LLANSOL E(M) GONÇALO M. TAVARES,
ou
DO MEDO CRIATIVO
DO MEDO CRIATIVO
Acaba de sair, na Relógio d'Água, um novo livro de Gonçalo M. Tavares – Breves Notas sobre as Ligações (Llansol, Molder, Zambrano) – anunciado já há uns meses, e em que se estabelecem ligações entre textos de «três escritoras cuja leitura exige de nós uma resposta, um movimento paralelo, uma deslocação», escreve o Gonçalo na dedicatória. Ele próprio faz esse movimento paralelo e dá essa resposta, nos textos que escreve entre os fragmentos de Llansol, Maria Filomena Molder e Maria Zambrano que servem de catalizador e espelho para o seu próprio pensamento.
O livro alargou-se e mudou em comparação com o original que o autor me enviou há uns anos, e em que, na linha de um outro escrito seu, em que anota pensamentos em «tabelas literárias» a partir de Roland Barthes e Musil (A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil, Relógio d'Água, 2004), estabelece agora ligações entre estas três escritoras-filósofas - e as prolonga e comenta com o seu próprio texto.
Escolho de entre os fragmentos do livro uma linha, um filão, que parte de uma frase duas vezes citada, de Maria Gabriela Llansol, em que se fala da «arte de fazer perigar os corpos» (p. 38, 40). Porque esta arte do perigo, do medo, do improvável e mesmo do absurdo é um pressuposto essencial da escrita – foi-o para Llansol, continua a sê-lo para Gonçalo M. Tavares. É uma arte funâmbula, de saltimbancos e de alto risco, sempre na corda bamba entre o que a Maria Gabriela chamou um dia «os prazeres do jogo» e «os perigos do poço». Entre o jogo e o perigo, entre o lúdico e o que mete medo, sob o signo da mutação (da percepção da metamorfose, mas com vista a «alcançar a imobilidade» do reino vegetal, p. 49) e do enigma (assustador) da criação – é este o espaço da escrita, da arte que desafia o corpo e parte sempre dele, confrontando-o com «o perigo de ser humano» – o único que vale a pena, escreve Llansol em O Senhor de Herbais. Fora da simetria, contra as convenções da verdade e da própria escrita (que também o Gonçalo vem minando produtivamente em tudo o que escreve), no fio da navalha da in-tranquilidade e da contradição, do combate produtivo. Neste livro lemos a páginas tantas que o grande problema, e o necessário desafio, é «fazer amizade com a sucessão dos sins e nãos». E porquê esta dificuldade? Porque «uma coisa é sempre igual, e varia muito». O mesmo e os seus outros, o uno que não é único.
Podia ser Llansol, ou qualquer das outras autoras-cúmplices deste livro. Trata-se, no fundo, do princípio da existência de tudo em dobra, em mutação e amplificação. E a chegada a essa dobra, ao reverso das coisas, passa pelo medo. A esse lugar que solicita e atrai quem escreve, e é sempre imprevisível, chama Llansol por vezes a metanoite. É o medo (que é desejo) desse lugar que se torna criativo – «o medo de subir ao sempre máximo da parede», diz a mulher no livro Parasceve. Puzzles e ironias. O medo (superável e superado) é o sustentáculo de «uma alma crescendo», de «um corp'a 'screver», de «um ser sendo».
Este novo livro do Gonçalo vem dizer-nos, entre muitas outras coisas, que a escrita é incompatível com o medo – aquele que impede os corpos de atravessar o Vazio, de reconhecer a diversidade dos mundos, de vislumbrar a contradição; mas também que a escrita é impensável sem o medo, sem a tensão nascida do mistério do ser e da vida. O medo gera a interrogação, o medo é o espanto original que abala o corpo (também Maria Filomena Molder e Maria Zambrano parecem ter isto sempre presente), desperta a consciência e permite a criação, filha da inquietude e desse «desconhecido que nos acompanha», o mundo.
É o que me diz, entre outras, também uma página (a 46) d' A Perna Esquerda de Paris..., em que o Gonçalo parece escrever um «poema-sem-eu» llansoliano (coisa rara em Portugal), ou uma reflexão musiliana. Aí se lê: «Precisamos com urgência / de uma ciência obcecada pelo falso, de / uma ciência que se desinterese do verdadeiro / ou pelo menos do explicável...», «Inventa pontos de fúria numa frase, / e ainda pontos tranquilos. / Imita-te, e falha. A criatividade é isto.»
