24.3.23

 «TODOS OS DIAS UMA CARTA»

Apresentação do livro com a correspondência de Llansol

Apresentámos ontem, no Espaço Cultural Cinema Europa, e no âmbito da Feira do Livro de Poesia de Campo de Ourique, o volume com uma selecção de cartas de Maria Gabriela Llansol (entre 1967 e 2005), com o título «Todos os Dias uma carta». A editora da Mariposa Azual, Helena Vieira, contextualizou o aparecimento de mais este volume, a professora da Escola Superior de Cinema e Teatro, Maria Duarte, leu algumas das cartas, e João Barrento apresentou o novo livro com o texto que se segue:

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Este novo volume da colecção «Rio da Escrita», que o Espaço Llansol vem editando com a Editora Mariposa Azual desde 2008, é já o nº 24! A maior parte são textos de intervenções nas nossas Jornadas anuais sobre a Obra de Llansol, mas há também alguns volumes de autor (de Eduardo Prado Coelho, João Maria Mendes, Augusto Joaquim, Maria Etelvina Santos ou eu próprio). Este é um pequeno volume muito especial, a par de um outro, que reune as Entrevistas de M. G. Llansol. Não muitas, que a Autora nunca foi muito dada à feira das vaidades literária, mas iluminantes, como esta selecção de cartas. Trata-se de livros que ajudam a compreender melhor todo um percurso de escrita, uma Obra e uma vida, também relações afectivas que esta autora singular sempre privilegiou. Também estas não muitas, e quase todas nos vão sendo reveladas pelas cartas que este novo livro contém.

Trata-se, naturalmente, de uma selecção. No espólio de M. G. Llansol encontramos muito mais correspondência, mas sobretudo de carácter familiar ou institucional. Bastante menos correspondência com figuras do mundo literário, português ou outro – o que se explica pelo isolamento (sem fechamento total) em que a autora viveu, no exílio e depois dele. Mas desde cedo que aparecem nomes importantes da literatura ou da crítica, a certa altura também da tradução de algumas obras para francês ou alemão. Acontece, no entanto, que metade da vida literária de Llansol é a dos vinte anos de exílio na Bélgica, com muito poucas ligações ao universo literário português. A primeira secção documenta bem as dificuldades de encontrar editor para os primeiros livros, os da primeira e segunda trilogias, todos escritos no exílio belga, entre os anos 70 e a primeira metade de 80. E à medida que avançamos na leitura começamos a perceber como estas cartas não são mera correspondência de circunstância, mas, como acontece também com os milhares de páginas dos diários de Llansol, um repositório de ideias, um espelho da pogressão de uma Obra, um registo diário de experiências que revelam muito dos interesses e das obsessões pessoais e das vicissitudes da vida literária desta autora que a si mesma se vê, de forma viva, como «um corp' a 'screver».

                                  Maria Duarte e João Barrento na apresentação do livro


O título que encontrei (que a Maria Gabriela me ofereceu, como quase todos os desta colecção!) para esta selecção de cartas é o de um texto em que a autora imagina uma troca de cartas fictícias com a escritora belga Marguerite Yourcenar, «Todos os dias uma carta», que seria publicado na revista Vida Mundial em Dezembro de 1997 (vd. a minha Introdução).

Interessava-me destacar, com este volume, este lado ainda não conhecido de Llansol, a sua pulsão epistolar, «o discurso ritual da manhã» ou, como ela escreve numa das suas agendas, «o grande desejo de escrever cartas e guardar as cópias». De facto, ela guardou muitas cópias, manuscritas (nos cadernos) ou já saídas da máquina de escrever, e foi isso que facilitou a minha tarefa de organização deste livro. A atracção pela escrita epistolar – mais do que pela comunicação oral e rápida do telefonema, que se esfuma e não fica disponível para releitura – aparece por mais de uma vez expressa nestas cartas, que não são simples meio de informação, mas registos de pensamento, ensaios de escrita, testemunho de relações de afecto. Também, por vezes, pura poesia, o que pode justificar a sua presença nesta Feira do Livro de Poesia de Campo de Ourique, o bairro que a viu nascer e crescer, entre a Rua Azedo Gneco, a Domingos Sequeira e a Igreja de Santa Isabel.

A atracção pela carta é assim expressa por Llansol num caderno de 1981:

Com uma carta é diferente [diferente de um telefonema], estende-se uma longa teia, se se quiser. E relê-se. E a cada releitura fica-se tão próximo, e encontra-se um novo sentido imaginário, possível. São asssim as cartas de C[hristinne] [e, poderíamos dizer, as de Gabi para ela e outros!]: o ouvido, a vista, o olfacto, o tacto, o entendimento. Mas, o que é que capta a carta? Certamente as leituras sucessivas, as aproximações da necessidade de resposta que não surge no imediato, mas mais tarde...

