AS SEXTAS JORNADAS LLANSOLIANAS DE SINTRA
16 de Fevereiro de 2005
Início do próximo livro [Os Cantores de Leitura]
... e uma interrogação ocorre-me: como religar os textos que são fragmentos,
ou estilhaços coerentes de complexas naturezas?
______ Como fizeste no Curso de Silêncio de 2004:
puxar uma longa corda que, neste caso, envolve todos os cantores de leitura
________ até chegar ao fim do todo.
(M. G. Llansol, caderno 1.70, 105-106)
A «Vila Alda», uma casa sintrense que acolhe manifestações culturais e já abrigou o Museu do Carro Eléctrico (que sai ainda hoje, nos meses de Verão, do largo adjacente para a Praia das Maçãs), é um lugar sui generis, que se revelou ser a um tempo adequado e estranho para as várias formas de intervenção e exposição contempladas no programa destas Sextas Jornadas. Mas o que acabou por se impor foi a ideia de um espaço adequado ao texto de Llansol, pelas particularidades da sua topografia interior e pela mobilidade, diferente da habitual, a que obriga quem intervém nele e que vem para assistir. A resistência dos espaços acabou, afinal, por estimular a nossa capacidade de invenção e suscitar movimentações que provaram, como no texto de Llansol, que o que está em cima é como o que está em baixo, que o que está distante vem ter com o que está perto, e vice-versa, que nada é fixo e tudo é móvel, que subir e descer são movimentos complementares. Como acontece com a escrita, a criação, os modos de inserção dos corpos no espaço e no tempo: a paradoxal lei que os rege a todos é a do interminável fluxo fragmentário que sustenta e desestabiliza a nossa passagem pelo mundo, e as passagens entre mundos. Foi talvez esta a ideia, tão llansoliana, que mais claramente atravessou as intervenções e discussões destas Sextas Jornadas: a de que aquilo a que chamamos mundo, longe de ser fixável e definível nos seus contornos, é uma matéria em trânsito, reino de passagens, arquipélago de aparições fragmentárias.
À entrada: livros, cadernos, CDs, postais... e a habitual curiosidade...
Em cima, num espaço expositivo entre-aberto e parcialmente fechado que permitia a deambulação, a paragem e a contemplação, podia ver-se uma exposição dupla que, ela também, vivia da complementaridade: «ENCONTRO», com duas componentes: «Restos», de Teresa Projecto (peças em barro, malha, frutos, terra e madeira), e «Carta sobre a névoa», de Catarina Domingues (imagens – desenho e fotografia, desenho sobre fotografia, com impressão a jacto de tinta).
Teresa Projecto e Catarina Domingues captadas pela fotógrafa Teresa Huertas
(© Teresa Huertas)
Cada uma das jovens artistas, ambas estudantes de pós-graduação da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, sintetizou num texto breve os fios que ligam os trabalhos feitos para estas Jornadas ao corpo de vida e escrita que é o texto de Maria Gabriela Llansol. As imagens da exposição e de algumas das suas peças mostram/dizem o resto – que é o que mais importa. Assim:
Teresa Projecto:
Catarina Domingues:
Teresa Projecto, Catarina Domingues e Tomás Maia: conversa sobre as exposições
«Restos» e «Carta sobre a névoa»
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Em baixo, e ocupando todo um canto da sala, olhando permanentemente para quem falava e para quem ouvia, uma centena dos quase mil papéis avulsos do espólio de Maria Gabriela Llansol, ordenados segundo a disposição que acabaram por encontrar nas dez secções do
Livro de Horas, o quarto, que apresentámos nestas Jornadas.
O livro (A Palavra Imediata, ed. Assírio & Alvim) encontrou em Isabel Santiago uma legente que fez dele uma leitura que se deixou atravessar pela sua matéria, leitura iluminada e iluminante, explorando exaustivamente a problemática do fragmento e dos fragmentos aí reunidos, que funcionaram como catalizador para um pensamento que os amplificou de forma absolutamente «siderante», como do próprio texto de Llansol disse um dia Eduardo Lourenço.
Na mesma mesa, moderada por Helena Vieira, João Barrento apresentou a segunda novidade editorial das Jornadas – o livro Trans-dizer. Llansol tradutora, traduzida, trans-criada, edição da Mariposa Azual, oitavo volume da colecção «Rio da Escrita» –, sintetizando a amplitude das práticas de «tradução» associadas à escrita e às transposições, para diversas línguas e linguagens artísticas, dos textos de M. G. Llansol, matéria discutida nas Quintas Jornadas, em 2013.
