Sobre o bailarino e
performer brasileiro
Wagner Schwartz (actualmente a viver e trabalhar em Paris), escrevi um dia, depois de uma memorável intervenção sua num colóquio llansoliano no Convento da Arrábida (2003), que «um texto se faz gesto e corpo desatando-lhe os nós». Wagner Schwartz (que, à letra, significa «o desafiador do negro», como eu lembrava nesse texto de 2003) regressou, de novo com uma
performance a solo, a sós com o prodígio do seu corpo, intitulada «Piranha - Dramaturgia da migração», em 14 de Maio, no 13º Festival da Fábrica (de Movimentos), que decorreu no Teatro Helena Sá e Costa e no Balleteatro Auditório, no Porto.
Estão traçadas as coordenadas de mais uma
performance colocada, tal como a anterior, sob o signo de uma epígrafe de Maria Gabriela Llansol, desta vez também de
Finita: «Trabalhar a dura matéria, move a língua; viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente sós».
No novo espectáculo de Wagner Schwartz, em que «Piranha é a metáfora de um corpo em reclusão» (lemos no programa), o absolutamente só é o corpo exposto (sob um foco de luz intensa), corpo ex-posto, posto fora-de-si, corpo ex-cesso, corpo ex-tático. Presença energética e vibrátil progressivamente in-suportável, porque é prova viva da intuição de Spinoza (e, depois, também de Llansol) de que «ninguém sabe o que pode um corpo». De facto assim é. Pude constatá-lo, cheio de espanto diante do im-provável, e do medo de que aquele corpo fracassasse.
Tudo se passa num espaço de tempo de tal intensidade que parece estar fora do tempo, apesar da clara progressão no processo de tensão e busca de libertação que sustentam o espasmo contínuo do corpo sitiado. Assim o visionou também Llansol, em situação-limite, em
Amigo e Amiga:
«... fragmentos que principiam a pulsar em todos os lados do meu corpo. Sucede-se uma excitação incomunicável»; e «a matéria transforma-se em energia». E, como ainda escreve Llansol, o corpo assim enclausurado no quadrado de luz (negra) que lhe é concedido, transforma-se no «emissor de um estranho de beleza».
O corpo de Wagner nesta
performance é levado a zonas impensáveis (porque não alcançáveis pelo pensamento), zonas de risco, de grito, de êxtase, de revolta – e de todos os seus reversos de beleza, ali, diante dos nossos olhos incrédulos, no «desenho íntegro» daquele «corpo-risco» (como diz ainda Llansol num outro livro).
O que vemos é a materialização, num corpo absolutamente só, da violência de todos os processos de mutação, de deslocamento, de migração, forçada ou não, consciente ou não. Estamos na pura, dura, mas também bela, «
escarpa da mutação», com tudo o que ela pode conter: «o medo, o frio, o transporte, o corpo dilacerado, a ideia e o sentimento súbitos, as mãos dadas e desavindas______ e todos os seus reversos» (
Ardente Texto Joshua).
É este, parece-me, o tema de
Piranha, de Wagner Schwartz, numa actuação fulgurante
e terrível (porque, sabemos, «todo o Anjo é terrível», e o sublime participa desse terror) do seu «corpo cantante» em que um espírito se faz corpo no corpo, num corpo pleno, pura imanência com alma (a alma, lemos em Spinoza, é a ideia – indissociável – do corpo).
Mas, para chegarmos ainda mais próximo da experiência in-descritível deste espectáculo (anunciado por um breve video, só de palavras feito, como que anunciando, por contraste absoluto, a pura imagem vibrante do corpo, que se segue), para aí chegarmos desafiando os limites da palavra para vislumbrar os abismos da «fenda do desejo» (Artaud), talvez seja necessário recorrer a alguém que, como Friedrich Nietzsche, a quem Llansol chama «homem do livro» e «mestre das imagens e da eternidade» (e do saber do corpo), no
Zaratustra, fala do corpo como «
a grande razão». No seu transe, em trânsito para regiões a que o entendimento nunca chegará, o corpo-mente-alma de Wagner Schwartz sabe disso, conhece, sem recurso às pequenas razões, a grande razão do seu corpo que, como diz Nietzsche, se supera ao «não dizer Eu, mas
fazer Eu».
Piranha é isto: um corpo assediado, bombardeado, metralhado, pelos ruídos digitais ininterruptos que traduzem a violência de uma contemporaneidade insensível, amorfa, sempre-igual e desconhecedora da grande e subtil razão do corpo e da terra e do Eu que a si mesmo se faz – desconhecendo-se. De um corpo
em processo de
fazer Eu que, sem nada para dizer, tudo diz: mostra-se, expõe-se, transcende-se. Faz-se corpo só, absolutamente só.
João Barrento