19.10.07


OS CANTORES DE LEITURA

Dentro de dias chegará às livrarias o novo livro de Maria Gabriela Llansol, Os Cantores de Leitura (Assírio & Alvim).
Todo o livro, na sua tripla fragmentação (partículas, duplos, contextos) vive da movimentação de figuras, novas e antigas, entre Casas, num vaivém contínuo entre lugares e momentos de escrita, leitura, contemplação, diálogo com as coisas, reflexão sobre o mundo. De partícula para partícula assistimos a uma espécie de sonho em que imagens contínuas, mas díspares, se vão mostrando, naquele que é provavelmente o mais livremente associativo de todos os livros de Llansol. No seu centro está a Leitura, leitura agora «cantada», resposta do texto à incapacidade de cantar do mundo, e «contraste» (i. é, marca de autenticidade) desta nova Comunidade de seres que vivem da e para a beleza do conhecimento e dos afectos.


Transcrevemos uma das «Partículas» do livro e respectivo «contexto» (designações de uma estrutura fragmentária que sugere «leituras minimais que se correspondem conforme a transparência da sensibilidade de quem lê», Partícula 44):

PARTÍCULA 43 — O Livro dos Afectos

Uma das actividades mais misteriosas da escrita é, como diz Tual, dar
nome a um texto, vê-lo mudar de nome, e
guardar secreto esse nome.

Este é O Livro dos Afectos.

Exprime bem o que exprime; tem, contudo, uma conotação sentimental, romântica (muito ligeira, eu sei) que o torna mais frágil que o outro nome — Os Cantores de Leitura. Na realidade, é um nome forte, aberto, transversal, que inscreve uma distância sobreposta entre dois lugares. No entanto, o nome de O Livro dos Afectos, apesar de mais fraco, diz exactamente o que se passa nessa distância sobreposta. Se me perguntarem (de facto, já não perguntam) o que se passa neste texto, eu posso dizer, do meu ponto de escrita, que, na distância entre canto e leitura — dois lugares —, uma linhagem de seres visíveis e invisíveis revive o afecto, a miríade de afectos que soube e não soube viver,
como escrevia Friedrich N.,
antes de chegar.

seu contexto
:

viemos até aqui, na forma da presença peculiar de

cada um, para tentarmos reviver, mais uma vez,
o que é o corpo,
o que é a luz,
o que é a força,
o que é o afecto,
o que é o pensamento,
o que é a figura.

Simplesmente procurar saber, no seu próprio corpo reflectido na imagem __________ na prática, seremos artesãos de tarefas simples, realizadas de modo impecável, como estamos a procurar fazer com Lós, que se tornou nosso filho. Embora ninguém saiba — sem pelo menos uma hesitação — o que é a responsabilidade de educar o sol. Seria fora de razão e prestar-se-ia ao riso acreditar, palavra por palavra, que tal aconteceu. Todos nós sabendo e não sabendo como nos tornamos sol consciente e livre, num texto aproximado

no seu próprio corpo reflectido na imagem _____
na prática do amor de afectuante para afectuante, o que é
o eterno retorno do mútuo.

17.10.07



AD LOCA LLANSOLIANA (2)


Como prometemos aqui, voltamos aos lugares llansolianos da Bélgica, onde a escritora viveu e escreveu entre 1965 e 1985. Primeiro em Lovaina, depois em Jodoigne, finalmente em Herbais. Outros lugares decisivos para o arranque desta Obra nesses anos foram o béguinage de Bruges e a abadia de Maredret, onde foi escrito em parte e concluído O Livro das Comunidades. Destes lugares, e da Bélgica como espaço e paisagem de uma «sobreimpressão» da língua portuguesa dão conta muitas passagens de livros de Maria Gabriela Llansol, de onde extraímos os excertos que se seguem, sumariamente ilustrados. As fotos mais antigas são de Augusto Joaquim, as mais recentes de João Barrento e Vina Santos. Um périplo mais completo desses lugares, ontem e hoje, pode ser visto na sequência fotográfica que abre esta página.