Isabel Santiago, Helena Vieira, João Barrento
Alguns dos papéis expostos em baixo, juntamente com outras passagens de livros, diários e agendas inéditos, encontram-se reproduzidos no caderno feito para esta ocasião, O Império dos Fragmentos. Llansol sobre a escrita fragmentária, que aqui colocamos à disposição de todos os que não puderam vir:
*
Estas Jornadas foram particularmente ricas em intrervenções artísticas, de criadores jovens e participantes novos nestes nossos Encontros anuais. Continuemos então, neste resumo, pela senda das artes.
Tomás Maia e Rita Roberto apresentaram um filme em duas partes – CLAMOR – I: De lá | II: Aqui, obra originalmente apresentada em dois espaços, a Galeria Quadrum e a cisterna da Faculdade de Belas Artes, em Lisboa – onde respira a matéria original do Ser, matéria sem matéria que é a de uma memória da simbiose primordial entre espaço e tempo, a do espanto perante o irromper de «fenómenos» e vozes (as do universo e a do corpo), a da nítida indistinção, como no espaço do fragmento, entre o lá e o aqui, o centro e as periferias, a presença e a ausência, o dentro e o fora. No livro que apresenta o filme e o contém em DVD (ed. Documenta, 2014), os autores incluem, nas «Notas» que em parte o constituem, um fragmento de Maria Gabriela Llansol que remete para a centralidade do «caminho» e para a essência de ser (e de escrever/criar) como movimento «espantoso» e «clamoroso» (no sentido original dos termos) de uma sempre repetida e irrepetível origem:
Eu nasci para acompanhar a voz, fazê-la percorrer um caminho. De um lado a outro do percurso, não sei o que existe, o caminho caminha,
eu deslumbro-me quando o tempo se suspende
e me permite contemplar o espaço sem tempo.
(Onde Vais, Drama-poesia?)
Pode ver-se a seguir uma sequência de planos dos dois filmes:
Por seu lado,
Lucas Parente, um jovem cineasta do Rio de Janeiro actualmente em Lisboa, apresentou, expressamente feito para estas Jornadas, um «ensaio fílmico» feito a partir da inesperada imagem do «pato fúnebre» que se levanta do lago no Jardim da Estrela, e que Llansol fixa num pequeno fragmento de escrita avulsa (estas duas folhinhas de bloco de notas).
Partindo dele, mas não se ficando por ele,
O pato da morte de Lucas Parente, numa «curta» de 12 minutos, ultrapassando o simples biografismo que o Jardim da Estrela poderia sugerir, revisita sobretudo motivos recorrentes da escrita e do universo llansolianos: o movimento metamórfico das coisas (folhas, formas, seres), o cruzamento de realidades, a multiplicidade de referentes culturais que povoa também a escrita de Llansol, o lugar significante das cores nela, e ainda a música de um compositor com quem convivia: o Olivier Messiaen do
Catalogue des oiseaux (Lucas Parente usa o som correspondente ao
loriot francês, a que em português chamamos oriolo)... Tudo isso em permanente diálogo, que o filme incorpora, entre textos de Llansol e a reflexão expressa do autor do video.
Não é a primeira vez que a música está presente nas Jornadas Llansolianas de Sintra. Na verdade, desde as Segundas Jornadas, em 2010, que ela nunca mais nos deixou, ao vivo e em gravação, com o compositor João Madureira, a intérprete Cátia Sá Pereira, o ensemble do Festival Cantabile, e a pianista Gilda Oswaldo Cruz, que este ano regressou às nossas Jornadas, depois de já ter traçado pontes e linhas cruzadas entre o texto de Llansol e a música em 2010, ao piano do grande palco do Centro Cultural Olga Cadaval.
Gilda Oswaldo Cruz
Desta vez, Gilda Oswaldo Cruz falou de «Configurações musicais na prosa de Llansol» e trouxe exemplos musicais que vão da música grega antiga a Schönberg e Anton Webern, mostrando como a «partitura dissonante» do texto de M. G. Llansol (com ênfase nesse livro tão musical que é Os Cantores de Leitura) revela as mais surpreendentes afinidades com a escrita atonal de compositores do século XX como Arnold Schönberg, Webern ou György Ligeti. Organizadas, espacial e temporalmente, de forma dinâmica, não sequencial, segundo um princípio articulatório de intensidades fragmentadas, a escrita de Llansol e a música atonal remeterão, segundo a pianista e musicóloga, para um modelo iminentemente fractal, como as imagens que mostrou evidenciaram. No video que se segue podem ouvir-se dois dos exemplos trazidos, de música grega antiga e de A. Webern, sobre imagens de fractais:
De intervenções faladas se fazem, naturalmente (e as mais das vezes exclusivamente) os Encontros literários semelhantes às nossas Jornadas. Também as houve, como não poderia deixar de ser. E o começo dos três «Painéis» do programa não poderia ter sido mais auspicioso para o que se seguiria, no sábado e no domingo: o escritor Gonçalo M. Tavares, com a sua especial capacidade de pôr à vista o processo da escrita e o «pensamento motriz» que lhe subjaz, lançou a discussão sobre o tema do fragmento e da escrita fragmentária de forma viva e sensível, a partir da sua articulação, que foi comentando, com as imagens do fogo – que consome –, da floresta – que esconde e enreda – e da clareira – que ilumina e delimita.
