«O ENIGMA DO MUNDO»
A casa de Llansol em imagens
Fotografar uma casa, em particular uma casa de escritor(a) é entrar num mundo em si inapreensível. Os objectos da fotografia, lembra Barthes, são sempre «parciais», não há outros nesta arte que opera cortes no real. Por isso, o resultado será sempre – e já é muito – a reconstituição fragmentária de recantos, objectos, lugares e materiais de escrita, fontes de leitura, e também, se o fotógrafo para isso tiver a necessária sensibilidade, a recuperação de atmosferas particulares que são uma espécie de líquido amniótico onde se configura uma existência e de onde nasce a escrita.
Numa escritora como Maria Gabriela Llansol, isto era decisivo. E Pedro Teixeira Neves, fotógrafo, mas também jornalista e escritor, soube fazer jus a essa exigência no belo livro (de artista) que compôs com fotografias feitas recentemente na casa da escritora que hoje é o Espaço Llansol. Chamou-lhe O Enigma do Mundo, e fez acompanhar a selecção de fotografias a preto-branco de um pequeno texto que fecha o livro:
O resultado da deambulação do seu olhar muito atento aos mais diversos pormenores é a imagem múltipla de uma «casa de escrever» como a própria «escrevente» a vê num caderno de 1995, onde lemos:
Gostaria de ter uma casa imensa________ para expor meus pensamentos e objectos______ o meu olhar sobre a realidade que se transforma: este é o meu quarto de Sintra, o meu quarto velado à luz da vela________ e hoje arrumei melhor a estante dos livros________ e parti dela.
Olho e volto a olhar, consigo um olhar novo – o sentido dos livros vivos desperta em mim a partir da estante. Trabalhasse eu mil horas por dia, e reteria sempre mais trabalho _______ deve ser de haver múltiplos seres em mim com o desejo de continuar-me e acabar-me [...]Gostaria de ter uma casa imensa________ para expor meus pensamentos e objectos______ o meu olhar sobre a realidade que se transforma: este é o meu quarto de Sintra, o meu quarto velado à luz da vela________ e hoje arrumei melhor a estante dos livros________ e parti dela.
________ abri a porta da
casa de escrever, e entrei nela; estava vazia; abri a porta da casa de escrever
que estava dentro da casa de escrever – estava vazia; passeei-me à entrada da
casa de escrever que havia nessa segunda casa, e senti que o meu objectivo era
ficar – ficar muito para além da terra cujas ondas de beleza ressoam ainda na
praia aos meus ouvidos. As casas estavam gastas por nascerem sempre umas dentro
das outras como crianças surdas. [...]
A casa grande, enorme, que
conteria os perdidos – os objectos, cenas da minha vida –, os encontrados e as
transformações, sendo uma casa real, seria estática – um Museu. Sendo um
pensamento, encontraremos um lugar para viver. A única condição é o pensamento
poder «audaciar-se», exprimir-se em obra que fique em toda a parte _______ (Caderno 1.43, 1995)
Nas «casas de escrever», nas várias casas de
escrita por onde Llansol passou e em que continuamente vai renascendo – desde a
casa paterna na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa, à da avó em Alpedrinha, do
apartamento urbano de Lovaina ao quarto minúsculo da granja de Herbais e às
casas de Colares e Sintra, que tantos livros viram nascer e crescer –, as
palavras escritas nos Cadernos (quase sempre a esferográfica, de diversas
cores) animam-se para dar corpo aos «múltiplos seres em mim». São, desde os
primeiros escritos de infância e juventude, casas dentro de casas
dentro de casas, como revela um dos fragmentos citados; e afinal é sempre a mesma casa
arquetípica, arcano central desta Obra, que contém a escrita e nela está
contida. Casas repletas de objectos, mas em si mesmas vazias, como o «mundo
desabitado», «espécie de deserto à minha volta», à espera de serem preenchidas,
mobiladas com formas e sentidos vindos – na carroça que atravessa «as ruas do meu
interior» – de outros lugares, cidades da alma «onde a imagem estava plena».
Nesta casa feita de muitas casas sempre cheias de sinais, e com múltiplas janelas
abertas sobre o universo, tudo gira em permanente vibração e devir. Escrever – escreler
com as muitas Figuras que antes dela escreveram e foram acolhidas na casa do
texto, e com os legentes que se
alimentam da sua escrita e a prolongam – é aí um acto de necessidade, uma
espécie de «segunda natureza», como se lê num dos Cadernos. Aí,
«o balanço deste meu, vosso, mundo não tem fim; a necessidade de abrir-lhe as
portas é real________».