OS DESENHOS DE LLANSOL
Na sessão do último sábado, em que mostrámos e comentámos os milhares de desenhos de todos os tipos que povoam os cadernos de escrita de Maria Gabriela Llansol, pudemos contar com a colaboração do pintor Pedro Proença, que fez uma abordagem múltipla e contextualizada dessa prática de escrita visual paralela, com referências à tradição do desenho e às várias possibilidades de leitura dessa «grande figuração» de ausências presentes que é o desenho desde as origens. Origens essas, desde os hieróglifos e as escritas orientais, em que escrita e desenho se entrecruzam – como acontece em Llansol.
A abrir, para dar ao público que enchia a sala uma primeira entrada neste universo, passámos o video que se pode ver clicando neste link: https://vimeo.com/687614258
Pedro Proença medita e comenta...
Pedro Proença interrogou-se sobre o modo como nascem estes desenhos, as ambiguidades ou polaridades que a própria autora neles vê, quase sempre em diálogo com a escrita – ela própria, para Llansol, uma forma de desenho –, para acentuar a importância da linha e dos seus gestos nas formas essencialmente «vitalistas» dos desenhos de Maria Gabriela (o que não exclui a presença de outros registos, conceptuais, narrativos, construtivistas, expressionistas, minimalistas...). Mas será, segundo Proença, esse lado vitalista o dominante, pelo claro predomínio das formas circulares e espiraladas, dos motivos florais ou dos corpos. O desenho, salientou Pedro Proença, é assim uma forma de agir, mais sensível do que a da própria escrita, uma «meditação ou tensão amorosa» prolongada (isso é visível, por exemplo, quer nas ligações frequentes entre desenho e escrita, quer nas muitas páginas de desenhos que, nos cadernos de Llansol, nascem durante reuniões e colóquios que não acabam!).
O desenho, conclui Pedro Proença, é aqui uma forma de vibração particular, semelhante à do tactear da criança no processo de aprendizagem da escrita, nesse caso com os inevitáveis desvios dos erros ortográficos. A pulsão de escrever é também, na Llansol adulta, uma forma de desenho, e vice-versa, e ela própria destaca esta interacção nos textos que incluímos nos cadernos feitos para esta sessão. Algo que os presentes puderam ver claramente nos muitos cadernos e papéis avulsos com os desenhos originais, que seleccionámos do espólio de Maria Gabriela Llansol.
Desses cadernos leu, no final, o actor Diogo Dória alguns fragmentos de Llansol sobre desenho e arte, que a seguir se transcrevem.
Diogo Dória lê
1
«OS PEQUENOS DESENHOS DÃO PRAZER ÀS LETRAS»
Fragmentos sobre escrita e desenho
O sonho
apresentou-se-me numa sucessão de cenas. Professor de desenho deitado numa cama. Folhas espalhadas. Ensina a vários alunos que se vão sucedendo. Chega a minha vez. Explico-lhe que nem sequer tenho a noção do espaço, que nem sei desenhar. E escrever? Escrevo menos mal, respondo, com um sorriso.
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Escrever é menos ácido do que desenhar.
Não sei desenhar, mas, escrevendo, sei desenho. Olho, primeiramente, e acima de tudo, para o desenho do que escrevo. Rasurar não é escrever, o texto interrompe-se quando se rasura, quebra o curso que liga a mão a qualquer coisa totalmente inexpressiva enquanto não se exprime nesse movimento. A firmeza deste caderno liga-me à matéria do que sinto ser o mais vibrátil material.
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Apetece-me desenhar substâncias puras, e permito-me pensar que, desenhando, poderia escrever palavras à vontade, com sublimes erros de ortografia.
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Não desenho, mas capto as linhas do desenho.
Sei qual é a carne da cor e da imagem________
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O que comanda a minha mão – escrevendo – é o prazer do desenho. Encaracola as letras, dá-lhes um movimento de cavalo, ora em paseio, ora em corrida. Geralmente em corrida.
Só sei desenhar letras, dar-lhes contornos de garupas em movimento.