1 - A Bélgica

Tempo excepcional, embora severo, em certas circunstâncias;
(…)
il y avait une ombre,
dont il était impossible de faire le portrait;

quand il n’y avait plus de lumière,

l’ombre tombait par terre
.
(
Finita)

…. sinto-me como alguém que viaja em país estrangeiro, por não me sentir, de modo algum, ligada a uma nação. Na Bélgica, sinto-me menos em terra alheia talvez porque está explícito que nenhum laço de origem política me liga a este país. Sem país em parte alguma, salvo no vazio em que me dei a uma comum idade. Comum idade real por imaginária, e imaginária por verdadeira. A escrita, os animais, fazem parte dessa orla, e são tais seres excluídos pelos homens que eu recebo.
Trabalhar a dura matéria, move a língua; viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente sós.
(
Finita)


O extremo ocidental do Brabante

I

(…) Entre vós, na minha língua confrontada às vossas paisagens. Que podeis confrontar e identificar sem, no entanto, desvendar a língua que foi a sua raiz. Por outro lado, os portugueses, que nem as vêem, nem as identificam, nem são embebidos por elas, podem ouvir a língua que as fala.
(…)
Sei hoje que é nessa
sobreimpressão que eu habito o mundo, e vejo, com nitidez, que outros vieram ter comigo:
«concebe um mundo humano que aqui viva, nestas paragens onde não há raízes.»

III

Desses primeiros anos na Bélgica guardo uma imagem difusa, e ligeiramente irreal: as planuras do Brabante e o vale do Mosela; as fachadas góticas da Flandres; a vida de estudante, em Lovaina; o direito efectivo à informação. As particularidades, múltiplas e incontáveis, de um país conservador, percorrido por pessoas livres e trabalhadoras que, embora achando muito original a imaginação das gentes vindas de outras terras, não podiam deixar de marcá-la com os indícios de uma espécie de bom senso degenerado…
(
Lisboaleipzig 1)


2 - Bruges, béguinage

Há muitos anos, quando comecei a viver na Bélgica, sem
pressentir que seria por tantos, esta nossa longa ausência fez-me uma profunda impressão. Estava eu no
béguinage de Bruges, com o sentimento fortíssimo de que já ali teríamos estado. Nós, não era eu. (…)
Data de então a presença constante, invasora e quase exclusiva, de certas figuras europeias nos meus livros. (…)
Fez-se ali o nó de que depois desfiei o texto. Comecei nas beguinas; destas, passei a Hadewijch, a Ruysbroeck. Destes, a João da Cruz e a Ana de Peñalosa. Fui conduzida por todos eles a Müntzer, à batalha de Frankenhausen e à cidade utópica de Münster, na Vestefália. Nos restos fracassados destes homens encontrei Eckhart, Suso, Espinosa, Camões e Isabel de Portugal. E foi por sua mão que fui até Copérnico, Giordano Bruno, Hölderlin, que todos eles anunciavem Bach, Nietzsche, Pessoa, e outros que a nossa memória ora esquece, ora lembra tão intensamente que me parece outra forma de os esquecer.
De esquecer tudo isso.
(
Lisboaleipzig 1)


3 - Lovaina

Há muito que não frequento as livrarias de Lovaina, em que começava a enervar-me a lei do número, o modo de
expor, e um certo relento de Universalidade. (…)
O que me choca é a vastidão dos textos que não ficarão e que, hoje, no espaço fechado da livraria, fazem um ruído ensurdecedor de «papotage» que quase tornou inaudível o diálogo entre os livros que falam e mantêm entre si a arte da conversação infindável sobre o entresser.
(
Finita)


4 - Jodoigne

Casa de Jodoigne, 23 de Abril de 1977

(…) dou finalmente posse à minha verdadeira figura, e as composições de imagens e ideias que se tinham formado durante a noite refazem-se naquele instante: estou em baixo, na cozinha ampla e branca, a preparar uma refeição, voltada para a mesa redonda, e de costas para o armário mural. A cozinha mergulha numa luz que vem do fulgor. A janela, que tem por cortinado uma colcha das ilhas é, atraentemente, uma fonte.
(
Finita)


