MÁQUINAS DA IMAGINAÇÃO
Os «Atlas» de Warburg e Llansol
A sessão de sábado passado convocou mais um «encontro improvável» entre o universo Llansol e outros, afins, neste caso o do «Atlas da memória das imagens» do historiador de arte Aby Warburg. A matéria começou por ser comentada, com referência a Warburg, por António Guerreiro, autor do único livro português sobre esta figura tão original da história da cultura: O Demónio das Imagens. Sobre Aby Warburg (Edição Língua Morta, 2018).
João Barrento e António Guerreiro
António Guerreiro comentou amplamente as noções centrais do pensamento de Warburg, a partir da sua releitura da História (na sua relação com a memória que reabilita e actualiza momentos do passado), de uma teoria da imagem para além da iconologia e da história da arte, de uma ideia da biblioteca como reserva viva e móvel (e não como mero depósito), da imagem não estática mas possuída de uma energia que vem das suas origens e a traz a outros presentes, num processo que lhe confere uma «vida póstuma» (Nachleben). A ideia do «Atlas» assenta, assim, sobre o pressuposto da disponibilidade de toda a matéria cultural para entrar em novas constelações. E poder ser lida à luz de «sinais», gestos, comportamentos de sentido trans-histórico, universal, que inserem a vida das imagens num processo an-acrónico de fórmulas dinâmicas (em Warburg, a «fórmula de pathos», i. é, do dinamismo das imagens, dos ritos e dos mitos) que suscita a metamorfose dessas imagens em configurações e constelações sempre novas a partir de uma origem, segundo uma lei da «boa vizinhança» (e não da ordem lógica) e da possibilidade de súbitas e inesperadas «aparições».
Por sua vez João Barrento propôs um modelo de configuração possível de um «Atlas-Llansol» que abarcaria todo o seu universo de escrita e de vida, hoje reconstituível a partir do seu espólio. Resumem-se a seguir os principais momentos desta intervenção, acompanhada por uma apresentação em Power Point, aqui convertida no video que se pode ver no fim.
O primeiro «atlas» que o Espaço Llansol apresentou, mas que não se chamava assim, foi a grande exposição intitulada – significativamente – «Sobreimpressões», que deu a ver no Centro Cultural de Belém (em 2011), em seis «Lugares» (espaços em que vários tempos, figuras e realidades coexistem!), o grande painel das principais figuras europeias de Llansol, trazidas dos mais diversos tempos e latitudes ao espaço textual das duas primeiras trilogias e alguns outros livros (vd., no video, o «triângulo do mundo figural» europeu). Aí se traçaram as paisagens, as ligações inesperadas, as sobre-impressões de lugares e tempos históricos que geravam constelações surpreendentes…
Mas hoje será preciso redefinir o termo e o âmbito do «Atlas», no universo Llansol: nomeadamente no sentido de uma construção global e interrelacional de todas as esferas do seu universo. Como uma constelação (termo também caro a Warburg, ou a Walter Benjamin) com várias mónadas disponíveis para diferentes leituras, «funcionalidades» e destinos – atributos, gestos, perfis afectivos novos: uma outra forma de pathos! E indo talvez além da dupla articulação de Warburg (a sua noção de «polaridade»), que trabalha essencialmente com a imagem (o «Atlas Mnemosina das imagens») e a Biblioteca (que abarcava todo o espaço de uma ampla «ciência da cultura» – de facto, uma ciência «ainda sem nome»), e com base numa dialéctica dos contrastes...
No espólio de Llansol, as coisas apresentam-se de maneira diferente, como se vê neste possível «organigrama» (Warburg chamar-lhe-ia «dinamograma») de todo o espólio/Atlas, que seria preciso animar, mostrando a interacção entre todos os sectores:
Um possível Atlas-Llansol seria, assim, um universo irradiante e sem fronteiras em que tudo tem a ver com tudo, tudo se interpenetra, cruza e ilumina mutuamente, segundo duas leis determinantes: a relação (o link no domínio hipertextual/ hipervisual) e a metamorfose.