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Florzinha de desenho:
não deixou de desenhar
colorir-se toda a noite;
estava alvoroçada, com o lápis na mão.
Sua espécie anterior
seu epicentro era o silêncio,
agora desenhava,
tinha um corpo.
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... Sinto-me diferente do que sou – subtracção e soma que prossegue acertando contas. As letras seduzem-me como pequenos desenhos livres e acerados. São diminutivos do meu pensamento.
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Eu nunca tinha reparado na beleza de «uma página caligráfica» – vê-la como desenho, obra de beleza, fonte de procura. Nunca tinha reparado – não –, tal era o alvoroço de escrever, de escrever canto, na sua perturbação quente, mas calma.
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Desenho com as letras o que está oculto no meu pensamento e que, sem elas trepidando, ficaria para sempre oculto, pelo menos de vós.
Desenho, com prazer, os contornos, e arrisco-me a voltar a ler a frase depois de escrita. Com prazer.
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Descubro a pergunta: desenhar é melhor do que escrever?
Descubro a resposta: Há uma coincidência feliz entre as duas partes de um todo azul...
2
O ELOGIO DO FULGOR
Fragmentos sobre arte e artistas
a arte obsidia-me. Compreendo mal a sua natureza. Vejo-a intimamente tão perto que o que ela é________________ eu sou. É uma atmosfera de louvor à consciência, ao sentimento de a ver pensar inabalável. Porque ela está no olhar quando ele, atento, se envolve_____________ e enfrenta. O que ela vê nesse olhar, fica unificado consigo. Há uma intimidade entre a memória do olhar e a memória da consciência. Memória de um olhar que é espelho de energia. Energia-fulgor que passa num lampejo.
e pouco a pouco,
o texto apodera-se do fulgor e desdobra-o em imagem sobre o papel. Tornam-se a única realidade palpável e coerente. Esta é a realidade possível que me obsidia.
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O artista não é uma testemunha sem o saber, é o personagem principal da sua obra. Se viver ao nível da vida, não viverá ao nível da transformação da vida.
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Compreendo agora que a arte se transforma em quem nós somos claramente.
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A arte só pode ter origem num centro rigorosamente anónimo.
A arte é uma física experimental.
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O «cálculo» do estatuto da obra de arte. Pode-se assim ler duas vezes uma obra de arte: segundo as impressões produzidas, segundo a desmontagem e [o] funcionamento.
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Psicologia é para os actos medíocres (medidos) da vida. O artista, ou encontra a forma, ou não existe.
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Para o artista, amar é «prodigalizar formas».
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O modo mais eficaz, e menos perigoso, de atingir as zonas interditas do pensamento________ é com os instrumentos da arte. Sem a arte mais se fechariam à nossa volta os círculos normativos.
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Nada_____ a não ser um traço, indicia a beleza.
Só progridem os grupos ou seres humanos em que opera a contradição.
O percurso através das imagens da visão artística_______ o artístico como expressão de formas espirituais em evolução.
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Ao contrário de Nabokov, eu não digo que a arte é volúpia,
a arte desfaz-se
e o seu modo de entrar em mim nunca é igual.
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_________ Gosto da pintura porque ela estende o olhar, antes da compreensão – tal como um sonho.
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Os quadros________
Primeiro está a parede, branca, sombreada ou luminosa, e o rectângulo, ou o quadrado, ou o círculo, desce sobre ela. Não é um livro, mas vê-se. Eu tenho por hábito pensar os quadros, abrangê-los com a ilusão de ler — estando simplesmente a olhar. O quadro é estático — parece. Mas se eu deixar meu coração zumbir por cima do olhar, concentrar nele a abertura maior da minha consciência — o quadro evade-se, adquire para si toda a liberdade do meu espírito. Logo me apetece relembrá-lo, ou escrevê-lo, se estou ausente; é compacto de tintas, ou lápis, ou óleo ou aguarelas, mas o que está a perturbar-me agora tem uma árvore sobre uma mancha figural rosa. Delas nasce uma frase: para bem compreender que o problema de criar é insolúvel, é necessário estar no acto de criar.
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