Jodoigne, 6 de Agosto de 1977,
em que acabei de escrever
A Restante Vida

O ano de 74, ano da libertação política de Portugal, ainda decorreu em Lovaina. Só partimos para Jodoigne em Abril de 75, embora já durante todo o mês de Março, tivéssemos preparado a casa. A casa pareceu-me grande, o jardim um terreno vago no meio de muros bem calculados e envelhecidos; nessa altura, o portão ainda não era uma chave no espaço apesar de ter a presciência de que, vindo para esta casa, me daria a uma escrita mais segura, feita da experiência dos silenciados e de outras realidades por hábito abandonadas, ou não penetradas. Não me lembro do primeiro verão, devia ser um verão intermédio, embora já nele tivesse plantado, para meu sossego, Spirea e Prunus Triloba. Fui buscá-las a território flamengo, a Tienen, e elas cresceram com acessos de doçura e de força; com inteligência visionária se alongariam meus dias, em noites obscuras e horas fecundas, quase intermináveis…
(
Finita)


5 - Herbais

Lugar mítico, paisagem que avistei durante anos do meu quarto minúsculo de Herbais. Paisagem nem urbana, nem rural, com essa faixa que ainda hoje a atravessa e que sempre me dava a vontade de a seguir. Sem saber como, eu sabia que no fim dessa estrada estava um mar. A este processo chamei a convicção íntima, e foi nela e suspensa da janela desse quarto que escrevi, dias a fio, Contos do Mal Errante.

Herbais,
é a paisagem que Herbais guarda como lhe pertencendo verdadeiramente. Vejo nela o Jade correndo, os carreiros uma grande explosão de fundo. Nada explode. Tudo é isto, campos imensos de variedades de cereais, ou então só matizes de verde e, próximo, raros arbustos e árvores que não foram abatidas.

Herbais,
uma ilha humana, ao longe, na crista da paisagem. Para ela se orientam naturalmente os passos humanos. Mas, para a compreender para além da sua pequenez, precisámos de deixar partir de nossas mentes a imagem de cidade, aglomeração humana densa.

(«O pensamento de algumas imagens», in:
A Restante Vida, 2ª ed.)

16.10.07

LIVRO DE ASAS PARA LLANSOL




Acaba de sair, na Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, o Livro de Asas para Maria Gabriela Llansol, um volume que reune, em 280 páginas, pela mão de Lúcia Castello Branco e Vania Baeta Andrade, os textos apresentados e enviados ao primeiro Colóquio sobre a Obra de Maria Gabriela Llansol, que teve lugar no teatro barroco de Sabará, uma cidade histórica nos arredores de Belo Horizonte, em Dezembro de 2002.
É uma vintena de contributos, de legentes brasileiros e portugueses, sobre os mais diversos livros e temas do universo llansoliano, transportados por oito "Asas", que correspondem aos vários momentos do Encontro: Asa do texto: lugar que viaja; Asa dos legentes: o mundo figural; Asa dos legentes: a textualidade; Asa dos absolutamente sós; Asa dos reais-não-existentes; Asa dos textuantes; Asa de cenas fulgor; Asa do lugar.
Foi, como se diz na «Abertura», «um primeiro colóquio de leituras-escritas em torno da Obra, sopradas ao vento por diversas artes: a poesia, a música, o canto, a dança, a fotografia, o bordado, a jardinagem e as artes plásticas.»
Sob o signo do lema, tão llansoliano, «Este é o jardim que o pensamento permite» se fez este primeiro Colóquio, a que outros dois se seguiriam, organizados em Portugal pelo antepassado próximo deste Espaço Llansol, o GELL-Grupo de Estudos Llansolianos: o da Arrábida, em Setembro de 2003, e o de Mourilhe, em Julho de 2005 (deste último editámos uma caixa-livro,
Vivos no Meio do Vivo, a que já nos referimos aqui).
Em todos esses encontros, como ainda escrevem as organizadoras, «estivemos na clareira: sempre entre as árvores, os troncos, as folhas, os ramos e os jardins. Afinal, o pacto da legência admite, já de início, além do inconforto, que a árvore é um livro a distribuir suas folhas pelos ramos.
É na textualidade de um livro cujas folhas retornam à matéria primeira do papel — a árvore — que este livro se compõe. E, porque as folhas e os ramos também voam — reunindo os legentes daqui, do Brasil, aos de lá, de Portugal, e a outros ainda, de lugares longínquos, do passado, e de lugares futurantes, ainda por vir —, este livro se quer um
livro de asas