27.11.17

A FESTA

Com o dia do regresso a casa (24 de Novembro, dia em que Maria Gabriela Llansol faria oitenta e seis anos), com o Espaço Llansol no seu lugar de origem, veio também a desejada chuva, sinal de um renascer deste país à míngua de água… E a sala grande encheu-se de amigos e interessados na Obra de Llansol.




A Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Dra. Catarina Vaz Pinto, recordou o seu empenho em conceder ao Espaço Llansol  e ao legado de Maria Gabriela um lugar condigno na cidade que a viu nascer, e como isso aconteceu em tão pouco tempo, e como esse espaço se situa numa convergência de vida e escrita que não podia estar mais carregada de simbolismo. O Presidente da Junta de Freguesia de Campo de Ourique, Dr. Pedro Cegonho, manifestou o seu regozijo por poder contar com mais um núcleo literário significativo, ao lado da Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique, e o seu desejo de reforçar a presença da literatura neste bairro de Lisboa através de uma rede de pólos de divulgação e criação literárias, para além dos já existentes.


E João Barrento evocou mais largamente o significado desta inauguração, a história e o sentido do trabalho do Espaço Llansol desde 2008 e as perspectivas futuras. Com as palavras que a seguir se reproduzem:

Amigas e amigos do Espaço Llansol
A chuva, que finalmente veio, quis acompanhar-nos neste dia em que lançamos a sementeira de uma nova casa que abriga um corpo vivo de escrita e um precioso conjunto de testemunhos de uma vida. É um sinal de renascimento desta a que chamámos desde logo, ecoando um título de Llansol, a Casa de Julho e Agosto. Sinal de regeneração que acompanhará, à nossa medida e nos campos da cultura, da leitura, dos encontros, da escrita, aquele outro renascer que todos esperamos para este país em seca desoladora. É esse o espírito que nos anima, é essa a nossa promessa – a de continuar e reforçar o trabalho iniciado há quase dez anos em torno da Obra e do legado de Maria Gabriela Llansol, agora neste lugar que a viu nascer e crescer e que, como ela previu num dos seus cadernos em 2001, se tornará, se tornou já, num lugar que abriga todo um universo aberto e pronto a ser partilhado com todos os que aqui vierem. Como ela escrevia nesse caderno, «esta casa tornou-se universalmente querida, pois mal abro a porta e entro nela, sei que ela estende continuamente o espaço para além dos limites das suas paredes...» (Caderno 1.60, 141).
E de facto assim é, porque o Espaço Llansol (que fundámos ainda com a Maria Gabriela em 2006), como diz o primeiro ponto da nossa Carta de Princípios, «não é apenas um lugar físico, mas também o lugar real, visível e invisível, disseminado pelo Texto de Maria Gabriela Llansol». E ainda: «Lugar de vida sob o signo dos afectos, no seu triplo registo: o Belo, o Pensamento e o Vivo». O Espaço Llansol, diz o último ponto dessa Carta, «é o jardim que o pensamento permite» – que reencontramos nesta nova Casa, lá fora, no pátio (e que havemos de usar com certeza, naquele longo rectângulo que já baptizámos, recorrendo a Causa Amante, de «Corredor da claridade»). O jardim é, aliás, para Llansol metáfora de um mundo-outro, um microcosmo onde não se «segue uma rota de exclusão da pujança», um espaço não utópico, mas potencial, que nela dá pelo nome de «a restante vida» – um horizonte ético e estético capaz de produzir ideias e beleza, formas de actuação que recuperem e reafirmem o que o passado, remoto ou recente, tem para oferecer de mais genuinamente humano, libertador e formador das consciências. Algo que nesta nossa Europa, perdida de si mesma, parece trazer-nos de volta aquela imagem que dela nos deu Augusto Joaquim, o companheiro de uma vida e o mais arguto legente desta Obra, logo na hora de nascimento do livro-fonte de Llansol, O Livro das Comunidades, que evocámos há pouco semanas no Centro Cultural do Cinema Europa: «Barbárie a Leste, lucro a Oeste, pobreza a Sul, neve a Norte».
Mas os tempos, os nossos, portugueses, pelo menos, parecem também querer hoje trazer um novo «perfil de esperança» ao «jardim devastado» do mundo, como a Maria Gabriela escreve nesse grande livro pessoano a contrapêlo que é Lisboaleipzig. Um perfil de esperança que, lemos no seu último livro, passa pela necessidade de saber «o que é o corpo, / o que é a luz, / o que é a força, / o que é o afecto, / o que é o pensamento...» É todo um programa que podemos seguir, sem ilusões nem pretensões utópicas, mas assumindo «o presente como destino» e continuando a escrever o texto de Llansol «na plena posse das nossas faculdades de leitura» – leitura desse texto iluminante e leitura do mundo, articulando-os.
Nesse perfil de esperança inclui-se, hoje, a desejada chuva, e com ela termino, pela voz de Maria Gabriela Llansol. Comecei por aí: a chuva... e o renascer... e o nosso trabalho aqui, o mais visível, como hoje, e o mais silencioso, que tanto mundo tem dado a conhecer. A Maria Gabriela sabia que ela viria, essa chuva regeneradora, e que a Casa iria acolher essa nova vida e esse mais-saber, e poderia ter agradecido com as palavras que lerei a seguir. Mas antes quero eu agradecer em seu nome a todos os que vieram, aos amigos de sempre e, last not least, às nossas incansáveis beguinas, laboriosas e sensíveis – a Vina, a Helena, a Albertina, a Teresa, a Cândida –, ao Diogo Dória, uma voz que nos tem acompanhado desde 2010, e naturalmente, a «Campo de Ourique, planície da amizade e da solidariedade», e àqueles que nos permitem agora espraiar o olhar por ela: a Dra. Catarina Vaz Pinto e o Dr. Pedro Cegonho, sem os quais não estaríamos aqui hoje.
Imagino então a Maria Gabriela a falar-vos assim, para vos agradecer, neste dia de chuva benfazeja em que ouço o eco da sua voz clara, lendo alto, como ela gostava de fazer:
Um dia de chuva é um dia propício ao enunciar de novos dias, obscuridade serena e bem-vinda.
A chuva corre agora na vertical,  eu sinto-me totalmente transparente e comunicante. A chuva é a minha base, equivalente a uma raiz.
Respiro / é um caudal de chuva apolínea que não faz esmorecer nem a alegria, nem a obscuridade, / de que tento reescrever, no princípio da aurora, / a relação simultânea.
O território desta casa, hoje, dia de chuva, estremece / como uma chávena nas mãos de Deus. (...) Faz parte da minha sobrevivência actual, é o caderno guardado onde escrevo os meus apontamentos...
... e a chuva desabando finalmente sobre a casa, / criando um espaço vazio que há-de ser sereno até à próxima tempestade...
Não. Não é a chuva miudinha, mas uma nascente hesitante a polvilhar-nos de luz. 
[E, de forma quase premonitória, naquele que seria o último livro que publicou em vida, Os Cantores de Leitura]:
O tempo volta a abrir as suas portas
Coincide com a chuva e a penetração
sombria do nevoeiro em mim
E transforma-se em claridade absoluta que paira sobre a Casa.


