4.12.23

 MANUEL GUSMÃO E LLANSOL:

A PARTILHA GENEROSA

Deixamos aqui o essencial da evocação, feita por João Barrento no passado sábado, focando a convivência de Manuel Gusmão, ao longo de várias décadas, com o Texto de Maria Gabriela Llansol, e também a sua própria poesia, lida na sessão por Diogo Dória e Marta Chaves.



O título que demos a esta sessão – «A partilha generosa» – remete-nos para uma ligação de décadas que foi a de Manuel Gusmão com a Obra de Maria Gabriela Llansol. Estávamos em 1991, o ano em que foi atribuído pela primeira vez o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores a um livro de Llansol (Um Beijo Dado Mais Tarde). O Manuel Gusmão fazia parte do Júri, e o título do seu parecer (na altura eram publicados pelo JL) é precisamente «Partilha generosa do que é misterioso». Lendo hoje esse texto, percebemos que se trata de um testemunho inteligente que se apercebe desde logo de algumas das características essenciais, e únicas, desta escrita:

1) que qualquer livro é neste caso «um livro múltiplo» (constituindo todos eles um livro único, «um fragmento completo», como dirá a Autora);

2) que há nesta Obra uma clara ponte entre vida e escrita, que no entanto não cai na «mediocridade da autobiografia»;

3) que existe uma relação singular entre o gesto de escrever e um acto de leitura que «nunca chega ao fim de um livro», um modo de «escreler», diz Llansol, que Manuel Gusmão traduz numa frase que é todo um programa: «É no entre que este livro [Um Beijo Dado Mais Tarde] é legível». Querendo significar que é só nesse pacto entre escrevente e legente, e na multiplicação das leituras, que qualquer livro de Llansol se realiza plenamente. Esta ideia reapareceria na crítica de Gusmão sobre o último livro de Maria Gabriela Llansol, Os Cantores de Leitura; aí lemos que «este livro [...] é um fragmento de um universo que nos interpela, e de alguma forma nos inclui, na medida em que consigamos encontrar nele o nosso lugar» (Público, 14 de Março de 2008). Uma vez mais, na medida em que consigamos responder ao apelo do «Quem me chama?».

E a leitura, por Manuel Gusmão, do livro premiado em 1991, que inaugura uma nova fase na Obra de Llansol, a de uma «ordem figural do quotidiano», termina com a constatação de que «este texto é o operar de uma justiça que nos é feita: a da partilha do esplendor, da fulguração de uma língua...». Para que lhe seja feita «justiça», o livro tem neste caso de ser, não apenas partilhado, mas também completado pelo leitor.

4) Mais tarde, nas primeiras Jornadas que fizemos em 2009 em Sintra, a partir do tópico llansoliano «Nada ainda modificou o mundo» — penso na actualidade, neste momento, desta ideia que está na base do «projecto do humano» que sustenta toda uma Obra como a desta escrevente! –, a partir dessa ideia-chave o Manuel iria enveredar por um caminho que o levaria, em múltiplas variantes, a desenvolver aquele que seria o seu grande tema nos vários momentos em que comenta esta Obra: aquilo a que ele chama «a reconfiguração do humano». Uma perspectiva que não podemos deixar de associar às suas convicções políticas e à sua crença na poesia, na escrita em geral, como uma forma de resistência a esse mundo sempre igual nas suas desigualdades. Estamos sempre a necessitar de novas leituras da História — e vamos sempre dar à gritante imposição do poder arbitrário dos Príncipes sobre a Restante Vida e os «pobres» dessa História, os «sobreviventes», «a imagem da parte perdida da batalha» sem fim – de facto, «nada ainda modificou o mundo»!

Este é um filão a que se tem dado relativamente pouca atenção na Obra de Maria Gabriela Llansol: uma leitura política, com essa problemática do humano e da leitura da História no centro e, implicitamente, a de uma releitura alternativa da noção de comunidade, demarcando-a das noções mais correntes de «sociedade», de um «gregarismo» superficial, e que o Manuel Gusmão designa de «comunidades transtemporais do Vivo».

 

Não gostaria de ser eu a comentar ou interpretar este tema de fundo que constitui o fio condutor das intervenções do Manuel Gusmão a propósito da Obra de Llansol. Por isso vos lerei apenas algumas passagens de intervenções suas em dois dos nossos livros que documentam as Jornadas Llansolianas (em 2009 e 2018).

Do primeiro, Nada ainda modificou o mundo...:


