25.11.18

EVOCAR, «DAR UM LUGAR»
Llansol, entre Hölderlin e Spinoza

Foi assim a dupla evocação de ontem na Casa de Julho e Agosto: de Maria Gabriela e do seu filósofo maior, Spinoza/Bento/Baruch, ambos nascidos a 24 de Novembro, sob o olhar atento de Hölderlin e do seu «ritmo poético fugindo», como sobre ele escreve Llansol.
 
 Do Caderno, com extratexto, feito para esta sessão

João Barrento traçou o rasto da presença do poeta na Obra de Llansol, e dessas palavras de abertura retemos alguns momentos:
[...]
Llansol anota num dos seus cadernos, em 1985, aludindo ao emergir da loucura mansa e ao lugar do ritmo no poeta alemão: «Quando Hölderlin principiou a encher a testa com a sua loucura nascente, olhava longamente um jardim, sempre deserto (…) Tomava-se a si mesmo por um ritmo poético fugindo
O que poderá ter atraído Maria Gabriela Llansol para uma figura como Hölderlin – para além do caso singular de um poeta singular que passa «metade da vida» à margem do mundo e de si – terá provavelmente a ver com este lugar privilegiado do ritmo na sua poesia e no seu pensamento sobre ela. 
[...]
Quando, com Hölder, de Hölderlin (publicado em 1993, mas presente nos cadernos manuscritos já nos anos oitenta), o grande poeta alemão entra na paisagem textual de Llansol, ganha aí um perfil humano, poético e figural que a pouco e pouco, nos fragmentos ritmados que formam este texto, se vai desenhando entre os pólos da natureza e da escrita, da paixão (nos poemas a Diotima, a amada que inventou o petit nom Hölder, presente no título de Llansol) e do êxtase ou da loucura, que nele parece ser a versão moderna, sublimada e extática, mas ao mesmo tempo contida e controlada, do furor poeticus antigo. Em Llansol, a paisagem-Hölderlin traça-se entre a humanização da figura (por vezes com recurso a imagens muito cruas) e a sua fulgorização numa prosa onde também encontramos uma tensão entre a quase visão e uma linguagem precisa, luminosa, ritmada e ritualizada – o júbilo poético controlado que é a marca inconfundível da grande poesia de Hölderlin.  
[...]
Hölder, de Hölderlin segue o fio da loucura do poeta, que não sabemos bem onde começa, do mesmo modo que temos alguma dificuldade em estabelecer, nos modos de escrita de Llansol, os limites entre o impulso poético da imagem e a entrada na zona da visão ou da alucinação. Aragon aborda subtilmente este movimento, quer de Hölderlin, quer de Llansol, ao sugerir num longo e extraordinário poema intitulado «Hölderlin», que estamos nos limites entre o ser e o não-ser, numa zona entre o real e o possível que em Llansol dá pelo nome de «entresser». Deixo ecoar algumas linhas de Aragon:
É certamente cómodo tudo explicar pela
Loucura – onde começa a loucura?
Orfeu
Esse desce ao incompreensível inferno
Em busca de Eurídice. E tu, Diotima,
Talvez nesses dias sobre os quais nunca saberemos nada
Tu o tivesses seguido até ao fundo do não-ser...
A loucura, onde começa a loucura, Hölderlin?
Sobreviver quarenta e um anos
Talvez isso seja
A loucura...
O inexplicável não é aquilo que a loucura explica...
Para os seus, ele era apenas o pequeno Fritz, e a bem-amada
Chamava-lhe o seu Hölder! Ah,
Se tivéssemos todas as suas cartas,
Então
Já não precisaríamos da loucura...

O que comumente se designa de «loucura» é também para Llansol uma forma de extrema lucidez, a capacidade de, com uma língua nova, «ver o Ser e recitá-lo de novo», como escreveu o poeta Fernando Guerreiro ainda a propósito de Hölderlin. 
E Llansol, num caderno manuscrito de 1999:
«A loucura é um conhecimento esfarrapado e desorganizado – sem eixo nem progressão. Mais novo e mais desconhecido é visto como mais loucura, quando afinal, no texto, mais novo e mais desconhecido é mais lucidez.» [...] 

Exposição de manuscritos de Llansol em torno de Hölderlin

Depois, duas leitoras próximas, quer de Llansol, quer do «poeta da Torre», Cristiana Vasconcelos Rodrigues e Teresa Cadete, deram voz ao breve e intenso texto Hölder, de Hölderlin, que por elas foi lido na íntegra.
 Cristiana V. Rodrigues e Teresa Cadete

E a finalizar a sessão, toda ela concebida sob o signo da leitura, dois vídeos, eles também com textos de Hölderlin e Llansol.
João Barrento mostrou e deu a ouvir a sua leitura do poema «Como em dia de festa...»:
 Imagens do video de João Barrento

E Maria Etelvina Santos passou um filme em memória de Maria Gabriela Llansol, em que integra excertos de Os Cantores de Leitura, e que apresentou com as seguintes palavras:
Imagens do video de Maria Etelvina Santos

E se as nuvens fossem ondas?
exercícios do olhar com voz
            Quando alguém, ao separar-se da vida, pede a um amigo «Dá-me um lugar» (como aprendi com Montaigne), pede a quem ama um lugar na sua memória, como se dissesse ‘torna de novo vivo o meu acto de nascer’.
Evocar é, assim, «dar um lugar». Um lugar nascente, construído dia a dia, e que não existe num qualquer território, pois é o lugar volátil de Mnemósine em nós.
O lugar que, por escolha nossa, decidimos dar a Maria Gabriela Llansol, não é apenas esta casa – esta, ao que parece, podemos dizer que foi ela que nos deu, com todos os seus objectos, plantas, cadernos e livros. O lugar que escolhemos dar-lhe é antes o lugar transformante de Mnemósine, trazendo-a à nossa experiência quotidiana como prática de vida. Com leveza. Simplesmente acontecendo, porque aprendemos com Llansol o seguinte modo de estar no mundo: escolher o caminho do júbilo, e uma ética do belo que seja também uma estética da bondade.
            Fulgor ou verosimilhança?
            E se as nuvens fossem ondas?
         Esta minha oferenda, Maria Gabriela, estes meus «exercícios do olhar com voz», colhidos muitos deles na minha casa pelas manhãs, querem mostrar-te como a Reforma do Entendimento Humano, que Spinoza pôs nas tuas mãos e tu reescreveste n' Os Cantores de Leitura, anda a ser lida por mim. Escolhi o ponto de vista do fulgor e do júbilo, e o desejo de ser figura, procurando deixar, como me ensinaste, o melhor de mim em vestígios reformuláveis, não aceitando como inevitável o mundo em que vivo. Porque ser testemunha obriga-nos a passar testemunho – trazer a nós os «brutos e cândidos animais», e escolher tirar um curso para a vida nos «Estudos Gerais das Árvores». Fulgor ou verosimilhança?
«Somos variações da luz» – disseste. Inclinar o olhar dá-nos a possibilidade de ver diferentemente. A uma outra luz, o Sol pode ser Lós, e a aurora dos diferentes dias estar dentro da Aurora de Nietzsche. Ouço-te a dizer-nos: «quando a onda de leitura bate na rocha, eu tomo o rumo que me leva a entrar no mar enevoado». Do ponto de vista da verosimilhança, o mar enevoado há muito que é triste; do ponto de vista do fulgor, o mar enevoado é uma imagem que me enche de júbilo e alegria.
            E se as ondas fossem nuvens?
24 de Novembro 2018