17.10.07



AD LOCA LLANSOLIANA (2)


Como prometemos aqui, voltamos aos lugares llansolianos da Bélgica, onde a escritora viveu e escreveu entre 1965 e 1985. Primeiro em Lovaina, depois em Jodoigne, finalmente em Herbais. Outros lugares decisivos para o arranque desta Obra nesses anos foram o béguinage de Bruges e a abadia de Maredret, onde foi escrito em parte e concluído O Livro das Comunidades. Destes lugares, e da Bélgica como espaço e paisagem de uma «sobreimpressão» da língua portuguesa dão conta muitas passagens de livros de Maria Gabriela Llansol, de onde extraímos os excertos que se seguem, sumariamente ilustrados. As fotos mais antigas são de Augusto Joaquim, as mais recentes de João Barrento e Vina Santos. Um périplo mais completo desses lugares, ontem e hoje, pode ser visto na sequência fotográfica que abre esta página.


1 - A Bélgica

Tempo excepcional, embora severo, em certas circunstâncias;
(…)
il y avait une ombre,
dont il était impossible de faire le portrait;

quand il n’y avait plus de lumière,

l’ombre tombait par terre
.
(
Finita)

…. sinto-me como alguém que viaja em país estrangeiro, por não me sentir, de modo algum, ligada a uma nação. Na Bélgica, sinto-me menos em terra alheia talvez porque está explícito que nenhum laço de origem política me liga a este país. Sem país em parte alguma, salvo no vazio em que me dei a uma comum idade. Comum idade real por imaginária, e imaginária por verdadeira. A escrita, os animais, fazem parte dessa orla, e são tais seres excluídos pelos homens que eu recebo.
Trabalhar a dura matéria, move a língua; viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente sós.
(
Finita)


O extremo ocidental do Brabante

I

(…) Entre vós, na minha língua confrontada às vossas paisagens. Que podeis confrontar e identificar sem, no entanto, desvendar a língua que foi a sua raiz. Por outro lado, os portugueses, que nem as vêem, nem as identificam, nem são embebidos por elas, podem ouvir a língua que as fala.
(…)
Sei hoje que é nessa
sobreimpressão que eu habito o mundo, e vejo, com nitidez, que outros vieram ter comigo:
«concebe um mundo humano que aqui viva, nestas paragens onde não há raízes.»

III

Desses primeiros anos na Bélgica guardo uma imagem difusa, e ligeiramente irreal: as planuras do Brabante e o vale do Mosela; as fachadas góticas da Flandres; a vida de estudante, em Lovaina; o direito efectivo à informação. As particularidades, múltiplas e incontáveis, de um país conservador, percorrido por pessoas livres e trabalhadoras que, embora achando muito original a imaginação das gentes vindas de outras terras, não podiam deixar de marcá-la com os indícios de uma espécie de bom senso degenerado…
(
Lisboaleipzig 1)


2 - Bruges, béguinage

Há muitos anos, quando comecei a viver na Bélgica, sem
pressentir que seria por tantos, esta nossa longa ausência fez-me uma profunda impressão. Estava eu no
béguinage de Bruges, com o sentimento fortíssimo de que já ali teríamos estado. Nós, não era eu. (…)
Data de então a presença constante, invasora e quase exclusiva, de certas figuras europeias nos meus livros. (…)
Fez-se ali o nó de que depois desfiei o texto. Comecei nas beguinas; destas, passei a Hadewijch, a Ruysbroeck. Destes, a João da Cruz e a Ana de Peñalosa. Fui conduzida por todos eles a Müntzer, à batalha de Frankenhausen e à cidade utópica de Münster, na Vestefália. Nos restos fracassados destes homens encontrei Eckhart, Suso, Espinosa, Camões e Isabel de Portugal. E foi por sua mão que fui até Copérnico, Giordano Bruno, Hölderlin, que todos eles anunciavem Bach, Nietzsche, Pessoa, e outros que a nossa memória ora esquece, ora lembra tão intensamente que me parece outra forma de os esquecer.
De esquecer tudo isso.
(
Lisboaleipzig 1)


3 - Lovaina

Há muito que não frequento as livrarias de Lovaina, em que começava a enervar-me a lei do número, o modo de
expor, e um certo relento de Universalidade. (…)
O que me choca é a vastidão dos textos que não ficarão e que, hoje, no espaço fechado da livraria, fazem um ruído ensurdecedor de «papotage» que quase tornou inaudível o diálogo entre os livros que falam e mantêm entre si a arte da conversação infindável sobre o entresser.
(
Finita)


4 - Jodoigne

Casa de Jodoigne, 23 de Abril de 1977

(…) dou finalmente posse à minha verdadeira figura, e as composições de imagens e ideias que se tinham formado durante a noite refazem-se naquele instante: estou em baixo, na cozinha ampla e branca, a preparar uma refeição, voltada para a mesa redonda, e de costas para o armário mural. A cozinha mergulha numa luz que vem do fulgor. A janela, que tem por cortinado uma colcha das ilhas é, atraentemente, uma fonte.
(
Finita)


Jodoigne, 6 de Agosto de 1977,
em que acabei de escrever
A Restante Vida

O ano de 74, ano da libertação política de Portugal, ainda decorreu em Lovaina. Só partimos para Jodoigne em Abril de 75, embora já durante todo o mês de Março, tivéssemos preparado a casa. A casa pareceu-me grande, o jardim um terreno vago no meio de muros bem calculados e envelhecidos; nessa altura, o portão ainda não era uma chave no espaço apesar de ter a presciência de que, vindo para esta casa, me daria a uma escrita mais segura, feita da experiência dos silenciados e de outras realidades por hábito abandonadas, ou não penetradas. Não me lembro do primeiro verão, devia ser um verão intermédio, embora já nele tivesse plantado, para meu sossego, Spirea e Prunus Triloba. Fui buscá-las a território flamengo, a Tienen, e elas cresceram com acessos de doçura e de força; com inteligência visionária se alongariam meus dias, em noites obscuras e horas fecundas, quase intermináveis…
(
Finita)


5 - Herbais

Lugar mítico, paisagem que avistei durante anos do meu quarto minúsculo de Herbais. Paisagem nem urbana, nem rural, com essa faixa que ainda hoje a atravessa e que sempre me dava a vontade de a seguir. Sem saber como, eu sabia que no fim dessa estrada estava um mar. A este processo chamei a convicção íntima, e foi nela e suspensa da janela desse quarto que escrevi, dias a fio, Contos do Mal Errante.

Herbais,
é a paisagem que Herbais guarda como lhe pertencendo verdadeiramente. Vejo nela o Jade correndo, os carreiros uma grande explosão de fundo. Nada explode. Tudo é isto, campos imensos de variedades de cereais, ou então só matizes de verde e, próximo, raros arbustos e árvores que não foram abatidas.

Herbais,
uma ilha humana, ao longe, na crista da paisagem. Para ela se orientam naturalmente os passos humanos. Mas, para a compreender para além da sua pequenez, precisámos de deixar partir de nossas mentes a imagem de cidade, aglomeração humana densa.

(«O pensamento de algumas imagens», in:
A Restante Vida, 2ª ed.)