AS OITAVAS JORNADAS LLANSOLIANAS DE SINTRA
Spinoza revisitado
Os dois dias das Jornadas Llansolianas com Spinoza, visto através das lentes de fulgor e dos prismas de pensamento de Maria Gabriela Llansol e Spinoza, só poderiam ser intensos e diversos. A intensidade associou-se ao pensamento vivo que, vindo das duas margens do rio que ia correndo pela «Sala da Clarabóia» do Museu de Sintra, foi iluminando e desdobrando a quadrícula translúcida e porosa, aberta a muitas leituras, da Obra do filósofo, com a «mansidão dos seus raciocínios geométricos» a entrecruzar-se com o «luar libidinal» e a «lei do Vivo» que regem a partitura da escrita de Maria Gabriela Llansol.
O trânsito entre os dois lados do rio foi constante, como tinha de ser, Spinoza alimentando o texto de Llansol, este dando uma nova forma à estética escondida na sua Ética, amplificando os modos do seu entendimento, assimilando os seus ritmos secretos, transformando noções em imagens concretas.
O que levou a Sintra, para nestes dois dias darem testemunho, os que vinham da margem de Spinoza e da Filosofia – Diogo Pires Aurélio, Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Carlos Couto Sequeira Costa, Bruno Béu – e os que viajam mais nas águas do texto de Llansol – Maria Etelvina Santos, Isabel Santiago, Cristiana Vasconcelos Rodrigues ou João Barrento, mas também Pedro Proença e os seus desenhos, António Guerreiro e o seu olhar crítico, o actor Luís Lucas e a sua voz, Daniel Ribeiro Duarte e o seu filme, os artistas do corpo do C.E.M.-Centro em Movimento?
O actor Luís Lucas lê Llansol sob o olhar atento de Spinoza
O que nos moveu a todos foi uma espécie de urgência – um impulso e uma necessidade – que Llansol já conhecia e que a todos animou, incluindo a pequena árvore à sombra da qual falámos, vimos e ouvimos, Prunus triloba spinoziana cruzada de plátano e metrosideros, e cujo tronco, como o de Jodoigne, no exílio da Bélgica, deve ter sentido de novo a mão e o halo de Spinoza, que «tem por hábito deixar-se ficar no tronco, e suscita à volta uma claridade sem limites».
A Maria Gabriela já nos havia aberto o caminho, deixando nele sinais que apenas tivemos de seguir para corresponder ao seu apelo:
Com
Spinoza sucede uma coisa estranha: mal me aproximo dele, do seu texto, suas
ideias, que se distinguem de palavras e imagens, são suficientes para que se
defina claramente no meu campo de trabalho toda uma sequência descritiva…
... era urgente que a nossa passagem por aquele lugar […] fizesse entrar animais, arbustos e galáxias
na espiral de acompanhamento dos homens ou,
... era urgente que a nossa passagem por aquele lugar […] fizesse entrar animais, arbustos e galáxias
na espiral de acompanhamento dos homens ou,
mais simplesmente,
um homem, uma mulher, um cão, um rio. Prunus
Triloba e toda uma paisagem de clareza súbita. Uma página entreabriu-se no
livro, e vimos Spinoza a espreitar-nos com o seu novo olhar, um olhar à cão, e
mal nos reconheceu dizer-nos, ele que, pouco depois, iria expirar
repentinamente de angina de peito, «entrem, entrem, é urgente» […]:
companheiros
filosóficos, amigos e inimigos da filosofia, haveis de inventar uma estética literária para a geometria,
mundos e comunidades singulares…
Tentámos todos inventar, reinventar, dar a ver e a ouvir, uma estética recoberta por uma ética (e vice-versa), reconstituir uma comunidade sempre singular, entreabrir páginas de livros, de cadernos manuscritos, folhas de escrita de onde foi saltando, sob múltiplas formas, «toda uma sequência descritiva» de um sistema-poema escrito a quatro mãos, reescrito a muitas, entre o polidor de lentes em busca da eternidade neste mundo e a escrevente da Sensualética antevista como «a grande descoberta do próximo milénio».
(Veja aqui a exposição de Pedro Proença)
E entre as lupas que pontuavam uma das paredes da sala, os quarenta e oito desenhos de Pedro Proença que as olhavam da outra, e a escrita de Maria Gabriela Llansol patente, nos seus manuscritos, em algumas vitrines colocadas entre as duas, desenrolou-se certamente nestes dois dias (e provavelmente também nas noites em que não assistimos à festa) um jogo e um diálogo, uma dança de olhares e trocas que a batuta de Prunus-Triloba-Metrosideros ia conduzindo, à margem do discurso dos humanos, questionante, empenhado em chegar perto da «ideia adequada» deste encontro (o de Llansol com Spinoza, e o nosso com ambos), aberto às muitas vias de leitura que nele se descortinam. Com as suas palavras, os seus corpos, traços e imagens, que não podiam ser mais do que tacteantes, todos procuraram chegar perto da «ciência intuitiva» do «conhecimento jubiloso», entre o rigor da ideia, a vibração da beleza e a alegria que leva à paisagem onde se pode caminhar e existir sub specie aeternitatis.
Breves momentos da performance «O que pode um corpo?»,
pelo «Pátio–Ajuntamento Performativo», do C.E.M. - Centro em Movimento
Como queria Llansol, que o deixou dito «em escólio»:
Spinoza não era o
sorumbático que se imagina.
Se abro a Reforma do
Entendimento, ouço-o dizer
Distintamente: «Farão os
números, meu amor
Sem quantidade, parte da qualidade? Que achas,
Meu sexo de ler? Se te
oferecer duas
Rosas vermelhas, duas num
único vermelho,
Como reages? Que eu
especulo continuadamente.
Mas quem, senão eu, dispõe
matéria bem criada,
No riste do teu ventre?
Direi em escólio ___ há um
aquém-afecto, a que
Chamo tristeza, há um
além-afecto, que designarei
Por jubiloso conhecimento.
Maria Etelvina Santos: Affectio - Hommage