Nas várias vezes que me tenho encontrado a escrever sobre ou com textos de Maria Gabriela Llansol, foi-se-me construindo um horizonte de leitura, em que o seu texto tende a aparece-me como uma acção de reconfiguração do humano. [...] A reconfiguração do humano começa pela afirmação de uma ignorância ou de uma recusa das suas definições estabelecidas ou dos seus retratos oficiais. A afirmação dessa ignorância é o gesto inaugural de uma reconfiguração que não deseja a sua imobilização numa definição, numa norma ou numa lei. [...] A escrita que reconfigura o humano responde a esse fulgor que se apaga e acende nas coisas; não se trata apenas de mudar as representações, o sistema de crenças, as formas do pensamento. Trata-se de mudar os sentidos, a percepção e a sensibilidade; trata-se de ver e de tocar de outra maneira e outras coisas, coisas não-coisas. [...] O texto Llansol é intensamente estranho, até na medida que é intensamente novo; nem poderia ser de outra forma, se o que está em jogo é, entre outras coisas, a reconfiguração em aberto do humano. Ele escreve-se à margem daquilo a que chama o realismo. [...] Para levar a cabo esses procedimentos, Maria Gabriela Llansol tem de se colocar como se estivesse na situação-de Rimbaud. Também ela sente a necessidade de encontrar uma língua... Quem quer reiventar o humano tem de forjar ou dotar-se de uma língua nova, de uma língua em estado de nascimento... [...] As populações e as suas formas de vida que habitam os espaçostempos das obras de Maria Gabriela Llansol, constituem comunidades transtemporais do vivo. Comunidades diz a característica essencial das formas de vida dessas populações: vivem em comunidades. E se uso o plural é porque há mais de uma só comunidade, e elas podem ser internamente plurais ou heterogéneas. Transtemporais diz outra característica fundamental que é a possibilidade de convivência e de reunião num lugar ou num tempo constelado, de personagens que nunca se encontraram na história cronológica e que nos casos extremos vêm de tempos muito diferentes. [...] O que significa o carácter transtemporal, irredutível à linearidade cronológica, das comunidades? Que regime da historicidade aí se manifesta? Porque têm de ser emendadas as figuras, que batem às portas do mundo e se pretende que regressem? Agregada à falta de uma íntima associação entre liberdade de consciência e dom poético, constitui-se então um outro projecto que é o da reconfiguração aberta do humano. A comunicação entre as espécies do vivo, os reinos do orgânico e o não-orgânico, o construído e/ou o imaginado, abrem o humano a outras qualidades.


No segundo texto, que regressa a este tema nove anos depois, nas Jornadas em que vários escritores deram o seu testemunho da leitura de Llansol – «Eu leio assim este Texto». Escritores lêem Llansol –, o Manuel Gusmão juntou duas escritoras da sua predilecção, Maria Gabriela Llansol e Maria Teresa Horta:


Um dos focos do meu fascínio pela escrita de Llansol, é o modo como ela impõe à leitura movimentos que não só são os traços de uma sua idiossincrasia estilística mas que representam um caminho para a partilha das posições do leitor em contacto com a sua actividade e a caminho da sua verdade de leitor.

A nomeação desse foco será hoje e aqui o carácter político do texto de Llansol. Sei que esta decisão minha poderá chocar num periodo em que a palavra política parece aceitar uma desenfredada mistificação. Não tenho qualquer dúvida, entretanto, que a leitura de Llansol põe em jogo uma escuta política que se torna imperiosa em alguns dos seus textos maiores. A frase que escolhi para o meu título, entretanto, não sendo de Llansol – «Certas questões devem pôr-se à beira-Ebro ou no rio que assedia Münster» –, é de uma outra escritora portuguesa que, desta maneira, presta a sua homenagem à Maria Gabriela Llansol. Esta escritora é Maria Velho da Costa. [...]

A visão utópica de Llansol leva a propôr ver a história da Europa como um longo combate nascido de uma incompatibilidade radical e insanável entre o mundo dos príncipes e o das gentes ou dos rebeldes. A circulação e o caminho da escrita de Llansol são-nos propostos como a partilha de um dos bens da Terra que, quanto a ela, são cinco: «O conhecimento, a abundância, a generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver»  [...] O mundo textual de Llansol é o mundo do vivo. A escrita não imagina. A escrita é o que a figura vê, é o que fica depositado nos que a lêem  a nostalgia inexpugnável dos seres que estão por vir...

 

Nestas Jornadas de 2018, numa altura em que o Manuel já tinha alguma dificuldade em ler, emprestei-lhe a minha voz, e com isso dei mais um passo no sentido de uma proximidade e de uma admiração mútua que já vem dos anos oitenta na Faculdade de Letras, quando, em 1983, sabendo da sua tese sobre os fragmentos do Fausto de Fernando Pessoa (que haveria de ser publicada na Editorial Caminho em 1986: O Poema Impossível - O Fausto de Fernando Pessoa), lhe pedi colaboração para um volume que organizei sobre Fausto na Literatura Europeia, editado pela Cooperativa Editorial Apáginastantas, que criei nesses anos.

Começou aí uma relação que mais tarde se iria apofundar por duas vias: a da poesia de Manuel Gusmão, que acompanhei e comentei desde os primeiros livros até ao Pequeno Tratado das Figuras (de 2013) e A Foz em Delta (de 2018), na minha própria escrita sobre a poesia portuguesa contemporânea, nos encontros do «Jornal Falado da Actualidade Literária», que organizávamos no PEN Clube Português, nos balanços literários da revista Vértice ou em diálogos com o Manuel, como o da Feira do Livro do Porto em 2001, sobre esse livro marcante que é Teatros do Tempo.

Um segundo caminho foi o da sua participação nos Encontros do GELL-Grupo de Estudos Llansolianos, ainda com a presença da Maria Gabriela (que co-organizei entre 2001 e 2006), e depois no Espaço Llansol, não apenas com os seus comentários recorrentes do Texto llansoliano (de que já dei uma ideia), mas também activamente, como Presidente da Mesa da Assembleia Geral desta casa desde a sua fundação.

 


Gostaria ainda de vos deixar, antes de ouvirmos poemas do Manuel Gusmão lidos pelo Diogo e pela Marta, alguns apontamentos, uma breve síntese, da minha leitura desta poesia, a um tempo tão humana, interventiva e poeticamente rigorosa e sensível.