Maria Etelvina Santos leu um texto de Hélia Correia (ausente em Inglaterra) sobre esta hora do nascimento e as promessas da nova Casa, e o actor Diogo Dória deu-nos a ouvir um conjunto de fragmentos de Maria Gabriela Llansol que evidenciam a sua relação, de vida e de escrita, com este bairro de Lisboa onde nasceu (como melhor documenta o caderno que fizemos para a ocasião).

A Casa está aberta, são todos bem-vindos: amigos e investigadores, escritores e leitores, amadores de Llansol em geral.


10.11.17

REGRESSO A CASA


A minha infância ainda hoje me cumula com seus benefícios. 
Nesse tempo, o mundo era uma abóbada sobre a minha cabeça, 
onde constantemente se inscreviam cenas […] 
Agora, julgo que regresso às minhas fontes 
ou que viverei eternamente suspensa dessa abóbada.
(Maria Gabriela Llansol, Livro de Horas III)


Como já é do conhecimento de alguns, o Espaço Llansol tem uma nova casa, a que chamámos – et pour cause! –  «A Casa de Julho e Agosto». O espólio de Maria Gabriela Llansol regressou de facto, entre Julho e Agosto, ao lugar onde tudo começou, no bairro de Campo de Ourique, que a viu nascer e crescer para a escrita. Encontrou o seu lugar de origem, que é hoje o lugar natural da sua destinação, graças à generosidade e ao interesse da Câmara Municipal de Lisboa e da Junta de Freguesia de Campo de Ourique, nas pessoas da Dra. Catarina Vaz Pinto (Vereadora da Cultura) e do Dr. Pedro Cegonho (Presidente da Junta).


Em finais de 2003, depois da morte de Augusto Joaquim, a Maria Gabriela manifestou o desejo de regressar às suas origens em Campo de Ourique. Isso não aconteceu, por razões circunstanciais de vária ordem, mas essa intenção, e manifestações claras do seu apego ao bairro de Lisboa que a viu nascer, estão hoje patentes para nós em muitas páginas dos seus cadernos de escrita. É aqui que desperta para o mundo e para a escrita, nos anos da infância e sobretudo nos da adolescência e juventude, antes do exílio belga, e depois de ter casado com o Augusto, em 28 de Setembro de 1965, na Igreja de Santa Isabel, precisamente no ponto de convergência da rua onde ele nasce – a Rua de São Joaquim, nº 11 – com aquela onde está a casa que acolhe agora o grande espólio de Llansol.
Entre o regresso da Bélgica, em 1985, e o fim da vida, Maria Gabriela Llansol nunca deixou de ir a Campo de Ourique nos anos em que viveu entre Colares e Sintra, durante muito tempo sempre à quarta-feira, para visitar a Lurdes, amiga de infância, frequentar os cafés, os restaurantes e as lojas do bairro, ou simplesmente sentar-se a ler e a escrever no Jardim da Parada à sombra da grande metrosideros excelsa, que haveria de evocar em páginas de Amigo e Amiga.
Por coincidência ou talvez não, assinalamos agora o seu regresso simbólico a este bairro e à rua que termina no cemitério onde ela repousa há quase dez anos. Regresso que acaba por não ser apenas o de um corpo, mas o de toda a escrita que dele nasceu ao longo de uma vida. A Rua Saraiva de Carvalho, entre Santa Isabel e Prazeres, é agora o eixo e o elo que liga corpo e escrita, a memória da «escrevente» e a presença viva de tudo o que nos legou.


Vamos abrir oficialmente a nova Casa (na Rua Saraiva de Carvalho, nº 8-1º andar) no próximo dia 24 de Novembro (aniversário da Maria Gabriela), pelas 18 horas, com uma sessão em que evocaremos, com leituras pelo actor Diogo Dória e com um caderno de inéditos, alguma da escrita de Maria Gabriela Llansol sobre Campo de Ourique, de 1949 a 2004. Projectaremos um video que dá conta da descoberta do espólio de Llansol e do que com ele fizemos entre as casas de Sintra e Lisboa. E contamos com a presença da responsável pela Cultura na Câmara Municipal de Lisboa e do Presidente da Junta de Freguesia de Campo de Ourique.