12.4.23

 LLANSOL: A PULSÃO EPISTOLAR


Damos conta do que foi dito na apresentação do livro Todos os Dias uma Carta, que reune correspondência de Maria Gabriela Llansol entre 1967 e 2005 (apresentado ontem na Livraria Tigre de Papel, em Lisboa, por Helena Vieira e João Barrento, com leituras de algumas cartas por Fernando Ramalho. Uma dessas cartas, a Eduardo Lourenço, reproduz-se também aqui).

Este novo volume da colecção «Rio da Escrita» (o nº 24), que o Espaço Llansol vem editando com a Editora Mariposa Azual desde 2008, é um livro muito especial, a par de um outro, que reune as Entrevistas de M. G. Llansol. Não muitas, que a Autora nunca foi muito dada à feira das vaidades literárias, mas iluminantes, como esta selecção de cartas. Trata-se de livros que ajudam a compreender melhor todo um percurso de escrita, uma Obra e uma vida, também relações afectivas que esta autora singular sempre privilegiou. Também estas não muitas, e quase todas nos vão sendo reveladas pelas cartas que este novo livro contém.

Trata-se, naturalmente, de uma selecção. No espólio de M. G. Llansol encontramos muito mais correspondência, mas sobretudo de carácter familiar ou institucional. Bastante menos correspondência com figuras do mundo literário, português ou outro – o que se explica pelo isolamento, sem fechamento total, em que a autora viveu, no exílio e depois dele. Mas desde cedo que aparecem nomes importantes da literatura ou da crítica, a certa altura também da tradução de algumas obras para francês ou alemão. Acontece, no entanto, que metade da vida literária de Llansol é a dos vinte anos de exílio na Bélgica, com muito poucas ligações ao universo literário português. A primeira secção («O exílio: Tempo de espera») documenta bem as dificuldades de encontrar editor para os primeiros livros, os da primeira e segunda trilogias, todos escritos no exílio belga, entre os anos 70 e a primeira metade de 80. E à medida que avançamos na leitura começamos a perceber como estas cartas não são mera correspondência de circunstância, mas, como acontece também com os milhares de páginas dos diários de Llansol, um repositório de ideias, um espelho da pogressão de uma Obra, um registo diário de experiências que revelam muito dos interesses, das obsessões pessoais e das vicissitudes da vida literária desta autora que a si mesma se vê, de forma viva, como «um corp' a 'screver».

O título que encontrei (que a Maria Gabriela me ofereceu, como quase todos os desta colecção!) para esta selecção de cartas é o de um texto em que a autora imagina uma troca de cartas fictícias com a escritora belga Marguerite Yourcenar, «Todos os dias uma carta», que seria publicado na revista Vida Mundial em Dezembro de 1997 (e que a Introdução clarifica melhor).

Pareceu-nos que haveria interesse em destacar este lado ainda não conhecido de Llansol, a sua pulsão epistolar, «o discurso ritual da manhã» ou, como ela escreve numa das suas agendas, «o grande desejo de escrever cartas e guardar as cópias». De facto, ela guardou muitas cópias, manuscritas (nos cadernos) ou já saídas da máquina de escrever, e foi isso que facilitou a minha tarefa de organização deste livro. A atracção pela escrita epistolar – mais do que pela comunicação oral e rápida do telefonema, que se esfuma e não fica disponível para releitura – aparece por mais de uma vez expressa nestas cartas, que não são simples meio de informação, mas registos de pensamento, ensaios de escrita, testemunho de relações de afecto. Também, por vezes, escrita poética («A verdadeira carta é por natureza escrita poética» – Novalis, citado por Llansol num dos seus cadernos, sem 1992). A atracção pela carta é assim expressa também num desses muitos cadernos, de 1981:

Com uma carta é diferente [diferente de um telefonema], estende-se uma longa teia, se se quiser. E relê-se. E a cada releitura fica-se tão próximo, e encontra-se um novo sentido imaginário, possível. São asssim as cartas de C[hristine] [e, poderíamos dizer, as de Gabi para essa amiga da Bélgica, e outros!]. O ouvido, a vista, o olfacto, o tacto, o entendimento. Mas, o que é que capta a carta? Certamente as leituras sucessivas, as aproximações da necessidade de resposta que não surge no imediato, mas mais tarde...

A carta é, assim, também literatura disponível, um «fragmento de secreto que circula» de mim para outro e de mim para mim, como uma página de diário (é assim que elas devem ser lidas). A sequência das quatro partes em que o volume está organizado mostrará claramente como estas cartas não são mero resultado de condicionalismos exteriores de uma vida literária (edição, crítica, leitores, intervenção de artistas...), mas acima de tudo, e frequentemente, «escrita de si» (como da carta diz Foucault) que ilumina os meandros da Obra e das situações concretas em que ela nasce – sem cair no confessionalismo, ou no que Llansol designa de «a mediocridade da autobiografia». O que elas são, acima de tudo — e quem as for lendo apercebe-se facilmente disso — é, entre outros «guias» úteis, um breviário para a leitura de uma Obra, das margens envolventes e dos núcleos irradiantes de uma escrita que se foi fazendo ao longo de quarenta anos, na teia dos dias e «ao fio do corpo».

J. B.



Da carta a Eduardo Lourenço, de 23 de Dezembro de 1988:


Caro Amigo,

 

            junto lhe envio o meu texto da Sorbonne* (...). Faço-o com muita alegria, na lembrança do nosso encontro em Paris, e pela real amabilidade e apoio que, na altura, me manifestou.

            Conheci-o com muito prazer. Tinha a certeza de que, tarde ou cedo, nos haveríamos de encontrar. (...)

            Acho que é altura de deixar de ser vista como escritora hermética. Muito desse suposto hermetismo deve provir, creio eu, da falta de coordenadas de leitura. A maior parte dos portugueses cultos – ou assim ditos – não leram talvez o que eu li. O que não se viveu de idêntico não se pode suprir, mas as bibliotecas podem ser progressivamente substituídas. Penso que o Eduardo poderá ajudar os outros a ler-me.

            Desejo-lhe um bom ano de 1989.

            Com um abraço muito amigo,

MGab. Llansol

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* «Porque não pude deixar de vir», no encontro Les Belles Étrangères, Paris, Outubro de 1988 (incluído em Lisboaleipzig 1 - O encontro inesperado do diverso).