A poesia de Manuel Gusmão é um exemplo singular, quase paradoxal, de um discurso à primeira vista resistente à leitura, pura organização mental, de «uma mão que escreve na mente», como ele próprio reconhece, e ao mesmo tempo atravessada permanentemente por núcleos da mais límpida e fulgurante intensidade lírica. Por exemplo em Pequeno Tratado das Figuras, quando nos surpreende com a inflexão para uma escola miniatural do olhar, inspirada em desenhos de Jorge Vieira, para «a pintura corpo a corpo», título de uma secção do livro, ou para o inesperado tema da natureza («Da linguagem das árvores e do vento»).

A construção do poema contínuo e único faz-se, também aqui, não apenas no mesmo livro, mas de livro para livro: é de tempos, de mapas, de arquitecturas poéticas, do mundo e dos seus teatros de acção e pensamento que se fala nestes livros. Elabora-se uma cartografia de tempos sobrepostos que passam de livro para livro: a escrita regista, em palimpsesto, passados muito vivos que se reinscrevem sobre um presente apagado, e também tempos do Eu que acorrem ao apelo de tempos do Nós – «como se no tempo se pudesse outra vez fazer / o nascimento outro: os imemoriáveis da alegria».

Dedicatórias de Manuel Gusmão a Llansol – com os comentários da escrevente, a lápis

Nestes «teatros do tempo» e do mundo em que se é actor de acasos num tempo vivido como descontínuo, há lugar, na poesia de M. Gusmão, para os tempos da terra e da casa, entre equinócios e solstícios, entre o amor, os livros, a doença; e também para os tempos da História e do grande mundo. E, contra todas as expectativas face ao estado desse mundo, quando o poema faz convergir esses «tempos constelados», nasce nele a alegria da visão, aquela «difícil fidelidade à alegria» que o poeta refere na dedicatória de Migrações do Fogo a Maria Gabriela, em 2004, e que esta comenta na mesma página, a lápis, com a anotação: «[alegria] que é o reverso, ou a dobra, de uma dor». Mas, na sua solidão radical, o poema não clama no deserto: o poema chama para que alguém acorra, e «o mundo não cessa de vir ao lugar do encontro». Podemos, assim, perceber melhor como a poesia de Manuel Gusmão, sem cedências na sua exigência de rigor construtivo, sem hesitações ao convocar toda uma vasta herança literária que dela faz uma poesia «erudita» muito particular (que não ostenta a intertextualidade, mas assimila e integra de forma criativa o texto do outro), faz nascer o júbilo do fundo de uma crença última, que pode vir de Rimbaud ou Hölderlin, de Carlos de Oliveira ou de Fiama e passar por Wittgenstein, Benjamin ou Llansol: a crença de que a coisa estética é indissociável de uma ética e mesmo de uma forma de conhecimento própria do poema. Só assim o poema se pode transformar, como acontece aqui, no lugar da vita nuova que traz «a promessa  a esperança  a alegria justa // a perfeição das coisas  o mundo inacabado», como se lê num dos poemas que iremos ouvir. Mas sem ilusões: as três Graças confundem-se frequentemente com as três Parcas, e o poema, sendo a «promessa justa», nada pode garantir. A não ser – o que não é pouco, e constitui todo um programa – servir de abrigo àquela «insustentável perfeição das coisas», como uma «ruína inacabada» a dominar a «devastadora beleza do mundo». 

Estas e outras imagens, de esperança, apesar de tudo, «contra todas as evidências em contrário», irão ecoar na leitura de poemas que o Diogo e a Marta farão já a seguir.


(J. B.)

28.11.23

LLANSOL E O «EXÍLIO INTERIOR» DE COLARES

No ciclo de conversas «As primeiras segundas», do Espaço Cultural «O FORNO», em Rio de Mouro, João Barrento falará na próxima segunda-feira, 4 de Dezembro, pelas 21h30, com os responsáveis por esse Espaço e pelo Teatro Musgo, Jaime Rocha (dramaturgista e dramaturgo residente) e Paulo Campos dos Reis (encenador e actor), sobre os «lugares» de Maria Gabriela Llansol em Colares (a Casa-o Pinhal-o Mar), a partir do último Livro de Horas, Um Conjunto de Espirais, que abarca os cinco primeiros anos depois do regresso do exílio (1985-1990). Será passado um video que mostra esses lugares, e lidos textos provenientes desse novo livro de inéditos.

(O «Forno» fica na Av. Pedro Nunes, 9 - Rio de Mouro: IC19 --> saída nº 11, Rio de Mouro/Rinchoa.       A entrada é livre).

24.11.23

 MARIA GABRIELA: 

O SANGUE QUE CIRCULA PELOS LIVROS...

Maria Gabriela Llansol faria hoje 92 anos. E a sua memória e os seus livros continuam a vibrar...

22.11.23

MANUEL GUSMÃO E MARIA GABRIELA LLANSOL

No sábado dia 2 de Dezembro, pelas 16 horas, faremos no Espaço Llansol uma sessão evocativa do poeta Manuel Gusmão, que nos deixou no passado dia 9 de Novembro. Manuel Gusmão era Presidente da Mesa da Assembleia Geral do Espaço Llansol desde a sua fundação, esteve connosco e com a Maria Gabriela desde 2002, e escreveu muito sobre a sua Obra. João Barrento evocará esta ligação, e ouviremos ler poemas de Manuel Gusmão pelo actor Diogo Dória e pela poeta Marta Chaves.

