DEIXÁMOS TUDO À PORTA...
Ainda o dia 24 de Novembro
O dia estava invernoso, escuro, mas nem por isso deixaram de acorrer muitos à Letra E, na data que viu nascer Maria Gabriela Llansol, e em que evocámos também a sua relação ímpar com Eduardo Prado Coelho.
A Helena concebeu uma ementa muito especial para o almoço, todos os que vieram levaram consigo uma página de caderno manuscrita, a do registo, em 1999, do «Curso de leitura silenciosa de 1931». A Hélia escreveu, para este dia, um poema, o João Madureira compôs sobre ele uma peça de música,
a que chamou «Inscrição para violoncelo», a Cristiana leu o poema e o
violoncelista Nelson Ferreira executou a peça, que daremos a ouvir aqui
em breve.
Hoje, em eco do dia de ontem, fica o texto de Hélia Correia, inscrito sobre o «testamento de Ana de Peñalosa», que compunha o centro da nossa mesa. O poema fala do testemunho e da sua passagem, tal como o entendemos e praticamos______:
ensinar, dar testemunho por escrito, compôr música
para quebrar o saber, levá-la à soleira da porta
para que ela receba o sol,
são actos de amor.
(M. G. Llansol, Os Cantores de Leitura)
A relação ímpar
A evocação da relação de Eduardo Prado Coelho com Maria Gabriela Llansol contou com a presença de Maria Manuel Viana, sua companheira nos últimos tempos de vida, e de Margarida Lages, que com ele colaborou longos anos, em Paris e Lisboa, e que é actualmente responsável pela edição das suas Obras na Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Margarida Lages deu-nos uma montagem de textos composta, em diálogo e com a sua própria mediação (no papel do «intruso»), com fragmentos de Llansol e Eduardo Prado Coelho; e Maria Manuel Viana leu o texto que o Eduardo escreveu sobre «A rapariga que temia a impostura da língua».
Em seguida, João Barrento comentou esta relação triplamente ímpar: relação rara, de homem-de-escrita a ser-de-escrita; relação de admiração e humildade entre «falcão» e «papagaio de papel» (a comparação surge no Diário II de Eduardo Prado Coelho) e relação de «amor ímpar», frontal, aqui e ali em leve tensão, nunca tíbia, sempre «sem impostura».
A correspondência entre ambos (a partir já de 1978) testemunha esta relação, que documentámos numa exposição com o essencial dessa troca epistolar, que temos no espólio de Llansol. E a escrita crítica e ensaística de Eduardo Prado Coelho sobre textos de M. G. Llansol – também exposta através da reprodução das páginas dos jornais onde foi acontecendo – mostra à evidência, e sem disparidades de crónica para crónica, de crítica a crítica, como Eduardo Prado Coelho consegue, ao longo de décadas e em cerca de vinte textos sobre livros de Llansol, manter uma capacidade única de, num mesmo «lance do verbo», captar a essência do livro e lançá-lo para o futuro – porque, é claro, sempre reconheceu futuro a esses livros.
A sua intervenção crítica sobre os livros de Llansol pode, assim, funcionar como um guia de leitura para todo esse texto. Quer no que se refere aos núcleos mais cintilantes de cada livro, quer também ao seu lugar relativo na literatura portuguesa contemporânea. Deste modo, cada crítica de Eduardo Prado Coelho ilumina e ao mesmo tempo alarga o seu objecto, nunca escondendo o seu deslumbramento, nunca deixando de afirmar a sua aposta incondicional na Obra de Llansol – uma Obra que, como lemos numa das suas crónicas, «resiste contra a facilidade, o vivido esparramado, o pós-moderno ladino, a leviandade de certos leitores, as grandes manobras da prosa, a crítica-flash, etc.». E Llansol parece responder-lhe, ao anotar na página de rosto do livro de Prado Coelho O Cálculo das Sombras: «É o mais lento que vai à frente [...] O que calculam as sombras? Uma sombra maior dentro da luz».
A «sombra maior dentro da luz» é uma bela imagem para a «conjectura grave e jubilosa» que é cada texto de Llansol. Passa-se sempre por essas sombras para entrar na sua luz. E não há nisso mistério, nem dificuldade especial nesse caminho. Ou, como escreve o Eduardo: «não há segredo, o único segredo é entrar».