A carta é, assim, também literatura disponível, um «fragmento de secreto que circula» de mim para outro e de mim para mim, como uma página de diário (é assim que elas devem ser lidas). A sequência das quatro partes em que organizei o volume mostrará claramente como estas cartas não são mero resultado de condicionalismos exteriores de uma vida literária (edição, crítica, leitores, intervenção de artistas...), mas acima de tudo, e frequentemente, «escrita de si» que ilumina os meandros da Obra e das situações concretas em que ela nasce – sem cair no confessionalismo, ou no que Llansol designa de «a mediocridade da autobiografia». O que elas são, acima de tudo — e quem as for lendo apercebe-se facilmente disso — é, entre outros «guias» úteis, um breviário para a leitura de uma Obra, das margens envolventes e dos núcleos irradiantes de uma escrita que se foi fazendo ao longo de quarenta anos, na teia dos dias, carta a carta,  e «ao fio do corpo» – como a Maria Gabriela sempre fazia quando escrevia.


(J.B.)


22.3.23

 LLANSOL COM IBN  'ARABÎ


Ontem, Dia Internacional da Poesia e do Ano Novo do calendário persa, Maria Gabriela Llansol esteve presente na sessão da Fundação Gulbenkian integrada no programa da exposição O Poder da Palavra: O caminho dos sufis. Foram lidos, em língua persa e árabe e em tradução portuguesa, poemas de vários autores persas e árabes, que se cruzaram com textos de autores portugueses neles inspirados: Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner, Catarina Nunes de Almeida, Adalberto Alves, e também fragmentos de Maria Gabriela Llansol em que o místico árabe ibérico Ibn  'Arabî é figura central.

Os textos de Llansol foram lidos pela actriz Teresa Coutinho e pelo poeta Isaac Jaló. Os textos originais, de autores como Rûmi Omar Khayyâm, Ibn 'Arabî, Rabi'a e outros foram lidos por Omid Bahram (persa) e Shahd Wadi (árabe). As leituras foram acompanhadas à guitarra pelo músico José Peixoto (do grupo Madredeus).

A organização e os comentários da sessão devem-se ao Prof. Fabrizio Boscaglia (Universidade Lusófona), especialista da história das religiões e do misticismo no mundo árabe e persa, e leitor de Llansol, que foi conversando sobre esta matéria com Elisabete Caramelo, Directora de Comunicação da Fundação Calouste Gulbenkian.

Veja a seguir dois pequenos videos da sessão gravados por Ângela Solla.

Fabrizio Boscaglia comenta o lugar de Ibn 'Arabî na escrita de Llansol (clique no link abaixo):


O poeta Isaac Jaló lê Llansol sobre Ibn 'Arabî, no diário Finita (clique no link abaixo)

15.3.23

 O ESPAÇO LLANSOL NA FEIRA DO LIVRO DE POESIA

Entre os dias 21 e 26 de Março, como acontece já há alguns anos, teremos no Jardim da Parada / Rua 4 de Infantaria, em Campo de Ourique, a Feira do Livro de Poesia. O Espaço Llansol e a editora Mariposa Azual partilharão um dos quiosques, e lá teremos à venda todos os nossos livros e cadernos disponíveis, ao preço especial das vendas habituais no Espaço Llansol. A Feira funciona de terça a sexta das 14h às 19h, e no sábado e domingo das 11h às 19h.

No âmbito da Feira apresentaremos no dia 23, quinta-feira, às 16h, no Espaço Cultural Cinema Europa (ali ao lado, na Rua Francisco Metrass, 28-D) o novo livro da nossa colecção «Rio da Escrita» Todos os Dias Uma Carta, que reune Correspondência de Maria Gabriela Llansol entre 1967 e 2005. Algumas das cartas serão lidas por Maria Duarte, professora na escola Superior de Teatro e Cinema.

14.3.23

 LLANSOL NO SALÃO DO LIVRO DE GENEBRA

As traduções francesas dos livros de Maria Gabriela Llansol, saídas na editora suíça Pagine d'Arte, estarão presentes no Salão do Livro de Genebra, que se realiza de 22 a 26 de Março. Llansol tem também dois livros em italiano nesta editora, Il Gioco della Libertà dell'anima (com a entrevista Lo spazio edenico) e a antologia de textos All'ombra del chiaro di Luna.



GRÁMMATA

A letras e o fulgor de Llansol

Saiu em 2022 o primeiro número dos Cadernos do NUPPEC-Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenado por Rosi Isabel Bergamaschi Chraim, Márcia Cattoi Schmidt e Janniny Gauterio Kierniew. A publicação assinala os dez anos de existência deste núcleo, que tem como uma das suas grandes referências a Obra de Maria Gabriela Llansol.


O texto que preenche as cerca de oitenta páginas deste caderno, um coro de vozes que se entrecruzam permanentemente com a de Llansol, resultou dos contributos dos participantes de um dos «Eixos» daquele Núcleo, o dos encontros de extensão universitária coordenados actualmente por Simone Zanon Moschen, Cláudia Bechara Fröhlich e Luciano Bedin da Costa, e que integra estudantes de graduação e pós-graduação, e ainda investigadores vinculados ou não à Universidade. Os textos dos participantes do curso de extensão intitulado Práticas da letra: leitura-escrita com Llansol resultaram da «ressonância da leitura em voz alta» dos diários Um Falcão no Punho e Finita».