27.10.23

LER O MUNDO COM LLANSOL

Práticas de leitura comparada II


Inicia-se no sábado 28 de Outubro mais um Curso sobre a Obra de Maria Gabriela Llansol (com inscrições já preenchidas), ministrado pela Profª Maria Etelvina Santos, que decorrerá até Junho de 2024. Desta vez centrado na primeira trilogia, a «Geografia de Rebeldes», com destaque para a figura que atravessa todos os livros (ainda até Causa Amante), a de Ana de Peñalosa.


24.10.23

A «RESTANTE VIDA» DO REINO ANIMAL

XIV JORNADAS LLANSOLIANAS



João Barrento abriu estas XIV Jornadas Llansolianas, dedicadas ao «Prazer do reino animal» no mundo de Llansol, evocando o desprazer do mundo que diariamente nos cai em cima neste nosso nada «admirável mundo novo». Com estas palavras:

«Há um chocante contraste que nos atinge ao abrirmos mais umas Jornadas, que sempre foram momentos carregados de esperança, de beleza e de júbilo, como toda a escrita da Maria Gabriela: vamos falar durante dois dias de um universo de harmonia, entendimento mútuo, diálogo entre seres, humanos e não humanos, que nos oferece um horizonte de paz, silêncio criador, coexistência possível. E lá fora, no grande e no pequeno mundo, no dos poderes arbitrários e desumanos como no de um dia a dia de indiferença, banalidade e ruído, a paisagem é a de um apocalipse universal em que a violência, a brutalidade e a hipocrisia tudo abarcam e dominam.

Ocorre citar Augusto Joaquim, ao evocar já profeticamente, há meio século, um mundo devastado, anunciando o de hoje, a que a Geografia de Rebeldes da Maria Gabriela iria contrapor uma alternativa. Na contracapa da primeira edição de O Livro das Comunidades o Augusto escreve: "Barbárie a Leste, lucro a Oeste, pobreza a Sul, neve a Norte". E a própria Llansol responde no que escreve então sobre as contradições do mundo e o que dele está ausente, com "a dualidade dos mundos, que tem causado imensas e incalculáveis perdas ao ser humano mais comum. A ele, mas também a esta pedra, a este arbusto, a este bicho... Parece haver dois mundos: o Mundo e a Restante Vida. Irredutíveis entre si, inimigos um do outro, temendo-se"».

Vamos tentar, durante estes dois dias, contrariar o Mundo (com M grande e carregado a negro)! Depois, provavelmente regressaremos à consciência do «fim das possibilidades», que era já a minha há alguns anos, quando escrevi a minha versão d' A Nave dos Loucos, de onde transcrevo apenas algumas linhas do epílogo: 

Nem Deus nem deuses nos dirão como aferir / A geometria dos corpos do tempo por vir, / Peso e medida da pessoa humana / Para lá do 'crescimento', essa obsessão insana. / Tudo recomeçou numa barca, a de Noé, / A de todas as possibilidades, porque aí / Se não distingue o Homem do outro ser, / Nem a dignidade se mede pelo ter. / Virá outro dilúvio, e então saberemos / Pela caixa negra desta barca o que fizemos. / Esquecemos lições. Ignorámos muito sinal. / Cedemos à razão dita instrumental. / Morta a alma, esquecido o corpo, essa 'grande razão', / Perguntamo-nos o que resta então / Das escadas de Odessa, dos murais de Abril: / Guerras e mortos, muros limpos, pesadelos mil. / Europa a crédito. O resto: atrocidades. / Será o fim das possibilidades?

Talvez não. Contrariamente à cegueira e à rigidez dos factos, as possibilidades são sem fim, como certamente nos confirmará a Profª Maria Esther Maciel, com perspectivas mais luminosas na sua intervenção.»

As intervenções sobre o tema das Jornadas iniciaram-se precisamente com a Profª Maria Esther Maciel, da Universidade Federal de Minas Gerais, que há anos se dedica à temática da «Zooliteratura», do «animal escrito» na literatura universal. Partindo do que, recorrendo a um conceito de Roland Barthes, considerou ser a escrita «atópica» de Maria Gabriela Llansol, e lançando mão da ideia seminal do lugar essencial do texto poético no tratamento do animal, teceu considerações sobre «O animal-fulgor: Breves incursões no espaço zoo de Maria Gabriela Llansol», tomando como exemplo paradigmático do animal como meio de subversão da escrita o livro Amar um Cão, e outros textos dos cadernos de inéditos.

João Barrento e Maria Esther Maciel

Por seu lado, João Barrento (na intervenção que intitulou: «Figuras do Aberto: Os animais do Texto e o Texto-animal») perspectivou, na sua ampla diversidade, as figuras de animais em toda a Obra de Llansol, esboçando uma tipologia do «bestiário poético» llansoliano, que comentou a partir da noção rilkeana (e, por contraste, heideggeriana) do Aberto. Para chegar, finalmente, à própria condição animal, de coisa viva, que é a do Texto para Llansol, bem cedo expressa já em Causa Amante: «era uma vez um animal chamado escrita...».

No segundo painel, que reuniu dois escritores muito próximos da Obra e da pessoa humana de Maria Gabriela Llansol – Hélia Correia (com o texto «Outra ocupação da terra») e José Manuel Vasconcelos (com «O convívio perfeito») –, as intervenções trouxeram registos diferentes, mas complementares. 

