A MÚSICA OCULTA DO MUNDO
Rilke e Llansol
Na reabertura das actividades públicas do Espaço Llansol, falámos no passado sábado da presença de Rilke no universo de escrita e de leituras de Maria Gabriela Llansol. Diogo Dória leu alguns dos poemas franceses na tradução de Llansol (na selecção que intitulou Frutos e Apontamentos), Anita Ribeiro e Eva Dória deram-nos a sua leitura de fragmentos da terceira edição do livro de Rilke Notas sobre a Melodia das Coisas (Ed. Alambique), e ouvimos ainda, em gravação, parte da Oitava Elegia de Rilke lida por João Barrento (na tradução que ofereceu a Maria Gabriela em 2003); e, a fechar a sessão, o segundo andamento da Pastoral de Beethoven, para tentarmos captar nas suas notas a música perdida do mundo de que fala Rilke.
João Barrento comentou largamente a relação de Llansol com a Obra de Rilke a partir de 1966, e destacou em especial os evidentes paralelos de muita da sua escrita com as propostas de Rilke nas suas Notas... Deixamos aqui, para quem não pôde estar presente, a síntese que se pode ler na introdução ao Caderno que acompanhou esta sessão.
A relação, e algum fascínio, de Maria Gabriela Llansol com a Obra de Rilke vem já dos anos do exílio belga (vd. as anotações em Finita, sobre a Correspondência e os Diários), intensifica-se mais tarde, durante a fase de tradução dos poemas franceses, que resulta no volume Frutos e Apontamentos (Relógio d'Água, 1996), e regressa nos últimos anos, com Rilke como um dos muitos compagnons de route (e de escrita e pensamento), entre Onde Vais, Drama-Poesia? e o livro final, Os Cantores de Leitura. Este caderno documenta esse percurso, e é possível descobrir nele um filão que hoje nos interessa particularmente, no momento em que sai a terceira edição portuguesa desse fascinante «ensaio» (melhor, conjunto de fragmentos) de Rilke que evidencia de forma muito clara reveladores paralelos com Llansol. De facto, as Notas... de Rilke propõem, como Maria Gabriela, uma leitura do mundo em sobreimpressão, em dobra e a contrapelo dos olhares mais correntes sobre as coisas – que, olhando-as, não as vêem, incapazes que são de ver e compreender essa grande melodia que
A flagrante actualidade (e necessidade) destas Notas... de Rilke reside, paradoxalmente, na sua evidente inactualidade. Poucos seguem hoje por estes atalhos, que abrem perspectivas que o modo actual de «estar aí» não conhece. As Notas... são uma pequena partitura – que fala sem palavras e não precisa de maestro – para escutar a música oculta do mundo, algo que também Llansol bem conhece e explora na sua escrita. Já em Fevereiro de 1977, na Bélgica, anota: «A prosa de Rilke foi-nos deixada: 'O Homem... está posto entre as coisas como uma coisa, infinitamente só, e toda a comunidade se retirou das coisas e dos homens, para a profundeza comum onde crescem as raízes de tudo o que crê'».
Há, para ambos, qualquer coisa que, nas coisas, fala de um fundo ou da distância, e exige ouvidos e olhos disponíveis e atentos: é o fio do entresser, a mais-paisagem, o sopro do Há que tudo envolve (podia também ser a aura de Walter Benjamin, uma qualquer origem aparentemente inatingível, mas a que podemos chegar seguindo vestígios concretos, «o aparecimento único de algo distante, por muito perto que esteja», a resposta das coisas ao olhar...). Em Llansol, a melodia de Rilke é ainda o brumor vago e envolvente da lonjura, que todos poderiam ouvir, mas só alguns captam. Do mesmo modo, se fôssemos árvores (e de facto somos árvores, plantadas no húmus do tempo e da memória!), já poucos saberiam que têm uma raiz. Basta-lhes a dança frenética dos dias e o rumorejar da folhagem – o que há de mais caduco e exterior, na árvore e nos humanos.
Em Rilke, o outro nome da «melodia das coisas» é o Aberto, o «vazio sem negação» da Oitava Elegia, que o animal capta, mas nós somos incapazes de aperceber e preencher. O Aberto, dirá Llansol, é uma espécie de lugar «fora do tempo», um «ponto voraz» que atrai só alguns e exige uma «mudança qualitativa do tempo». Esses formam, no Texto de Llansol, a comunidade dos «absolutamente sós». Também o Rilke das Notas imagina uma tal comunidade: o fio condutor da sua reflexão é o da busca de uma explicação, ou intuição, dos elos que ligam o infinitamente pequeno ao infinitamente grande, o particular ao universal, o indivíduo ao cosmos, o uno ao múltiplo – ou, como também em M. G. Llansol na sua «comunidade do sem», a busca dos veios de ligação entre as vozes singulares e a grande melodia de fundo, que permite o acesso às raízes perdidas. É, afinal, também esta a melodia que atravessa o último livro que publicou em vida, Os Cantores de Leitura. E que, como no Rilke d' O Livro das Imagens (e em tanta figura llansoliana: Eckhart, Spinoza, os místicos...), permite superar a «clivagem dos reinos» e desempenhar melhor o nosso papel no grande palco do mundo, para lá do império do ruído, do absurdo da guerra, do vazio de sentido. Saberíamos assim talvez, como Maria Gabriela Llansol, que afinal não estamos sós, se soubermos ouvir a melodia da «palavra no silêncio a crescer».