Esse Atlas-Llansol, uma ideia que exige meios técnicos próprios para se concretizar, terá de convocar, em formas diversas de apresentação e exposição, todo o universo físico reconstituível do arquivo/espólio (os objectos-figura), nas suas ligações com o da escrita (cadernos, agendas, dossiers, avulsos, blocos), das leituras (a biblioteca, os jornais, a correspondência), das escolhas (tão pessoais e singulares) de iconografia, de música, de cinema que nos chegaram e que atravessam o próprio corpo da escrita de Llansol; mas também todos os lugares que esse corpo conheceu – Lisboa, vários da Bélgica, Colares, Sintra, e todos os pequenos e grandes mundos circundantes: o Béguinage de Bruges, os cafés ou o pinhal de Colares ou a Volta do Duche de Sintra –, as muitas casas que viram nascer a escrita desde a infância (e que só por si merecem um atlas próprio), a experiência das escolas, em Lisboa e na Bélgica, a presença constante de animais e plantas, etc…
A exposição que reconstituiu o Atlas do mundo figural de Llansol
A questão que se coloca é: Como dar forma sensível e apreensível a um tal espaço-tempo? Como figurar e relacionar tanta experiência de vida escrita? A Maria Gabriela parece ter consciência desta necessidade de preservar, e mesmo arquivar, para depois permitir uma tal con-figuração global do seu mundo num Atlas abrangente. Alguns momentos do video que aqui se pode ver dão conta desta sua reflexão sobre o «arquivo», a mobilidade da escrita, as constelações móveis que a animam, uma visão da História em que o passado está sempre «em movimento para o presente», propiciando a aparição de constantes «cenas fulgor» (que na nossa conversa relacionámos com a noção de pathos em Warburg).
Mas em cada um desses sectores há cruzamentos de vária ordem: um caderno contém desenhos, os objectos «nómadas» passaram para os livros, as fotografias remetem para lugares de vida e escrita, a correspondência reflecte a exterioridade do trabalho literário, a iconografia encontra-se com figuras da Obra, com relações pessoais, com gostos estéticos, uma cassette de música gregoriana vai dar a uma página de diário, etc, etc.
As imagens ilustrativas do video são meramente exemplificativas de uma determinada realidade de escrita ou biográfica, mas podem multiplicar-se por muitas outras possíveis. Por isso, o processo mais adequado de construir um futuro Atlas-Llansol global será provavelmente o de um hipertexto visual-escritural, sendo que «texto» teria de ter aqui o sentido original de tecido, textura que tudo absorve! Nos tempos de Warburg, há um século, e já muito antes, o instrumento disponível para este fim, no que à escrita diz respeito, era a caixa de fichas, também ela uma máquina da imaginação, um dispositivo móvel e dinâmico que permite constantes mudanças de lugar e vizinhanças e a organização flexível do pensamento.
Os quadros no video mostram os diversos territórios deste espólio, e também é possível distinguir logo neles vários caminhos, escalas e cruzamentos diferentes: a planície sem fim dos suportes da escrita, os amplos salões da leitura, as aprazíveis alamedas das imagens (fotografias, iconografia), os atalhos dispersos dos sons (música de vária ordem, em diversos suportes: falaremos disso na próxima sessão!), a floresta colorida dos objectos, sempre disponiveis para entrar no reino figural; os lugares e as casas (também as escolas) de um quotidiano vivido entre o corpo, a imaginação e os afectos; enfim, os animais e as plantas que invadem este território textual de muitas tonalidades e aberto a todo o ser – também ele, na escrita de Llansol, de sentido antropológico global, e mesmo cósmico, e não apenas histórico e social.
Link para o video «O Atlas-Llansol»: https://vimeo.com/manage/videos/942989379