Hélia Correia deu-nos a ouvir um texto poético, sensível e sempre pensado com Maria Gabriela e os seus animais – que num dado momento, depois da partida da «madrinha» Gabriela, foram também da Hélia: primeiro, com a reescrita de Amar um Cão para os mais pequenos, depois com o acolhimento da última gata, Melissa. E a partir desta dupla referência se construiu a deambulação de Hélia Correia sobre os animais no mundo da vida e na escrita da «dama singular».

Hélia Correia e José Manuel Vasconcelos

José Manuel Vasconcelos alargou, com a sua erudição e as suas muitas leituras, o tema do animal escrito a toda a tradição ocidental desde a Antiguidade, recorrendo depois concretamente ao Texto de Llansol, o édito e o inédito (a partir dos três cadernos que acompanharam estas Jornadas), para inserir a nossa autora no contexto de uma «ecoliteratura» contemporânea e para olhar mais de perto algumas das marcas distintivas da figuração animal (do bestiário vivo e do «bestiário pétreo», o dos animais-objectos) na escrita de M. G. Llansol.

A tarde de domingo acolheu o terceiro painel, com o Prof. Jorge Leandro Rosa (do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto) e a poeta Maria Brás Ferreira (autora dos livros de poesia Hidrogénio [2020] e Rasura [2021]).

Jorge Leandro Rosa (com o texto «Lançar-se adiante das significações: Os animais e o pensamento») começou por recuar até aos primórdios da «Geografia de Rebeldes» para situar Llansol numa linha da «Modernidade» que vem do século XVI e poderá clarificar o sentido de actualidade da sua Obra como «literatura que está de saída» (da norma e do cânone) e se projecta em horizontes-outros, nomeadamente no que ao tema destas Jornadas diz respeito. Interrogando-se sobre o que é um animal, para chegar à sua definição no universo de Llansol, Jorge Leandro responde (com filósofos como Husserl e Hans Jonas): o animal é um ser em movimento, um movimento capaz de «fazer mundo». E toda a sua intervenção teve como centro uma ontologia do movimento, uma permanente oscilação entre o movimento vivo no mundo animal e o curso antagónico da História – com o Texto de Llansol como referência.

Maria Brás Ferreira e Jorge Leandro Rosa

A poeta Maria Brás Ferreira (com o contributo «A escrita do instinto, ou O arquétipo plural do bando») propôs-se comentar a «cosmogonia futurante» (actualizante?) de Llansol a partir do papel «instigador» e iluminador (mas não necessariamente «inspirador») do animal para este Texto e o sentido do Ser que ele propõe, essencialmente por via dos sentidos – o olhar, o tacto, a escuta, vias privilegiadas do agir animal e de a eles chegarmos. Para concluir que as figuras animais nesta escrita configuram «o nascimento da voz» – o oposto de uma língua(gem) normativa ou mesmo morta, que em Llansol é veículo de um «mais-saber».


A tarde de sábado incluiu ainda a apresentação dos dois mais recentes livros de e sobre Llansol: o Livro de Horas IX  (Um Conjunto de Espirais. 1985-1990, da Assírio & Alvim)  e o  25º volume da colecção «Rio da Escrita»  (edição Mariposa Azual / Espaço Llansol) que  documenta  as  Jornadas de 2022: Os Jardins de Llansol: Uma imagem do mundo.

 

Deixamos aqui o link para o video que João Barrento montou para documentar com textos do Livro de Horas IX e imagens do arquivo os lugares de Llansol em Colares, depois do regresso do exílio, a partir dos três tópicos que – para além da escrita preparatória dos três livros que viriam no início dos anos 90: Um Beijo Dado Mais Tarde, Amar um Cão e Hölder, de Hölderlin – ocupam uma boa parte da reflexão de Maria Gabriela Llansol neste novo livro de inéditos: a casa (e os seus animais), a «floresta» (o pinhal de Colares) e o mar.

https://vimeo.com/877559907?share=copy

(Link para o video «Casa-Floresta-Mar»)

As Jornadas encerraram, como habitualmente, com a leitura, pelas jovens actrizes Eva Dória e Anita Ribeiro, de textos inéditos de Llansol sobre a temática do animal: «O prazer do reino animal» (por Eva Dória) e «O livro dos animais no deserto» (por Anita Ribeiro).

 
Eva Dória e Anita Ribeiro

Antes das leituras, João Barrento apresentou o video Jade: Um ser sendo..., em que Maria Gabriela Llansol comenta a figura do cão Jade, em gravações recuperadas dos encontros do Grupo de Estudos Llansolianos em 2005-06, onde falou largamente sobre a noção de «figura» na sua escrita, a partir do exemplo do cão Jade. O video integra a composição musical de João Madureira «Inscrição», feita por essa altura a partir do livro Amar um Cão (a transcrição completa dessas conversas está disponível no livro O que é uma Figura? - Diálogos sobre a Obra de Maria Gabriela Llansol na Casa da Saudação, Mariposa Azual, 2009).

https://vimeo.com/877566248?share=copy

(Link para o Video «Jade-Um ser sendo»)


AS EXPOSIÇÕES






Exposição de materiais do espólio sobre o tema:

- Animais-objectos («Animais da casa»)

- Cadernos com escrita e desenhos sobre animais

- Livros sobre o tema na biblioteca de M.G. Llansol

- Fotografias de animais e de Llansol com alguns deles 

(«O mundo amante dos animais»)

9.10.23

«O PRAZER DO REINO ANIMAL»

Um Bestiário-Llansol

As XIV Jornadas Llansolianas deste ano, nos dias 21 e 22 de Outubro, serão dedicadas ao tema dos animais na vida, na Obra, nas casas de Maria Gabriela Llansol. Trata-se de um tema que acompanha a escritora desde a infância, e que tem lugar privilegiado na sua escrita, um «bestiário poético» multifacetado que as intervenções dos vários legentes de Llansol (quase todos também poetas) iluminarão nos mais diversos tons.



Documentámos o tema em três cadernos (capas em baixo), que estarão disponíveis durante as Jornadas. Deixamos aqui o cartaz com o Programa completo, e solicitamos aos interessados na visita guiada à Casa e ao espólio de Llansol, no domingo 22, de manhã, o favor de se inscreverem pelo nosso e-mail (espacollansol@gmail.com) até sexta-feira, 20 de Outubro.


8.10.23

UMA TARDE DE IMERSÃO NO AZUL...


Ontem, num Espaço Llansol imerso «num azul ameno», João Barrento situou a escrita e a vida de Maria Gabriela Llansol numa tradição que vem de Novalis e do Romantismo alemão, nomeadamente de uma das figuras da sua Obra envolvidas num fascínio enigmático como o do Azul, a do poeta Hölderlin, que «a si mesmo se tomava por um rirmo poético fugindo», escreve Llansol num dos seus cadernos.

Os dois videos que se podem ver clicando nos links em baixo foram amplamente comentados na intervenção que os acompanhou e iluminou, a que João Barrento deu o título «A cor que nos leva para lá das coisas», partindo do fragmento seguinte de Novalis, de uma inegável actualidade: «Amigos, o solo é pobre, precisamos de lançar muitas sementes para obter modestas colheitas. Procuramos por toda a parte o que está para lá das coisas, e o que encontramos são apenas coisas».

Maria Gabriela Llansol é o exemplo mais acabado de alguém que, pela escrita, sempre buscou e procurou entender o que está para lá das coisas – partindo sempre delas e da sua imanência falante. E no espectro das cores, o Azul, com todas as suas tonalidades, tem sido desde sempre visto como aquela que mais naturalmente proporciona esse salto para o que está mais além, o infinito, o horizonte do sonho – ou a «gruta interior», ela também tão perto e tão longe...


Exposição de objectos, livros e cadernos do espólio de M. G. Llansol

Os textos dos «Poetas da Flor Azul», no primeiro video, e os de Llansol no segundo, poderão sugerir as múltiplas valências, poéticas, psicológicas e artísticas, desta cor que, como já a via Goethe na sua Teoria das Cores, e também Llansol nos seus livros, pode ir do fulgor da luz às trevas do luto.

Link para o video «Poetas da Flor Azul»:

https://vimeo.com/872267959?share=copy

Link para o video «O Azul não tem origem...»:

https://vimeo.com/872266991?share=copy

27.9.23

 «O AZUL NÃO TEM ORIGEM...»

Llansol e a tradição da Flor Azul


No próximo sábado, 7 de Outubro, pelas 17 horas, o Espaço Llansol veste-se de azul. Iremos falar do lugar do Azul na Obra de Maria Gabriela Llansol, inserindo-a numa tradição de dois séculos que ela também assimila, abrindo o tema do azul para diversos campos de sentido e simbologias. A presença da cor azul na sua Obra será dada a ver e ouvir num video de cerca de meia hora, com seis secções que inegram textos sesus, a sua voz a lê-los, imagens do seu universo e música adequada a cada secção:

0 - O lugar da Flor Azul

I - «O Azul anda comigo...»

II - «Eu sou uma coleccionadora de azul...»

III - «O azul do quarto»

IV - O Azul Imnperfeito, o Falcão e a «consciência azul»

V - O luto também pode ser azul

Teremos um desdobrável com os textos lidos no video, acompanhado de doze postais com poemas de «Poetas da Flor Azul», que também serão lidos na sessão.

18.9.23

BIOGRAFIA DA INFÂNCIA

Um projecto inacabado de Llansol

Retomámos as actividades públicas no passado sábado, com a sessão sobre «O Álbum do Bebé - Biografia da infância (Um projecto llansoliano)». Iniciámos a sessão com a projecção do video (de João Barrento) que faz a síntese deste projecto que Llansol esboça em 1969, no exílio da Bélgica, mas não conclui. O video pode ser visto clicando no seguinte link:

https://vimeo.com/manage/videos/865256930

O essencial da sessão foi depois ocupado pelos comentários da psicanalista e investigadora brasileira Janniny Kierniew (da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que situaram o projecto numa dupla perspectiva: as leituras de literatura psicanalítica, linguística, semiológica feitas por Llansol nesses anos, e a própria Obra da autora, com referência a dois livros em que a matéria é retomada: Um Beijo Dado Mais Tarde (1990) e O Jogo da Liberdade da Alma (2003). Deixamos aqui algumas das considerações da nossa convidada, e imagens da habitual exposição com materiais do espólio relacionados com o tema.


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João Barrento e Janniny Kierniew


«Será que os objectos herdados podem ser os contornos das confidências incompletas?»: 

Llansol, o Álbum do Bebé e a psicanálise 

1.

A primeira vez que me confrontei com o Álbum do bebé foi em uma manhã de Primavera: toquei o álbum, senti sua textura, observei o leve fino papel que separa as páginas, notei que é um tecido de seda fino que desenha uma teia de aranha, tramas … Mantive a atenção em cada rosto impresso nas imagens, notei cada desenho da letra no papel; riscos que pedem a decifração de um gesto firme, que não recua diante da página. E saio a pensar que este objecto, o álbum, enquanto livro, havia passado pelas mãos de Llansol, pelas mãos do seu pai e pelas mãos de outras tantas pessoas que fizeram parte, ou não, da história de sua vida. Estava diante de um objecto herdado, que momentaneamente, naquele curto espaço de tempo, parecia materializar o que Walter Benjamin diz sobre o Angelus novus, ou o anjo da História: uma figura que tinha os olhos no passado, mas o corpo completamente voltado para o presente, e também para o futuro. Estava diante de um começo precioso, como todo o começo o é...

Decidi dar um título ao comentário de hoje, a partir de uma uma pergunta feita por Maria Gabriela Llansol no livro Um Beijo Dado Mais Tarde: «Será que os objectos herdados podem ser os contornos das confidências incompletas?» Um Beijo Dado Mais Tarde foi um livro escrito muito tempo depois do reencontro de Llansol com o Álbum do bebé e com as suas leituras de psicanálise e, também, da sua própria análise. É um livro que carrega consigo ressonâncias desses tempos, e que hoje serão uma espécie de guia, compondo palavras-bússolas luminosas pelo labirinto do desconhecido, ou pelo bosque das «confidências incompletas». 


2. 

Parto então, de alguns registos de Llansol: 


O primeiro, dos Escritos de Lacan, «A instância da letra no inconsciente e a razão desde Freud»: 


O segundo: uma reflexão de Llansol no caderno (2.02):


O terceiro: «escrever é dar existência às estruturas (escondidas) da linguagem»: 

 

O quarto: «Pretendo encontrar a relação entre o sujeito deste texto (o pai) e o significante (o filho) de modo a estabelecer aproximadamente o padrão da sociedade burguesa dos anos de 1931-34»:



3. 

Sabemos que a psicanálise emerge no início do século XX como resposta ao mal-estar produzido pelo modelo familiar burguês. Nada mais estruturado do que a família vitoriana do final do século XIX, quando Freud descobriu o sintoma neurótico e inventou a psicanálise. Esta foi a família que produziu o sofrimento neurótico que se manifestou por toda a Europa recém-industrializada. Temos, assim, a invenção da psicanálise como escuta e tentativa de resposta a este mal-estar. Ou seja, as modalidades de sofrimento abordadas pela psicanálise são indissociáveis de uma certa estrutura familiar. Pontuo, assim, que a psicanálise constrói-se banhada pelos estudos antropológicos, históricos, mitológicos e literários de forma a pensar e trabalhar com a cultura e seus desdobramentos. Estudos sociais e culturais que ajudam a perceber o sujeito como tal, mergulhando no caldo da cultura que o antecede. Um sujeito que pode constituir seu nome próprio, mas que por vezes é servo de um discurso. Llansol capta esse movimento (sujeito e cultura), percebe a sua relação com as origens da incomunicabilidade individual e social, tenta proceder à leitura de um álbum que dá notícia de uma família burguesa, capaz de inscrever a direcção do crescimento da criança. De uma forma ou de outra o que fica nos registos dos seus cadernos é o interesse pelo sintoma de uma época e de uma família. Temos assim, um olhar para as origens que estão sempre em relação com esse grande Outro (como diz Lacan – esse Outro maiúsculo, da cultura), uma constituição subjectiva que acontece a partir de uma inscrição que é anterior ao próprio sujeito. 

Em Um Beijo Dado Mais Tarde, Llansol escreve: «Eu ainda não nasci, e é essa a parte mais comovente e íntima desta linguagem. Estou a ouvir o que dizem, compondo com as mãos meus ouvidos e minha cabeça, próximo da concha improvisada onde dormem os amantes deste quarto. Não há um nem há outro, há um clarão que excede o brilho, e que une esta noite a um vestido.»

As origens. Raízes. O que é que vem do Outro, antes mesmo de eu nascer e que já me nomeia? Que me dá um lugar? Um clarão que excede o brilho? O que posso escutar com as mãos nos meus ouvidos e na minha cabeça, próximo da concha improvisada antes mesmo de nascer? Que linguagem do mundo – familiar e social – me constitui? 

Llansol anota: Projecto: análise de como a criança é falada e o seu sujeito subvertido



Ao ler Lacan, algumas anotações dos cadernos de Llansol nos levam a textos como a «A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud», «Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise» e «O estádio do espelho na formação do eu»… Não cabe aqui entrar na minúcia destes textos. O que importa como «urgente abertura» é colher as ligações da leitura do Álbum do bebé e os pressupostos da psicanálise, que nos levem ao que é articulado como noção alternativa de uma biografia, ou como, em Inquérito às Quatro Confidências, a escrita de uma signografia, um registo de sinais próprios para além de um nome. Em psicanálise, diríamos: «Prática da Letra». 

