LLANSOL «MEGAVIBRÁTIL»
A Obra de Maria Gabriela Llansol parece ser cada vez mais um íman que atrai criadores de outras artes.Depois da pintura (com Julião Sarmento, Manuel San Payo ou Ilda David'), da fotografia (Duarte Belo) e da música (Amílcar Vasques Dias, com Doze Nocturnos em Teu Nome, e João Madureira, com a ópera Metanoite), e também do documentário (o vídeo Redemoinho- Poema, em preparação pela legente brasileira, atenta e sensível, de Llansol que é Lúcia Castello Branco, realizadora de um outro documentário, Língua de Brincar, sobre o poeta Manoel de Barros, recentemente editado pela Quási), chegou a vez da dança e do cinema: Vera Mantero e Miguel Gonçalves Mendes (que fez antes o vídeo-retrato sobre e com Mário Cesariny Autografia - Reverso de Autografia, editado pela Assírio & Alvim) apresentaram, entre sexta-feira 28 e domingo 30 de Setembro, no Circular – Festival de Artes Performativas de Vila do Conde, o espectáculo Curso de Silêncio, uma criação de dança-cinema que parte do universo «literário» de Maria Gabriela Llansol (é o que diz a notícia de jornal, mas podíamos chamar-lhe antes espaço universal do humano e não humano posto em linguagem).
Os autores partem da noção llansoliana de «cena fulgor», e explicam no programa: «O núcleo das cenas fulgor pode ser uma imagem, um pensamento ou um sentimento intensamente afectivo.» Curso de Silêncio integrar-se-á também no Festival Temps d'Images, e poderá, assim, ser visto ainda em Lisboa no CCB, nos dias 3 e 4 de Novembro.
Esta performance de Vera Mantero e Miguel G. Mendes nasceu de numa ideia, arriscada hoje, a que a obra de Llansol lhes pareceu dar múltiplas respostas: o que é isso de «riqueza de espírito», como redefinir esta noção ambígua e quase perdida, que lugar existe para a sua prática no mundo contemporâneo, que gestos, que passos, que acções implica?
A estas perguntas respondeu a própria Maria Gabriela Llansol numa conversa que com ela fizémos (a Vina Santos – MES – e eu – JB), a pedido da Vera e do Miguel, em 28 de Julho passado, e de que reproduzimos aqui uma parte:
JB: A primeira questão, que era a de ordem mais geral que a Vera colocava, era um pouco, pelo que eu percebi, a ideia de fundo do filme que eles querem fazer: a do lugar do que ela chama a “riqueza de espírito” no mundo de hoje; se será preciso redefinir a noção… Eu pensei ontem que “espírito” é uma palavra um bocado caída em descrédito, hoje em dia. Mas há outros modos de dizer, por exemplo, formas de espiritualidade, o que é outra coisa.
MES: E a questão da “riqueza”…
MGL: Sobre isso eu penso que não há “riqueza de espírito”, porque riqueza é um termo material e espírito seria algo de incorpóreo, portanto, essa associação não tem sentido; mas não interessa dizer o que tem sentido ou não, interessa dizer algo sobre isso. Acho que isso, para utilizar alguns adjectivos, é incomunicável, faz-se de imagens pessoalíssimas, faz-se do trabalho sobre a vida quotidiana de todos os dias, faz-se do mundo envolvente, isto é, é um trabalho em conjunto, de todos os indivíduos, em que o corpo é o suporte físico.
JB: Era isso um pouco o que a Vera tentava perceber na segunda questão: como é que na prática se pode viver uma ou outra forma de espiritualidade, que gestos, que acções implica essa vivência concreta; e isso vai mais ao encontro do que estavas agora a dizer, não é?
MGL: A vivência, a espiritualidade, chamem-lhe como quiserem, eu diria mais a vida imagética interior, eu diria mais assim…, é o produto de um cruzamento em que o principal actor é o que tem a vida espiritual, e pratica-se pela atenção; não tem momento de começar nem de acabar, está no próprio, portanto, é como quem diz: àquele que já sabe eu explicarei tudo, àquele que nada sabe eu nada poderei dizer.
JB: A sequência das perguntas leva para o que acabaste de dizer, sinteticamente: como é que se mantém isso a que a Vera chama “riqueza de espírito”? Está lá?
