A FESTA
Com o dia do regresso a casa (24 de Novembro, dia em que Maria Gabriela Llansol faria oitenta e seis anos), com o Espaço Llansol no seu lugar de origem, veio também a desejada chuva, sinal de um renascer deste país à míngua de água… E a sala grande encheu-se de amigos e interessados na Obra de Llansol.
A Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Dra. Catarina Vaz Pinto, recordou o seu empenho em conceder ao Espaço Llansol e ao legado de Maria Gabriela um lugar condigno na cidade que a viu nascer, e como isso aconteceu em tão pouco tempo, e como esse espaço se situa numa convergência de vida e escrita que não podia estar mais carregada de simbolismo. O Presidente da Junta de Freguesia de Campo de Ourique, Dr. Pedro Cegonho, manifestou o seu regozijo por poder contar com mais um núcleo literário significativo, ao lado da Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique, e o seu desejo de reforçar a presença da literatura neste bairro de Lisboa através de uma rede de pólos de divulgação e criação literárias, para além dos já existentes.
E João Barrento evocou mais largamente o significado desta inauguração, a história e o sentido do trabalho do Espaço Llansol desde 2008 e as perspectivas futuras. Com as palavras que a seguir se reproduzem:
Amigas e amigos do
Espaço Llansol
A chuva,
que finalmente veio, quis acompanhar-nos neste dia em que lançamos a sementeira
de uma nova casa que abriga um corpo vivo de escrita e um precioso conjunto de
testemunhos de uma vida. É um sinal de renascimento desta a que chamámos desde
logo, ecoando um título de Llansol, a Casa
de Julho e Agosto. Sinal de regeneração que acompanhará, à nossa medida e
nos campos da cultura, da leitura, dos encontros, da escrita, aquele outro
renascer que todos esperamos para este país em seca desoladora. É esse o
espírito que nos anima, é essa a nossa promessa – a de continuar e reforçar o
trabalho iniciado há quase dez anos em torno da Obra e do legado de Maria
Gabriela Llansol, agora neste lugar que a viu nascer e crescer e que, como ela
previu num dos seus cadernos em 2001, se tornará,
se tornou já, num lugar que abriga todo um universo aberto e pronto a ser
partilhado com todos os que aqui vierem. Como ela escrevia nesse caderno, «esta
casa tornou-se universalmente querida, pois mal abro a porta e entro nela, sei
que ela estende continuamente o espaço para além dos limites das suas
paredes...» (Caderno 1.60, 141).
E de facto assim é, porque o Espaço Llansol
(que fundámos ainda com a Maria Gabriela em 2006), como diz o primeiro ponto da
nossa Carta de Princípios, «não é
apenas um lugar físico, mas também o lugar real, visível e invisível,
disseminado pelo Texto de Maria Gabriela Llansol». E ainda: «Lugar de vida sob
o signo dos afectos, no seu triplo registo: o Belo, o Pensamento e o Vivo». O
Espaço Llansol, diz o último ponto dessa Carta,
«é o jardim que o pensamento permite» – que reencontramos nesta nova Casa, lá
fora, no pátio (e que havemos de usar com certeza, naquele longo rectângulo que
já baptizámos, recorrendo a Causa Amante,
de «Corredor da claridade»). O jardim é, aliás, para Llansol metáfora de um
mundo-outro, um microcosmo onde não se «segue uma rota de exclusão da pujança»,
um espaço não utópico, mas potencial, que nela dá pelo nome de «a restante
vida» – um horizonte ético e estético capaz de produzir ideias e beleza, formas
de actuação que recuperem e reafirmem o que o passado, remoto ou recente, tem
para oferecer de mais genuinamente humano, libertador e formador das
consciências. Algo que nesta nossa Europa, perdida de si mesma, parece
trazer-nos de volta aquela imagem que dela nos deu Augusto Joaquim, o
companheiro de uma vida e o mais arguto legente desta Obra, logo na hora de
nascimento do livro-fonte de Llansol, O
Livro das Comunidades, que evocámos há pouco semanas no Centro Cultural do
Cinema Europa: «Barbárie a Leste, lucro a Oeste, pobreza a Sul, neve a Norte».