Estavam, assim, esboçados pontos de contacto com as duas intervenções seguintes, de Tomás Maia e João Barrento, em que a problemática do fragmento foi abordada à luz de noções complementares e antitéticas como limiar e fronteira, parte e todo, substância e linguagem, pleno e vazio – o Nada que não é negação, nos exemplos trazidos por Tomás Maia como balizas da sua intervenção: o «livro sobre nada» que Flaubert quis escrever (e que resultaria nessa espécie de anti-enciclopédia fragmentária com o título Bouvard e Pécuchet) e os Textos para Nada de Samuel Beckett. No meio, e antes dos dois, um momento seminal e presente em várias das intervenções, incontornável referência, que é o primeiro Romantismo alemão e o lugar do fragmento nele – e também as possíveis ligações do fragmentarismo llansoliano a essa e outras fontes.
João Barrento explorou, a abrir a tarde, a relação (aporética, e por isso viva e vibrante) entre o arquivo, tal como Derrida o entende em Mal d'archive. Une impréssion freudienne (ou, na versão inglesa, que melhor lhe servia: Archive Fever: A Freudian Impression), e uma ideia muito particular de «arquivo» como universo fragmentário sem a lei do arconte, que subjaz aos modos de escrita e de vida de M. G. Llansol. O desenvolvimento levou à questão de saber em que medida um arquivo como o de Llansol, um imenso somatório de fragmentos de escrita, de imagens, de sons, de objectos, de mensagens, é hoje (foi sempre?) o grande espelho dessa exigência fragmentária das práticas de escrita da autora, animadas, como o arquivo, por um duplo princípio de autonomia (intensidade) e mútua iluminação (vontade relacional). A escrita de Maria Gabriela Llansol e o trabalho actual sobre o seu espólio seriam, assim, um laboratório de possibilidades em que cada peça/fragmento é uma mónada, e o conjunto (que ainda não descortinamos plenamente) uma constelação aberta.
Gonçalo M. Tavares, Tomás Maia, João Barrento
A manhã de domingo trouxe-nos ainda duas intervenções reveladoras e estimulantes sobre a escrita fragmentária de Llansol, duas propostas de leitura a partir de ângulos e de obras diferentes e complementares: os diários (incluindo os Livros de Horas póstumos) e as «linhagens» possíveis dessa escrita; e a reflexão sobre a escrita de Llansol e as estéticas que a atravessam e alimentam (particularmente visíveis em O Senhor de Herbais), com a consequente fuga a uma qualquer «poética» do fragmento nela.
Na primeira comunicação, Isabel Cristina Mateus (professora da Universidade do Minho) inseriu os diários e os Livros de Horas numa tradição geralmente ignorada, mas a que será importante dar mais atenção, que é a da escrita fragmentária pré-moderna em Portugal, com os exemplos de Fialho de Almeida e Raul Brandão, e ainda do Livro do Desassossego, no seu registo onírico-biográfico ainda não modernista (simbolista e decadente) e já pré-pós-moderno.
Na segunda intervenção, Elisabete Marques (recentemente doutorada com uma tese sobre Maurice Blanchot e S. Beckett) seguiu um caminho mais analítico, fazendo um percurso interpretativo do qual resultou uma tese de fundo pertinente para o aprofundamento do que se chama comumente «a textualidade Llansol» – a de que existe uma relação determinante entre a imagem da cena fulgor llansoliana e a necessidade do fragmentário nesta escrita. E ainda, subjacente a um livro como O Senhor de Herbais, uma ideia que poderá ajudar a ler e entender de forma mais adequada o texto de Llansol: a de que nele se persegue uma estética (melhor, várias), que aí se alia naturalmente a uma ética, mas que dificilmente se poderá lê-lo à luz de uma qualquer poética, que não comporta essa dimensão ética (será talvez também por isto que Llansol dificilmente se poderá inserir numa genealogia modernista pura e dura).
Isabel Cristina Mateus, Maria Etelvina Santos, Elisabete Marques
O encerramento das Jornadas, como vem sendo habitual, fez-se com uma leitura gravada de textos de Maria Gabriela Llansol, desta vez uma selecção de fragmentos do Livro de Horas IV, lidos por Maria Etelvina Santos, Teresa Projecto, Helena Alves e Cândida Pargana, as quatro vozes femininas que neste momento se podem ouvir a partir do interior do Espaço Llansol, por onde semana a semana respiram o ar da Maria Gabriela e dão o seu contributo para a organização e classificação do «desmundo» fragmentário do arquivo que deixou. Deixamos aqui uma selecção dessa leitura: