EVOCAR, «DAR UM LUGAR»
Llansol, entre Hölderlin e Spinoza
Foi assim a dupla evocação de ontem na Casa de Julho e Agosto: de Maria Gabriela e do seu filósofo maior, Spinoza/Bento/Baruch, ambos nascidos a 24 de Novembro, sob o olhar atento de Hölderlin e do seu «ritmo poético fugindo», como sobre ele escreve Llansol.
Do Caderno, com extratexto, feito para esta sessão
João Barrento traçou o rasto da presença do poeta na Obra de Llansol, e dessas palavras de abertura retemos alguns momentos:
[...]
Llansol anota num dos seus cadernos, em 1985,
aludindo ao emergir da loucura mansa e ao lugar do ritmo no poeta alemão:
«Quando Hölderlin principiou a encher a testa com a sua loucura nascente,
olhava longamente um jardim, sempre deserto (…) Tomava-se a si mesmo por um ritmo poético fugindo.»
O que poderá ter atraído Maria Gabriela Llansol para uma
figura como Hölderlin – para além do caso singular de um poeta singular que
passa «metade da vida» à margem do mundo e de si – terá provavelmente a ver com
este lugar privilegiado do ritmo na sua poesia e no seu pensamento sobre ela.
[...]
Quando,
com Hölder, de Hölderlin (publicado
em 1993, mas presente nos cadernos manuscritos já nos anos oitenta), o grande
poeta alemão entra na paisagem textual de Llansol, ganha aí um perfil humano,
poético e figural que a pouco e pouco, nos fragmentos ritmados que formam este
texto, se vai desenhando entre os pólos da natureza e da escrita, da paixão
(nos poemas a Diotima, a amada que inventou o petit nom Hölder, presente no título de Llansol) e do êxtase ou da
loucura, que nele parece ser a versão moderna, sublimada e extática, mas ao
mesmo tempo contida e controlada, do furor
poeticus antigo. Em Llansol, a paisagem-Hölderlin traça-se entre a
humanização da figura (por vezes com recurso a imagens muito cruas) e a sua
fulgorização numa prosa onde também encontramos uma tensão entre a quase visão
e uma linguagem precisa, luminosa, ritmada e ritualizada – o júbilo poético controlado que é a marca
inconfundível da grande poesia de Hölderlin.
[...]
Hölder,
de Hölderlin
segue o fio da loucura do poeta, que não sabemos bem onde começa, do mesmo modo
que temos alguma dificuldade em estabelecer, nos modos de escrita de Llansol,
os limites entre o impulso poético da imagem e a entrada na zona da visão ou da
alucinação. Aragon aborda subtilmente este movimento, quer de Hölderlin, quer
de Llansol, ao sugerir num longo e extraordinário poema intitulado «Hölderlin»,
que estamos nos limites entre o ser e o não-ser, numa zona entre o real e o
possível que em Llansol dá pelo nome de «entresser». Deixo ecoar algumas linhas
de Aragon:
É
certamente cómodo tudo explicar pela
Loucura
– onde começa a loucura?
Orfeu
Esse
desce ao incompreensível inferno
Em
busca de Eurídice. E tu, Diotima,
Talvez
nesses dias sobre os quais nunca saberemos nada
Tu
o tivesses seguido até ao fundo do não-ser...
A
loucura, onde começa a loucura, Hölderlin?
Sobreviver
quarenta e um anos
Talvez
isso seja
A
loucura...
O
inexplicável não é aquilo que a loucura explica...
Para
os seus, ele era apenas o pequeno Fritz, e a bem-amada
Chamava-lhe
o seu Hölder! Ah,
Se
tivéssemos todas as suas cartas,
Então
Já não precisaríamos da
loucura...
O
que comumente se designa de «loucura» é também para Llansol uma forma de extrema
lucidez, a capacidade de, com uma língua nova, «ver o Ser e recitá-lo de novo»,
como escreveu o poeta Fernando Guerreiro ainda a propósito de Hölderlin.