Também o pensamento cruzado e múltiplo presente neste livro de Gonçalo M. Tavares é isso – e muito mais.
O livro alargou-se e mudou em comparação com o original que o autor me enviou há uns anos, e em que, na linha de um outro escrito seu, em que anota pensamentos em «tabelas literárias» a partir de Roland Barthes e Musil (A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil, Relógio d'Água, 2004), estabelece agora ligações entre estas três escritoras-filósofas - e as prolonga e comenta com o seu próprio texto.
Escolho de entre os fragmentos do livro uma linha, um filão, que parte de uma frase duas vezes citada, de Maria Gabriela Llansol, em que se fala da «arte de fazer perigar os corpos» (p. 38, 40). Porque esta arte do perigo, do medo, do improvável e mesmo do absurdo é um pressuposto essencial da escrita – foi-o para Llansol, continua a sê-lo para Gonçalo M. Tavares. É uma arte funâmbula, de saltimbancos e de alto risco, sempre na corda bamba entre o que a Maria Gabriela chamou um dia «os prazeres do jogo» e «os perigos do poço». Entre o jogo e o perigo, entre o lúdico e o que mete medo, sob o signo da mutação (da percepção da metamorfose, mas com vista a «alcançar a imobilidade» do reino vegetal, p. 49) e do enigma (assustador) da criação – é este o espaço da escrita, da arte que desafia o corpo e parte sempre dele, confrontando-o com «o perigo de ser humano» – o único que vale a pena, escreve Llansol em O Senhor de Herbais. Fora da simetria, contra as convenções da verdade e da própria escrita (que também o Gonçalo vem minando produtivamente em tudo o que escreve), no fio da navalha da in-tranquilidade e da contradição, do combate produtivo. Neste livro lemos a páginas tantas que o grande problema, e o necessário desafio, é «fazer amizade com a sucessão dos sins e nãos». E porquê esta dificuldade? Porque «uma coisa é sempre igual, e varia muito». O mesmo e os seus outros, o uno que não é único.
Podia ser Llansol, ou qualquer das outras autoras-cúmplices deste livro. Trata-se, no fundo, do princípio da existência de tudo em dobra, em mutação e amplificação. E a chegada a essa dobra, ao reverso das coisas, passa pelo medo. A esse lugar que solicita e atrai quem escreve, e é sempre imprevisível, chama Llansol por vezes a metanoite. É o medo (que é desejo) desse lugar que se torna criativo – «o medo de subir ao sempre máximo da parede», diz a mulher no livro Parasceve. Puzzles e ironias. O medo (superável e superado) é o sustentáculo de «uma alma crescendo», de «um corp'a 'screver», de «um ser sendo».
Este novo livro do Gonçalo vem dizer-nos, entre muitas outras coisas, que a escrita é incompatível com o medo – aquele que impede os corpos de atravessar o Vazio, de reconhecer a diversidade dos mundos, de vislumbrar a contradição; mas também que a escrita é impensável sem o medo, sem a tensão nascida do mistério do ser e da vida. O medo gera a interrogação, o medo é o espanto original que abala o corpo (também Maria Filomena Molder e Maria Zambrano parecem ter isto sempre presente), desperta a consciência e permite a criação, filha da inquietude e desse «desconhecido que nos acompanha», o mundo.
É o que me diz, entre outras, também uma página (a 46) d' A Perna Esquerda de Paris..., em que o Gonçalo parece escrever um «poema-sem-eu» llansoliano (coisa rara em Portugal), ou uma reflexão musiliana. Aí se lê: «Precisamos com urgência / de uma ciência obcecada pelo falso, de / uma ciência que se desinterese do verdadeiro / ou pelo menos do explicável...», «Inventa pontos de fúria numa frase, / e ainda pontos tranquilos. / Imita-te, e falha. A criatividade é isto.»
Também o pensamento cruzado e múltiplo presente neste livro de Gonçalo M. Tavares é isso – e muito mais.
João Barrento