, sabemos, foi por ela mesma, Llansol, certa vez sonhada, em um texto precioso, publicado na revista Colóquio-Letras sob o título de «O sonho de que temos a linguagem». Ali, ao final do texto, podemos ler:

Regresso a casa através da serra em que plantas brilham_________ como não sendo casa numa cidade. Sou aturdida pela presença da vossa escrita, que me acompanha pelas vertentes e pelas ruas. Caminho, e o pensamento caminha a meu lado: «o medo torna os homens densos». Os poetas deixarão de submeter-se à poesia. Quem escreve irá além da mágoa. Os animais, fascinados pela benevolência do buda, sensata e moderadamente, indicam o pacto de bondade que a todos une. Os homens saem da sua identidade. E o texto arrasta-nos para os lugares da linguagem onde seremos seres de fulgor, indeléveis e diáfanos___________ última parede iluminada de uma casa que se apagou, numa das avenidas da cidade serrana onde reina ainda uma profusão amarga de sinais.

(Maria Gabriela Llansol e Vergílio Ferreira, Verão de 1991, e cadernos do espólio)