E Llansol, num caderno manuscrito de 1999:
«A
loucura é um conhecimento esfarrapado e desorganizado – sem eixo nem
progressão. Mais novo e mais desconhecido é visto como mais loucura, quando
afinal, no texto, mais novo e mais desconhecido é mais lucidez.»
[...]
Exposição de manuscritos de Llansol em torno de Hölderlin
Depois, duas leitoras próximas, quer de Llansol, quer do «poeta da Torre», Cristiana Vasconcelos Rodrigues e Teresa Cadete, deram voz ao breve e intenso texto Hölder, de Hölderlin, que por elas foi lido na íntegra.
Cristiana V. Rodrigues e Teresa Cadete
E a finalizar a sessão, toda ela concebida sob o signo da leitura, dois vídeos, eles também com textos de Hölderlin e Llansol.
João Barrento mostrou e deu a ouvir a sua leitura do poema «Como em dia de festa...»:
Imagens do video de João Barrento
E Maria Etelvina Santos passou um filme em memória de Maria Gabriela Llansol, em que integra excertos de Os Cantores de Leitura, e que apresentou com as seguintes palavras:
Imagens do video de Maria Etelvina Santos
E se as nuvens fossem
ondas?
exercícios do olhar com
voz
Quando alguém, ao separar-se da vida, pede a um
amigo «Dá-me um lugar» (como aprendi com Montaigne), pede a quem ama um lugar
na sua memória, como se dissesse ‘torna de novo vivo o meu acto de nascer’.
Evocar é, assim, «dar um lugar». Um
lugar nascente, construído dia a dia, e que não existe num qualquer território,
pois é o lugar volátil de Mnemósine em nós.
O lugar que, por escolha nossa,
decidimos dar a Maria Gabriela Llansol, não é apenas esta casa – esta, ao que
parece, podemos dizer que foi ela que nos deu, com todos os seus objectos,
plantas, cadernos e livros. O lugar que escolhemos dar-lhe é antes o lugar transformante
de Mnemósine, trazendo-a à nossa experiência quotidiana como prática de vida.
Com leveza. Simplesmente acontecendo, porque aprendemos com Llansol o seguinte
modo de estar no mundo: escolher o
caminho do júbilo, e uma ética do belo que seja também uma estética da bondade.
Fulgor ou verosimilhança?
E se as nuvens fossem ondas?
Esta minha oferenda, Maria Gabriela,
estes meus «exercícios do olhar com voz», colhidos muitos deles na minha casa
pelas manhãs, querem mostrar-te como a Reforma do Entendimento Humano, que
Spinoza pôs nas tuas mãos e tu reescreveste n' Os Cantores de Leitura, anda a ser
lida por mim. Escolhi o ponto de vista do fulgor e do júbilo, e o desejo de ser
figura, procurando deixar, como me ensinaste, o melhor de mim em vestígios
reformuláveis, não aceitando como inevitável o mundo em que vivo. Porque ser
testemunha obriga-nos a passar testemunho – trazer a nós os «brutos e cândidos
animais», e escolher tirar um curso para a vida nos «Estudos Gerais das
Árvores». Fulgor ou verosimilhança?
«Somos variações da luz» – disseste.
Inclinar o olhar dá-nos a possibilidade de ver diferentemente. A uma outra luz,
o Sol pode ser Lós, e a aurora dos diferentes dias estar dentro da Aurora de Nietzsche. Ouço-te a
dizer-nos: «quando a onda de leitura bate na rocha, eu tomo o rumo que me leva
a entrar no mar enevoado». Do ponto de vista da verosimilhança, o mar enevoado
há muito que é triste; do ponto de vista do fulgor, o mar enevoado é uma imagem
que me enche de júbilo e alegria.
E se as ondas fossem nuvens?
24 de Novembro 2018