13.3.23

 O FULGOR DA LUZ DE LER


Tivemos no sábado entre nós uma das mais singulares vozes de legente do Texto de Maria Gabriela Llansol, a professora de Filosofia  Isabel Santiago, que há anos acompanha esta Obra e o trabalho que vimos fazendo em torno dela.

Se há leitor/a de Llansol a quem o ser legente assenta como uma luva, esse alguém poderá ser a Isabel Santiago. Vem da Filosofia, mas mostrou na sua exposição (a partir do livro Parasceve, mas irradiando para outros) como, para falar deste Texto, é possível, e necessário, contornar o pensamento abstracto, e escrever e dialogar de preferência com imagens vivas do pensamento e da experiência – melhor seria dizer já, da vivência de um Texto que trouxe para a sua vida e a que dá vida nova ao lê-lo. A sua exposição mostrou como conhece o Texto de Llansol como poucos, sabe o que ele é, ou melhor: conhece o seu devir, sabe que ele existe para se transformar em qualquer outra coisa a cada leitura; enfim, sabe por que rios corre este Texto e aonde nos pode levar.


A Isabel é – como a M. G. Llansol –  um daqueles seres que antes de ser já eram, porque sempre foram o que são, porque um dia vieram a ser o que já eram – como o Nietzsche desse livro-balanço que é Ecce Homo, com o subtítulo, que ecoa em Llansol, Como se chega a ser o que se éTais seres estão predestinados a ultrapassar a sua origem primeira e natural e a escolher um dia a sua verdadeira origem. Llansol: «eu nasci no decurso da leitura silenciosa de um poema...», entre «tecidos espalhados pelo chão» e os textos que seriam lidos...Também a Isabel Santiago nos revelou a «origem» que ela escolheu um dia, muito cedo, como escreve numa carta recente – que é também um poema – que nos enviou depois da sessão sobre Llansol, «A bordadora de Texto» (em Maio de 2021). Aí explica como um dia – da noite para o dia –, ainda criança, começou a perceber o que é «escrever como deve ser» (coisa que, paradoxalmente, se revelaria como um escrever livremente a partir do olhar, sem imperativos categóricos, gramaticais ou estilísticos). Escolheu então a sua via (ou foi escolhida por ela?), como Nietzsche, quando de si dá conta na Segunda Intempestiva: «uma folha solta-se do rolo do tempo... e fica a pairar». Essa folha acompanhará sempre aqueles que escolhem uma origem, que assinala para sempre aquilo que serão. 

A Isabel é desta estirpe. Ela já então «sabia» – de um saber que entra pela janela, mas não vem dos livros – que um dia se iria encontrar com este Texto. Também ela nesses anos da escola, ao ter de escrever uma redacção, se descobriu a si própria como aquela que conhecemos hoje (tal como a Maria Gabriela, aos onze anos, quando começa uma redacção com «Era uma vez...», para logo a seguir dizer: Não, não vou por aí!). Também a Isabel, como Llansol de si mesma diz, tendo de escolher entre o tecido (que era mais o terreno da sua mãe) e o texto (que se revelou ser o seu), se decidiu por este. Mas afinal, os dois têm a mesma origem e etimologia: tratava-se apenas de tecer o texto com outros pontos e linhas, como tão bem o fez no sábado.

Transcrevemos daquela sua carta um parágrafo que diz melhor do que quaisquer outras palavras o que foi a sua lição sobre «O devir e o dever do Texto», que converge em muitos aspectos com o modo como Llansol se via a si mesma a escrever e ler, a escreler


«Na manhã seguinte dediquei-me a escrever como deve ser. Não sabia que o 'como deve ser' é seguir a regra que se impõe no instante fulgurante da imagem que chega à palavra, não sabia que o ritmo era o de uma orquestra com um maestro invisível a fazer movimentos diante da folha a que as mãos obedecem, fazendo ecoar o que as mãos traziam ainda mudas, mas desenhando sinais ou signos. Ainda não sabia e ainda não sei bem. Mas ao fim de algum tempo, debruçada sobre a mesa e a folha em que escrevi e apaguei, escrevi e apaguei, aprendi que podia estar sempre a ver numas coisas as outras, e senti o fascínio da analogia e do ponto analógico que mora no olhar. Sei que a composição terminava com esta frase: o mundo está sempre criado, mas quando chega a Primavera, ela transforma-o e ele torna-se outro

 

Podiam ser palavras de Maria Gabriela Llansol! Estamos perante um caso, raro, de simbiose perfeita.



[O texto completo da intervenção de Isabel Santiago será publicado no próximo número da nossa série dos «Cadernos de Tejo-Rio», que estará disponível a partir de sábado, dia 18].