No texto «O estádio do espelho...», texto de 1936, Lacan retoma a cena do bebé que se vê diante de um espelho, o bebé que fica jubilado com a imagem que vê. O adulto mais próximo começa então a nomear essa imagem que é reflectida. Dá contornos simbólicos a essa criatura que está ali. Bordas possíveis de um discurso sobre seu nome próprio e seu ser e sua existência. É um pouco o que o Álbum do bebé regista: «fazer a história do sujeito, o seu filho, num livro que guarde a sua memória. Mas, com este processo, o que irá inscrever é a direcção obrigatória do seu crescimento». A criança se reconhece pelo olhar do outro. É quando o cuidador de uma criança olha para ela e a define pelo discurso (por exemplo: diz que a criança é brincalhona... ou chorona... ou muito calma... ou alta... ou baixa...) que capta uma imagem que a inscreve em uma cadeia de significação. Um significante, uma palavra que vai então gerar um significado. Este é o Álbum do bebé que Llansol viu, como se «inscrevesse uma direcção obrigatória no seu crescimento».

Como introduzir outros significantes e significações para si, como sair desse lugar determinado e determinista, alienado, escrevendo a sua própria signografia? Como se apropriar do nome herdado para inscrever um nome próprio? Tudo isto pode ser uma possível proposta llansoniana. 

Ainda uma anotação, a propósito da metáfora paterna. Na articulação com a linguística, Lacan recorre ao conceito de metáfora para descrever a operação de entrada da função do pai no universo do sujeito. A estrutura básica da metáfora é a da substituição significante: uma palavra por outra. Quando alguém utiliza uma metáfora, um significante substitui outro que permanece oculto, mas se mantém presente em sua conexão com o restante do discurso. A metáfora permite que conexões de sentido pré-estabelecidas sejam desatadas: fabrica novas significações, desamarra significados fixos e abre outros novos. Com a metáfora, o significante é arrancado de suas conexões lexicais habituais, gerando um campo de possibilidade de criação. O descolamento do sujeito em relação à significação inicial, operado pela metáfora paterna, permite que a cadeia significante se flexibilize e se amplie, abrindo a possibilidade de novas significações com toda a riqueza que caracteriza a estrutura metafórica. Dessa forma, dá-se ao sujeito seu pleno acesso ao simbólico, rompe-se a sua sujeição primordial, o que lhe confere o estatuto de sujeito do desejo. Llansol escreve, em Um Beijo Dado Mais Tarde: «É ponto de honra lutar pelo esplendor da língua [...] A voz de meu Pai tem de ser modificada. Pai nosso que estais no céu, seja feita, seja feita toda a verdade sobre a vossa figura... [...]. Esse Pai eterno, de olho fechado, que fingira não ver, não queria trazê-lo comigo. Mas ele era meu, por herança, legível em palavra sobre a face do testamento. Volto a repetir: como separar de mim este fruto? Onde encontrar o fio de melodia minúscula que me conduza à clareira onde outro Pai que não este queira ficar comigo?»

Para concluir estas breves reflexões, ainda uma consideração sobre o texto A instância da letra e a razão desde Freud, que Llansol lê e anota. Nessa altura do ensino de Lacan ele já havia explorado amplamente a tese de que o inconsciente é estruturado como linguagem (ideia iniciada já no texto de 1936, sobre o estádio do espelho) – com a definição de uma estrutura de discurso que implica o lugar de um agente que se dirige a um outro, a lógica do significante se estende para além da constituição do inconsciente individual e passa a ser concebida também como decisiva na composição do laço social. A linguagem ganha um estatuto fundamental. É pela via da escrita que se desempenha um papel fundamental na expressão e compreensão do inconsciente, servindo como um meio de representação simbólica daquilo que por vezes não se entende a priori ou fica na zona da incomunicabilidade – as confidências incompletas. É nesse texto também que Lacan aproxima a psicanálise da literatura, ampliando a ideia de uma zona de litoral, quase como o encontro de mar e areia, que deixa uma marca na superfície sem seja propriamente uma definição; é uma zona em que se molham e misturam. A linguagem é este universal do qual o sujeito é o singular. Em O Jogo da Liberdade da Alma lemos:


Para finalizar volto à questão inicial, que deu título à fala de hoje: Será que os objectos herdados podem ser os contornos das confidências incompletas? E lanço ainda outra questão: O que é que se herda? O que se pode herdar de um pai? Nesta outra passagem de O Jogo da Liberdade da Alma pode aflorar uma resposta:


Faço ainda uma referência a René Char, poeta francês, que dirá que «a nossa herança não é precedida por nenhum testamento», sugerindo que aquilo que herdamos nem sempre é nomeado. São contornos das confidências incompletas. Para ele, aquilo que herdamos não é, muitas vezes, nem nomeável nem apreensível de forma inequívoca. Porquê? Desde logo herdamos esquecimentos – e eles são tantos – em número semelhante às lembranças. É por isso que os álbuns também existem. Mas ao invés de serem livros que determinam uma direcção obrigatória no crescimento individual, Llansol parece dizer que eles podem funcionar como testemunho de uma narrativa que conta uma história, sem determiná-la. Um testemunho que é testamento e que possibilita, pelo olhar do outro, o encontro de caminhos para narrar-se, inventar um nome próprio, quiçá uma signografia. Com Llansol, é preciso lembrar: Descendemos de uma genealogia e, mesmo, de várias que se emaranham umas nas outras. 

Mas para além disso herdamos palavras e silêncios, confidências incompletas, e talvez, nessa brecha entre um passado e um futuro, na hesitação entre correr ou ficar, possamos nomear uma restante vida.