Mas os tempos, os nossos, portugueses, pelo
menos, parecem também querer hoje trazer um novo «perfil de esperança» ao
«jardim devastado» do mundo, como a Maria Gabriela escreve nesse grande livro
pessoano a contrapêlo que é Lisboaleipzig.
Um perfil de esperança que, lemos no seu último livro, passa pela necessidade
de saber «o que é o corpo, / o que é a luz, / o que é a força, / o que é o
afecto, / o que é o pensamento...» É todo um programa que podemos seguir, sem
ilusões nem pretensões utópicas, mas assumindo «o presente como destino» e
continuando a escrever o texto de Llansol «na plena posse das nossas faculdades
de leitura» – leitura desse texto iluminante e leitura do mundo,
articulando-os.
Nesse perfil de esperança inclui-se, hoje, a
desejada chuva, e com ela termino, pela voz de Maria Gabriela Llansol. Comecei
por aí: a chuva... e o renascer... e o nosso trabalho aqui, o mais visível,
como hoje, e o mais silencioso, que tanto mundo tem dado a conhecer. A Maria
Gabriela sabia que ela viria, essa chuva regeneradora, e que a Casa iria
acolher essa nova vida e esse mais-saber, e poderia ter agradecido com as
palavras que lerei a seguir. Mas antes quero eu agradecer em seu nome a todos
os que vieram, aos amigos de sempre e, last
not least, às nossas incansáveis beguinas, laboriosas e sensíveis – a Vina,
a Helena, a Albertina, a Teresa, a Cândida –, ao Diogo Dória, uma voz que nos
tem acompanhado desde 2010, e naturalmente, a «Campo de Ourique, planície da
amizade e da solidariedade», e àqueles que nos permitem agora espraiar o olhar
por ela: a Dra. Catarina Vaz Pinto e o Dr. Pedro Cegonho, sem os quais não
estaríamos aqui hoje.
Imagino então a Maria Gabriela a falar-vos
assim, para vos agradecer, neste dia de chuva benfazeja em que ouço o eco da
sua voz clara, lendo alto, como ela gostava de fazer:
Um
dia de chuva é um dia propício ao enunciar de novos dias, obscuridade serena e
bem-vinda.
A
chuva corre agora na vertical, eu
sinto-me totalmente transparente e comunicante. A chuva é a minha base,
equivalente a uma raiz.
Respiro
/ é um caudal de chuva apolínea que não faz esmorecer nem a alegria, nem a
obscuridade, / de que tento reescrever, no princípio da aurora, / a relação
simultânea.
O
território desta casa, hoje, dia de chuva, estremece / como uma chávena nas
mãos de Deus. (...) Faz parte da minha sobrevivência actual, é o caderno
guardado onde escrevo os meus apontamentos...
...
e a chuva desabando finalmente sobre a casa, / criando um espaço vazio que
há-de ser sereno até à próxima tempestade...
Não.
Não é a chuva miudinha, mas uma nascente hesitante a polvilhar-nos de luz.
[E, de forma quase premonitória, naquele que
seria o último livro que publicou em vida, Os
Cantores de Leitura]:
O
tempo volta a abrir as suas portas
Coincide
com a chuva e a penetração
sombria
do nevoeiro em mim
E
transforma-se em claridade absoluta que paira sobre a Casa.
Maria Etelvina Santos leu um texto de Hélia Correia (ausente em Inglaterra) sobre esta hora do nascimento e as promessas da nova Casa, e o actor Diogo Dória deu-nos a ouvir um conjunto de fragmentos de Maria Gabriela Llansol que evidenciam a sua relação, de vida e de escrita, com este bairro de Lisboa onde nasceu (como melhor documenta o caderno que fizemos para a ocasião).
A Casa está aberta, são todos bem-vindos: amigos e investigadores, escritores e leitores, amadores de Llansol em geral.