MGL: Está lá, está…
JB: Não tem que se manter porque…
MGL: É quase impossível fazer um filme sobre isso, a não ser captar imagens; isso faz-se captando imagens. De outro modo, quem faz essas perguntas é como se não tivesse nenhum contacto com a vida espiritual.
JB: A Vera Mantero pergunta também, no fim, de que imagens precisamos; essa é uma questão-chave.
MGL: Precisamos de imagens de montanhas, de imagens de textos, de imagens de rios, de imagens dos seres que amamos, de imagens dos animais que amamos, e de imagens do nosso pensamento criativo, é isso.
JB: Implícito na pergunta dela está também: para que é que servirão essas imagens.
MGL: Elas não servem, elas são rainhas.
JB: Pois. Essa frase é muito boa. Exactamente.
MGL: Quem mais serve, mais rei é. Mais soberano. Só que, no seu ser mais profundo, não tem a consciência disso. Saber-se quem se é, ou para o que se tende, é magnífico, é vida espiritual; saber-se quem nos chama é vida espiritual, ouvir, ouvir… Eu estou aqui convosco, e nós estamos a fazer o quê? A servir. A magnificência é de nós três. Mas é tão normal e tão natural, naturalíssimo…
MES: É quase como respirar…
JB: Podemos fazer só mais uma pergunta que a Vera Mantero coloca no fim, e que pode ser interessante. Ela pergunta: como é que se deu a viragem, se é que houve alguma viragem no teu caso, para este modo de estar no mundo e de ver o mundo; como é que esse corpo se tornou num corpo vibrátil, “megavibrátil”?
MGL: Eu fui sempre assim. Mas o meu grande companheiro ajudou-me a ser assim. Como eu o ajudava a ele, e vós todos; a ligação à comunidade cria-nos.
JB: Quero dizer, quando ela pergunta o que é que te levou para este universo, nós podemos pensar naquele momento em que tu própria dizes, nos teus diários: um dia vi-me sem normas. Mas isso só tem a ver com a escrita propriamente dita, saíste dum universo para entrar no teu próprio; mas a questão da vibração do corpo já vem desde as origens?
MGL: Desde que nasci. Lembro-me provavelmente de mim no ventre da minha mãe, acho que ainda me lembro, vagamente… e de mim ao colo da Maria Amélia. E depois devo dizer-vos que através da minha vida só houve uma pessoa ou duas…, sempre encontrei pessoas extraordinárias. E os homens eram extraordinários, os homens por quem me apaixonei ou amei, não importa — era o meu tio, era o Padre Armindo, e era o Augusto. Eram pessoas excepcionais. E já partiram todos. Mas, de certo modo, estão aqui. Eles estão é que é a palavra.
MES: Isso tem a ver também com o universo das figuras, não é? Isso de estar sempre a falar uns com os outros.
MGL: Tem. As figuras são imagens corporalizadas, e actuantes, e vivas, e tornadas humanas, quase…
MES: Quase, porque o humano delas é diferente.
MGL: É. O humano delas é diferente. A Etelvina percebe muito disto.
MES: Não percebo, eu…
MGL: Tu percebes. Também nasceste lá. O João também, nasceu aí…
MES: Já a cansámos muito?
MGL: Não. Fiquei feliz.
MES: Porque estamos a conversar. É um alimento de que nós precisamos todos, com a Maria Gabriela, e a Maria Gabriela connosco…
MGL: É. Mas às vezes sinto-me muito sozinha; e esse alimento é fundamental para mim, ajuda a aliviar as dores; o tratar de assuntos como este…
MES: … ver uma imagem ou outra…O caminho da vida espiritual também é alimentar o nosso dia-a-dia com essas imagens…
MGL: Não, porque as imagens estão connosco, e nós não nos comemos a nós próprios. Nós fazemos o que vimos, e vimos o que fazemos, somos uma roldana.
JB: Há aqui uma pergunta que revela uma certa preocupação, neste caso de dois artistas de uma outra geração, que estão aí no mundo, que têm de fazer coisas para serem vistas, a dança, o cinema; a preocupação da Vera Mantero numa das perguntas é a de saber como é que se sobrevive, no âmbito a que eles chamam artístico, neste mundo. Escreve-se para quê?, Dança-se para quê?
MGL: Como eu faço. Escreve. Dança. Sê grande. Se for com altura suficiente, ver-se-á. Desde que sejas suficientemente grande, ninguém deixará de te ver. Podes ser tudo. Pois é, isto é muito a infância da arte. Mas vê-se que ela vai pelo bom caminho.