Mais uma tarde de revelação e iluminação para muitos dos que foram ontem à «Letra E» do Espaço Llansol. A poeta (e professora da Faculdade de Letras do Porto) Ana Luísa Amaral abriu, de forma aliciante e rigorosa, várias portas de entrada no universo e na escrita da maior poeta americana – do seu tempo e ainda do nosso –, a enigmática, surpreendente e inimitável Emily Dickinson.
A sessão inaugurou o nosso ciclo «As Figuras do Texto» (de facto, já iniciado o ano passado com Hölderlin e Pessoa/Aossê), que irá continuar. Na apresentação da nossa convidada, a maior especialista de Dickinson em Portugal (pode descarregar-se e ler-se a sua tese de doutoramento Emily Dickinson-Uma poética do excesso aqui: http://hdl.handle.net/10216/16155), João Barrento destacou algumas convergências entre estas três mulheres de três séculos tão diferentes, pela via dupla da escrita e da tradução. Ana Luísa Amaral e Maria Gabriela Llansol – e, no espaço discreto da sua reclusão relativa, sobretudo nas suas muitas cartas, também Dickinson – escrevem sobre e contra a peste dos medíocres no mundo de ontem e no de hoje. As três falam, na sua escrita poética, de e por enigmas, véus translúcidos, fingimentos, cada uma com os seus. Todas «põem a mão no pensamento» (Llansol) e o pensamento no corpo e o corpo na escrita. Com a noção clara de um caminho, não imposto, mas escolhido pelo «poder de decisão», ou também ditado pelo «medo» incontornável de todo o acto de escrever (que Dickinson também conhece), que não é mero entretenimento ou gesto inócuo de promoção pública – e vivendo todas na «casa do possível», que outra não há nem pode haver nestas coisas da escrita.
Emily Dickinson e Maria Gabriela Llansol escrevem também, reconhecida e ostensivamente, fora dos cânones, os sociais e os literários, uma fazendo «não-poesia», a outra situando-se «na margem da língua, fora da literatura». E também Ana Luísa Amaral é uma poeta com um rosto claramente identificável na nossa poesia de hoje, pela subversão que opera do expectável, pela ironia subtil, mansa e dissolvente da sua poesia.
Tal como Llansol, que publica, sob o pseudónimo de Ana Fontes, os Bilhetinhos com Poemas de Emily Dickinson (Colares Editora, 1995), também Ana Luísa Amaral traduziu a poeta americana numa antologia de 100 Poemas de Emily Dickinson (Relógio d'Água, 2010), tendo no prelo, e na mesma editora, uma nova antologia com 200 Poemas. Nestas aventuras da passagem, nas transposições em que se «muda a grafia e a cor do A de Rimbaud» (escreve M. G. Llansol em Inquérito às Quatro Confidências), ou nas travessias dos terrenos esburacados, elípticos, de «excesso», e traçados tantas vezes pelo avesso, da poesia de E. Dickinson, a mão é sempre a mão que trai, numa traição que é o estigma de Babel – mas nem por isso deixamos de jogar este jogo de palimpsestos imperfeitos, de sobreimpressões de língua a língua. Llansol dirá, sobre estes ritos de passagem que praticou de forma muito sua, e única, que se trata apenas de momentos em que «alguém», mais uma figura do Texto, nos bate à janela da casa pedindo para entrar; ou ainda, num papel avulso do espólio, de «um trabalho de poeta e de ladrão». E Ana Luísa Amaral, que reincidiu nesta aventura com os seus 200 Poemas, fala num dos seus poemas próprios («Babel», do ciclo «A Leste do Paraíso») de «um gesto de ciúme» de Deus: «Diz-se que a punição se cumpriu justa / no divino saber / Mas foi decerto gesto de ciúme, / desajeitada afirmação de quem / já não tem demais céus // a conquistar.»
Ana Luísa Amaral guiou-nos pelos meandros, pelas contradições e pelos abusos da edição dos poemas de Dickinson, destacou, com exemplos da poesia e das cartas, em transcrição e nos manuscritos, os processos da escrita da «virgem de Amherst», a subversão dos cânones, a ironia latente na relação com os seus interlocutores, a indecibilidade de género nas transições entre bilhetes e poemas. E deixou claro para quem, com prazer e proveito, a ouviu que o modo de escrita próprio de Dickinson – como também de Llansol – é o da «visão que a palavra vai ocupar». E que também aqui, como no rio de escrita de Maria Gabriela Llansol, o poema nunca está feito, nunca há texto «acabado».